História do Laboratório Clínico – Parte II

Clinical Laboratory History – Part II

 

Paulo Murillo Neufeld, PhD  |  Editor-Chefe da RBAC

 

Recebido em 15/08/2023

Aprovado em 03/09/2023

DOI: 10.21877/2448-3877.202300150

 

 

Desde tempos ancestrais, a medicina e suas “especialidades” sempre tiveram uma estrita relação com as práticas curativas teúrgicas que se baseavam, fundamentalmente, na religião e em seus pressupostos. A doença era entendida como uma punição divina para os transgressores das leis dos deuses ou decorrente de possessões demoníacas desflexadas por espíritos ímpios ou, ainda, determinada por bruxarias lançadas por feiticeiros ou sacerdotes. Durante muito tempo, incluindo o período do medievo, essa visão mística das doenças prevaleceu sobre o empirismo lógico ou mesmo sobre a ciência e seu método que estavam sendo construídos.

O diagnóstico clínico-laboratorial não era um procedimento valorizado e pouco contribuía para o estabelecimento de estratégias terapêuticas. Eventualmente, as práticas religiosas não eram empregadas como recursos de avaliação e análise, uma investigação com viéis mais naturalista incorporava informações obtidas a partir de sintomas, pulso, “palpitação”, percussão, fezes, urina e sêmen. As terapias, contudo, continuavam a ser baseadas na oração, na penitência, na intepretação de sonhos e na invocação de “deuses-médicos”.

Na verdade, a uroscopia, que se estabeleceu na Idade Antiga, era a prática laboratorial mais difundida também no período medieval, sendo um elemento universalmente empregado na medicina dessa época, principalmente, na Europa. O estudo da urina permaneceu a principal fonte de testes laboratoriais por séculos, assim como o reconhecimento de que a combinação de sintomas clínicos com medições laboratoriais padronizadas poderia elucidar uma doença. Uma das primeiras técnicas de laboratório reais já empregadas foi a precipitação de proteínas pelo calor, causando turvação da urina. Efetivamente, essa prática tornou-se a principal ferramenta de diagnóstico para testes laboratoriais.

Diversos médicos da Idade Média estudaram a urina com o objetivo de produzir diagnóstico para patologias internas que não eram acessíveis com a rudimentar tecnologia médica que se tinha. Nesse sentido, Theophilus Protospatharius (610– 641), um médico bizantino, foi o primeiro autor a escrever um livro totalmente dedicado à urina. O livro “De Urinis” revisou o assunto com base nas teorias clássicas atribuídas à urina vigentes naquele período, se concentrando em suas características físicas para definir diferentes enfermidades. Ben Solomon (850-950), médico judeu, foi o fundador das bases da nefrologia, ampliando os conceitos de Protospatharius e Galeno. Ele também postulou que os fluidos e os sedimentos do sangue penetravam no rim e do rim chegavam à bexiga. O médico real Zan al-Din Sayyed Isma’il ibn Husayn Gorgani (1040–1136), de origem persa-islâmica, exigia que seus pacientes coletassem durante 24 horas a urina em um recipiente limpo com o estômago vazio, após se ter tido uma boa noite de descanso. Johannes Zacharias Actuarius (1275–1328), médico bizantino, escreveu um manuscrito sobre a urina que continha 7 volumes. Esse manuscrito foi o trabalho mais completo sobre o assunto e assim permaneceu até o desenvolvimento da química biológica do século XIX. Actuarius detalhou como coletar a urina de 24 horas, usando uma garrafa limpa, transparente e de grandes dimensões, protegida contra o calor, o frio e a luz solar.

Essa prática médica de exame visual da urina acabou sendo associada, posteriormente, à “Roda da Urina”, um diagrama que ligava a cor da urina à doença. As variações de cheiros e gostos também foram padronizadas. O médico medieval segurava um frasco de vidro (matula) com a urina do paciente e a comparava com as cores da roda. O frasco de urina imitava o formato da bexiga e tornou-se o símbolo do médico na medicina medieval. A “Roda da Urina” tornou-se bem estabelecida, se transformando num gráfico de referência rápida imensamente popular para 20 tipos diferentes de urina. Quase todas as características urinárias de cor, cheiro e sabor estavam diretamente relacionadas ao estado de doença dos pacientes.

Após as Cruzadas e no Renascimento, os mosteiros eram onde a medicina antiga passou a ser exercida, através dos monges, que se tornaram médicos. Essa prática de medicina monástica não se alterou significativamente até o século XIV e o surgimento do interesse pela medicina nas universidades, principalmente a de Bolonha. No entanto, os avanços das ciências médicas foram poucos, mas algumas descobertas pavimentaram o caminho para o progresso médico. O alquimista suíço-alemão Theophrastus von Hohenheim, também conhecido como Paracelsus (1493–1541), defendeu o jejum em vez de sangrias ou purgas e antecipou a teoria inicial dos germes, afirmando que as doenças eram o resultado de agentes externos que invadiam o corpo humano. Ele descobriu que o uso de vinagre (ácido) resultava em turvação da urina em estudos iniciais de proteinúria.

