A história do exame de urina: Idade média
The history of urine examination: Middle age
Paulo Murillo Neufeld, PhD | Editor-Chefe da RBAC
Durante a idade média, o exame macroscópico de urina [uroscopia] atingiu elevados níveis de dominância diagnóstica, tendo em vista que quase todas as condições clínicas eram identificadas a partir das diferentes características e alterações apresentadas pela urina dos pacientes. Como já mencionado nessa série de textos sobre a história do exame de urina, o escritor Theophilus Protospatharius [século VIIdC], médico de Heráclito [575-641], Imperador Bizantino entre o período de 610 a 641, escreveu um importante texto que versava exclusivamente sobre a uroscopia, denominado De Urinis, onde preconizava aplicações mais práticas dos ensinamentos de Hippocrates e Galeno. O livro descrevia uma gama de cores exibidas pela urina e suas correlações com diversas doenças. Theophilus Protospatharius propôs ainda a adição de calor à urina para aumentar o seu poder discriminativo, inventando, dessa feita, a primeira técnica laboratorial documentada. Um médico e neoplatonista judeu, originário do Egito, conhecido com Isaac Ben Salomon Israeli [855-955], posteriormente, publicou manuscritos com estudos, análises críticas e esclarecimentos sobre os textos e as técnicas de Theophilus Protospatharius.
Na realidade, a tradução dos textos bizantinos sobre uroscopia para o latim, realizada pelo monge católico e médico Constatinus Africanus [1015-1082], um dos fundadores da Escola de Medicina de Salerno [Schola Medica Salernitana], foi o fato que deu início, a partir do século XIII, efetivamente, à áurea fase da técnica uroscópica na Europa. Com uma escrita rigorosa, didática e natureza prática, esses textos se difundiram e se enraizaram no ideário escolástico da idade média. Em sua obra, De Instuctione Medici, Constantinus Africanus afirmava que a urina era melhor que o pulso para se descobrir a doença de um paciente.
Ao se tornar uma ferramenta incomparável de diagnóstico, ajustes e melhorias na uroscopia passaram a ser rotineiramente propostos, de acordo com a experiência que ia sendo acumulada com o tempo. Nesse sentido, observou-se que a técnica de coleta parecia ter grande importância para a correta interpretação. Assim, Ismail Ail-Jurjani [1042-1136], um médico persa que serviu ao Xá Qutbaddin Muhammad ibn Anushtagin [1097-1127] e ao príncipe herdeiro Ala’addaula Atsis [1127-1156], escreveu em seu livro Zahira-i Khorezm-shahi, o texto de instruções técnicas sobre coleta e exame de urina mais abrangente da época, que a urina deveria ser coletada em um período de 24 horas em um grande recipiente limpo, mantido longe do sol e do calor, para não alterar a sua cor. O recipiente deveria ter um formato de bexiga, simulando essa peça anatômica, para um diagnóstico “mais preciso”. Ismail também acreditava que a alimentação e o envelhecimento alteravam a urina e recomendava, antes da coleta, uma boa noite de sono e jejum para esvaziar o estomago. O livro Zahira-I Khorezm-shahi foi muito popular, sendo considerado como uma das principais obras médicas do medievo, com tradução do persa para diferentes idiomas e presente em diversas bibliotecas pelo mundo.
Outros dois médicos, além de Constantinus Africanus, também membros da proeminente Escola de Medicina de Salerno, Giles de Corbeil [1165-1213], médico do rei da França Philipe II [1165-1223], e Bernard de Gordon [1285-1318], de Montpellier, foram, igualmente, de grande importância para a disseminação das habilidades técnicas bizantinas da uroscopia na Europa. No livro Liber de Urinis, Giles de Corbeil recapitulou e consolidou os conhecimentos médicos sobre a análise de urina de seu tempo, a partir dos escritos de Theophilus Protospatharius e Isaac Ben Salomon Israeli. Em seus estudos, ele relacionava 20 tipos distintos de urina às condições clínicas do organismo, com base em diferenças no sedimento e na cor. Um recipiente denominado mátula foi introduzido na uroscopia por esse médico francês. Com esse frasco, era possível visualizar a urina e avaliar a cor, consistência e transparência. Arredondada em sua porção inferior e constituída por um fino cristal translúcido, ao ser segurada com a mão direita e colocada contra a luz, permitia uma adequada inspeção. Esse autor tinha a crença de que diferentes partes do recipiente representariam as diferentes partes do organismo humano. Desse modo, uma alteração observada em determinada área do frasco estaria ligada à doença de determinado órgão.
A crescente complexidade da uroscopia levou à criação de gráficos e tabelas para caracterização de todos os tipos observáveis de urina. Com o tempo, a categorização dos aspectos físico-químicos urinários foi ficando cada vez mais elaborada, o que levou também a mudanças na forma da mátula, para corresponder, de forma fidedigna, às áreas do corpo e suas alterações clínicas. De frascos mais rudimentares, a mátula foi sendo transformada em uma ferramenta cada vez mais “precisa” e “funcional” com um gargalo mais alongado para maior firmeza ao segurar, um formato bolhoso à cônico para uma melhor sedimentação, um cesto de vime envolvendo o frasco para suporte ao transportar e várias divisões e gradações inscritas em sua estrutura. Com a turbidez e sua estratificação e a formação de sedimentos foram considerados cada vez mais elementos de diagnóstico, o recipiente foi dividido em quatro níveis, sendo o superior relacionado a doenças da cabeça e os outros níveis restantes denotavam alterações no coração, pulmão e abdômen, bexiga e trato urinário. Essas divisões foram expandidas em 11 e 24 quadrantes para relacionar os órgãos associados a cada cavidade do corpo. Em seu auge, a técnica envolvia vapores de urina destilada, que eram coletados em um receptáculo em forma de corpo humano, dimensionado em 24 níveis. Nesse período, a mátula se transformou no símbolo de distinção da honra médica.
