História do Laboratório Clínico – Parte I

Clinical Laboratory History – Part I

 

Paulo Murillo Neufeld, PhD  |  Editor-Chefe da RBAC

 

Recebido em 01/06/2023

Aprovado em 01/06/2023

DOI: 10.21877/2448-3877.202300123

 

A história do cuidado entre humanos é tão antiga quanto a existência da própria humanidade.  Desde os primeiros tempos, os seres humanos se preocupavam em restabelecer a saúde uns dos outros. Ter saúde era fundamental para a sobrevivência da coletividade no que tangia, principalmente, à segurança do grupo e à busca por alimentos.

Nas práticas curativas primitivas, não havia nenhum conhecimento lógico e tais práticas eram puramente instintivas, consistindo em sopros, lambidas, apertos, passagem de mão, abraços, ajuda para locomoção e companhia, banhos e ingestão de água, mastigação de folhas e ervas, entre outras formas espontâneas de alívio de dores e ferimentos.

Com o processo de hominização e aculturação, as práticas de cuidado foram também evoluindo, passando pela fase sacerdotal, pelo empirismo filosófico, e pelas fases monástica, pós-monástica e contemporânea. Dessa evolução, foi surgindo, ao mesmo tempo, a necessidade de se pesquisar as causas dos fenômenos de adoecimento. Somente a partir do momento em que o homem sente necessidade de compreender as origens dos agravos tem início, então, a história do laboratório clínico.

Importa mencionar que os arcaicos diagnósticos da época antiga eram baseados no que os médicos de então podiam observar com seus olhos, ouvidos e narizes, incluindo, eventualmente, nesse caso, sem nenhum processamento prévio, o exame daqueles espécimens clínicos que podiam ser obtidos dos pacientes de forma fácil e natural. Desse modo, como os antigos gregos consideravam que todas as doenças decorriam de distúrbios dos fluidos corporais ou humores (sangue, catarro/ fleuma, bile amarela e bile negra), um dos primeiros espécimens estudados clinicamente foi a urina.

Relativamente às práticas primitivas, na Mesopotâmia e no antigo Egito os médicos realizavam diagnósticos e recomendavam tratamentos, principalmente com base na observação de sinais e sintomas clínicos. Assim, de forma rotineira, eram realizadas palpações e auscultações nos enfermos. Empregando essas técnicas semiológicas, aqueles médicos da antiguidade foram capazes, inclusive, de descrever disfunções digestivas, cardíacas, circulatórias, hepatoesplênicas e menstruais. Com base em achados arqueológicos, datados de 4.000 aC, sabe-se que os médicos babilônicos e sumérios registravam as avaliações de urina em tabletes de argila. Os primeiros estudos de urina feitos por médicos egípcios eram também documentados em antigos pergaminhos.

Um método de diagnóstico igualmente utilizado por médicos da antiguidade, para o estabelecimento de estratégias de tratamento, incluía a adivinhação, por meio de sacrifício-ritual de animais e posterior análise de suas vísceras, para prever a evolução do quadro clínico dos pacientes. Normalmente, uma ovelha era imolada diante da estátua da divindade à qual o sacerdote solicitava a interseção.

Ao longo do tempo, o exame místico de vísceras de animais foi perdendo importância e os médicos passaram a examinar espécimens humanos. Como mencionado anteriormente, dentre os espécimens clínicos, a urina, sem dúvida alguma, foi o primeiro material biológico a ser utilizado com fins de diagnóstico. Uma técnica realizada por médicos hindus da antiguidade (300-100 aC), empregando a urina coletada de pacientes, era o chamado derramamento, em que esses espécimens eram vertidos diretamente no chão e, desse modo, se podia observar a sua capacidade de atrair, ou não, insetos. Se os insetos fossem atraídos, era indício para diagnóstico de “furunculose”.

Por volta de 300 aC, Hipócrates (460-370 aC) estabeleceu um protocolo de diagnóstico que incluía provar a urina, auscultar os pulmões e observar a cor da pele. Esse médico relacionou também o aparecimento de bolhas na superfície dos espécimens de urina com doenças renais e doenças crônicas. Sedimentos, sangue e pus encontrados na urina foram igualmente associados por Hipócrates a alguns tipos de doença.

Num período posterior, cerca de 180 dC, Cláudio Galeno (131-201 dC) criou também um sistema de patologias que combinava as Teorias Humorais de Hipócrates com a Teoria Pitagórica, sustentando que os quatro elementos (terra, ar, fogo e água) correspondiam a várias combinações das características fisiológicas de seco, frio, quente e úmido. Essas combinações representavam aproximadamente os quatro humores do corpo humano: quente + úmido = sangue; quente + seco = bile amarela; frio + úmido = catarro/ fleuma; e frio + seco = bile negra. Ele também descreveu o diabetes como uma “diarreia de urina” e observou a relação normal entre a ingesta de líquidos e o volume de urina.

É importante reiterar que, efetivamente, a primeira “prova diagnóstica”, empregando espécimens clínicos, desenvolvida com o objetivo de se proceder avaliações in vitro sobre o estado de saúde dos pacientes, foi o teste de urina, representado, principalmente, pela uroscopia. Como os médicos do passado não podiam realizar procedimentos invasivos, os fluidos corporais, mais acessíveis no que se referia à sua coleta, foram os mais estudados durante todo o período antigo.

 

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