Na Idade Moderna, principalmente no século XVII, os avanços mais notáveis foram propostos pelo médico inglês Thomas Willis (1621–1675), que, entre muitos estudos, cunhou o termo “mellitus” para a diabetes, basicamente para descrever o que havia sido percebido por séculos, que a urina de certos pacientes tinha um “gosto” diferente. No final desse período, a uroscopia acabou perdendo seu apelo individual, abrindo as portas para que outro importante fluido corporal se tornasse o foco principal de estudo e levasse a testes laboratoriais: o sangue. Não houve, no entanto, exames de sangue efetivos ao longo dos séculos até que o microscópio fosse desenvolvido, para avaliações além do olho nu.

O primeiro a realmente utilizar o microscópio para testes de laboratório foi o padre jesuíta alemão Athanasius Kircher (1602-1680). Em 1646, ele examinou o sangue das vítimas da peste e, em 1658, registrou a origem da doença por meio da visualização de “vermes” no sangue, a Yersinia pestis. Naquela época, inclusive, ele provavelmente também observou um aumento no número de glóbulos brancos. De particular interesse, Kircher ainda propôs medidas higiênicas para prevenir a propagação de doenças, como isolamento, a quarentena e o uso de máscaras faciais para evitar a inalação de germes. O cientista inglês Robert Hooke (1635–1703) fez contribuições em muitos campos da ciência, incluindo o refinamento do microscópio composto e a introdução do diafragma de íris. Em 1665, usando um microscópio, ele cunhou o primeiro uso da palavra “célula” (uma reminiscência das pequenas salas onde viviam os monges), ao observar cavidades microscópicas na cortiça. Sua pesquisa também enfocou os microrganismos como agentes etiológicos de doenças infecciosas.

Na Idade contemporânea, os avanços no microscópio, a introdução de padrões de medição e o conhecimento sobre hematologia, microbiologia, imunologia, histologia e química abriram o caminho para uma série de testes de laboratório significativos e úteis, durante o século XIX, inclusive, o estudo da urina foi redescoberto como “urinálise”. Nesse contexto, o médico francês Gabriel Andral (1797–1876) foi um pioneiro na patologia do sangue, sendo considerado o “Fundador da Hematologia Clínica”. Ele estudou o sangue de animais e humanos e foi o primeiro a descrever as proporções constituintes do sangue normal. Referindo-se ao “pus” no sangue, em 1843, ele detectou um aumento no número de “glóbulos” (glóbulos brancos) e uma diminuição no número de “outro elemento globular” (hemácias). Andral estava essencialmente descrevendo leucocitose e anemia. Simultaneamente, o médico inglês William Addison (1802–1881) relatou também, em 1843, a presença de “glóbulos brancos”, concluindo que ambos os elementos sanguíneos conhecidos (hemácias e glóbulos brancos) eram marcadamente alterados em infecções. Outro médico francês, Alfred François Donne (1801–1878), é reconhecido por expandir o uso do microscópio para todos os fluidos corporais humanos, notadamente, descobrindo o parasita Tricomonas vaginalis. Em 1842, ele revisou a aparência microscópica de esfregaços de sangue, observando a existência de um total de 03 elementos sanguíneos: “glóbulos” vermelhos (hemácias) e “glóbulos” brancos em quantidade elevada (leucócitos), juntamente com “pequenos glóbulos”, que não foram nomeados. Em 1844, o excesso de leucócitos em pacientes doentes o convenceu a suspeitar da interrupção da maturação do desenvolvimento celular intermediário. Donne vinculou, pela primeira vez na história da medicina, uma patologia sanguínea anormal ao que viria a ser conhecido como leucemia. Em 1845, ele era o principal proponente de uma nova tecnologia de ponta: a fotografia com microscopia. O médico e patologista escocês John Hughes Bennett (1812-1875), aluno influenciado por Donne, publicou um texto sobre o uso do microscópio para fins diagnósticos, em 1841, definindo-o como um instrumento clínico.

Embora haja muita controvérsia na história médica sobre a origem das plaquetas, vários médicos compartilham o crédito por descobri-las. Dentre esses, o patologista italiano Giulio Bizzozero (1846–1901) fez, em 1882, uma descrição microscópica abrangente em animais vivos, do que ele chamou de “pequenas placas”, tendo sido, na verdade, inspirado pelo anatomista alemão Max Schultze (1825–1874), que, em 1865, descobriu o que ele designou como “esférulas”, que eram menores do que os “glóbulos” vermelhos e “glóbulos” brancos e, às vezes, agrupados.