O aumento de complexidade da técnica uroscópica teve ainda a importante contribuição de um livro médico ilustrado, publicado em latim, em 1491, por uma gráfica veneziana, intitulado Fasiculus Medicinae. Importa esclarecer que, apesar do nome do médico alemão radicado na Áustria, Johannes de Ketham [?-1490], estar muito associado à compilação e publicação dessa obra, efetivamente, ele nada teve a ver com a editoração desse material. Na realidade, Johannes de Ketham era apenas o proprietário de um dos manuscritos originais que foram utilizados na compilação e edição do texto final do Fasiculus Medicinae. De qualquer forma, o livro é um conjunto de seis tratados médicos que versam sobre temas como uroscopia, astrologia, sangria, cuidados médicos de feridas, pragas, dissecação anatômica e saúde feminina. A importância desse texto reside no fato de ter sido o primeiro trabalho ilustrado em medicina a ser impresso no mundo. As seis ilustrações [xilogravuras] publicadas incluem um gráfico de urina, um diagrama do aparelho circulatório para flebotomistas, um gráfico de feridas, um gráfico de doenças, um diagrama para flebotomistas que associa as partes do corpo humano com os signos do zodíaco [homem do zodíaco] e uma mulher gestante. Em relação à urina e à uroscopia, a obra apresenta uma gravura que contém um grande círculo rodeado por 21 mátulas contendo urina. Cada mátula está associada a uma cor, consistência e sedimento que, por sua vez, refletem o desequilíbrio dos humores e uma determinada condição clínica, permitindo, desse modo, a realização de um “diagnóstico” para a enfermidade exibida pelo paciente.
Aos poucos, o diagnóstico de urina foi se tornando cada vez mais difundido. Os médicos viam na uroscopia uma forma racional, prática e indolor de separar e avaliar o desequilíbrio dos humores, já que a urina oferecia um método não invasivo de análise. Inclusive, vários textos médicos dedicados à uroscopia foram publicados nesse período. A urina tornou-se uma ferramenta diagnóstica exclusiva, pairando superior ao pulso. Essa técnica foi considerada tão fácil de ser executada que, em verdade, qualquer um poderia aprendê-la e interpretá-la. A impressão em brochuras dos gráficos de urina que correlacionavam a cor do fluido com uma determinada patologia popularizou o processo de diagnóstico. Alguns médicos e uroscopistas leigos, inclusive, passaram a clinicar com o apoio da análise uroscópica sem examinar o paciente pessoalmente. Em decorrência disso, a uroscopia acabou atraíndo centenas de charlatães. Algumas pessoas chagavam a dizer que eram capazes de prever o futuro [uromancia] e identificar bruxas, apenas observando a urina do indivíduo.
Com uma fama decadente, a uroscopia foi do “céu para o inferno”. Diversos autores passaram a escrever textos ridicularizando a técnica e seus executores. Como consequência, a habilidade de médicos e uroscopistas passou a ser questionada e testada pela entrega de urinas adulteradas. Desse modo, surgiram textos médicos acerca de como fazer perguntas para validar uma urina antes de examiná-la e como relatar seus resultados, para evitar perdas de reputação. Johannes Actuarius [1275-1328] de Constantenopla, médico-chefe do império bizantino, alertou sobre os perigos do diagnóstico baseado apenas na urina sem a presença do paciente, bem como escreveu um grande tratado dividido em sete livros, conhecido como De Urinis. Nele, o autor procurou explicar, exaustivamente, o metabolismo e a fisiologia do organismo com base na teoria dos quatro humores, a partir do exame de urina e dos demais fluidos e resíduos corporais. Johannes Actuarius também alterou a forma de sua mátula, a fim de refinar a precisão diagnóstica.
Thomas Linacre [1460-1524], médico dos reis Henrique VII e VIII da Inglaterra, e John Collop [1625-1676], um médico inglês, foram outros clínicos que também duvidaram do valor da uroscopia. Panfletos como o Piss-Pote Prophet, escrito por Thomas Bryan, em 1637, e o Piss-Prophet, escrito por John Collop, em 1657, satirizaram o uso da uroscopia como ferramenta diagnóstica. Um importante livro sobre as falácias do exame de urina, o De Vulgi Erroribus in Medicina, foi ainda publicado, em 1639, pelo médico inglês James Primrose [1598-1659]. Por fim, a mátula passou a representar um símbolo do ridículo profissional.
Apesar da pouca evolução científica, as principais contribuições da uroscopia para a ciência da urinálise foram as descrições da gravidade específica e a descoberta das proteínas e elementos químicos, incluindo, a uréia, por Johann Baptista Van Helmont [1579-1644].
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