O patologista alemão, nascido na Prússia, Rudolf Carl Virchow (1821–1902) foi um dos mais proeminentes médicos de “laboratório” do século XIX. Ele foi o primeiro a estudar doenças de órgãos até o nível celular, usando o microscópio rotineiramente em autópsias. Ele trouxe uma base científica para a medicina e foi pioneiro na aplicação da teoria celular, segundo a qual todas as células surgem de células pré-existentes. Ele escreveu mais de 2.000 artigos científicos e cunhou mais de 50 termos médicos, como, por exemplo, “trombo”, “embolia” e “cromatina”. Embora tenha descartado erroneamente a ideia da migração de leucócitos, em 1847, ele detectou “glóbulos” brancos e “glóbulos” vermelhos invertidos, nomeando a condição sanguínea de “leucamie”, originada de células previamente normais e, assim, contribuindo para a teoria do câncer. Outro grande defensor da microscopia foi o cientista britânico Lionel Smith Beale (1828-1906). Em 1854, Beale publicou suas classificações de células baseadas na forma e origem tecidual e, em particular, sua descoberta descritiva do núcleo e nucléolo das células. Ele também descreveu as células cancerígenas do escarro, em 1860.

De todas os avanços extraordinários observados no âmbito do laboratório clínico, no século XIX, Contudo, foram os estudos do médico alemão Paul Ehrlich (1854-1915) que, provavelmente, impulsionaram, de maneira substancial, muitas da especialidades do diagnóstico laboratorial, como, por exemplo, a histologia, a hematologia, a imunologia, pela qual recebeu o Prêmio Nobel, a microbiologia e a química, onde desenvolveu diversos corantes biológicos. Ele trabalhou com corantes de anilina e, em 1877, criou sua coloração “triácida”, que permitia a coloração detalhada de tecidos, medula óssea e células sanguíneas. Acidófilos (eosinófilos), basófilos e neutrófilos foram claramente demostrados, assim como os mastócitos e as hemácias nucleadas. Erlich publicou, aos 25 anos, a técnica de coloração de esfregaços sanguíneos para contagem diferencial. Em 1906, definiu técnica e metodologicamente a coloração de esfregaços como é utilizada atualmente. Em 1887, a tuberculose foi confirmada usando sua própria coloração para identificação dos bacilos da tuberculose em seu próprio escarro. Ele também pesquisou antitoxinas e descobriu os “autoanticorpos contra si mesmo” e tentou encontrar, ainda, mas sem sucesso, uma substância capaz de inativar o microrganismo. A coloração de Erlich permitiu a diferenciação e a identificação de diversos distúrbios hematológicos, incluindo a anemia e a leucemia.

Importa mencionar que os primeiros laboratórios eram utilizados predominantemente para o ensino e a pesquisa, dando suporte aos estudos em infectologia e em saúde pública. Aos poucos, os laboratórios foram ampliando o escopo para além do ambiente da saúde coletiva para também incorporar a clínica médica e a clínica cirúrgica. Para isso, contribuíram diversos pesquisadores. O médico inglês John Snow (1813-1858) com seus estudos sobre a contaminação da água e segurança do paciente. O químico francês Louis Pasteur (1822-1895), com seus estudos sobre esterilização, pasteurização e vacinação e a definição da “Teoria Microbiana das Doenças”. O médico alemão Robert Koch (1843–1910) que, juntamente com a equipe de seu laboratório, desenvolveu meios de cultura sólidos para o isolamento e a identificação de microrganismos. Nesse sentido, em 1881, Walther Hesse (1846-1911) e Fannie Hesse (1850-1934), microbiologistas alemães e auxiliares de Koch, sugeriram o ágar-ágar como matriz sólida para os meios de cultura. Outro assistente do laboratório de Koch, o microbiologista alemão Julius Richard Petri (1852–1921), desenvolveu, em 1887, um recipiente de vidro (placa de Petri) para que os meios sólidos feitos com ágar-ágar fossem vertidos e aí fossem feitos os isolamentos bacterianos. O microbiologista holandês Martinus Willem Beijerinck (1851–1931), depois de estudar o trabalho do botânico russo Dmitri Ivanovsky (1864-1920), que demonstrou, em 1892, que havia “algo” não sendo filtrado com bactérias de plantas de tabaco infectadas, chamou, então, a substância infecciosa de “vírus”, iniciando o campo da virologia.

Por fim, os equipamentos que compunham os laboratórios arcaicos, que poderiam ser montados em casa, incluíam o microscópio, as lâminas de microscopia (feitas inicialmente de pedações de ossos de marfim), os tubos de ensaio (inventados pelo químico sueco Jons Jacob Berzelius, em 1814, e refinados pelo químico inglês Michael Faraday, em 1827), Becker e Erlenmeyer (inventados pelo químico alemão Emil Erlenmeyer, em 1860), estufa de crescimento, bico de Bunsen (inventado pelo alemão Robert Bunsen, em 1855), termômetro (inventado pelo alemão Daniel Gabriel Fahrenheit, em 1710) e banho-maria (inventado pela alquimista Maria, a Judia, em 200 DC). Mais à frente no tempo, ainda foram incorporadas a geladeira e as luvas de procedimento.

 

Bibliografia

 

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