A história do exame de urina: Idade antiga

The history urine examination: Ancient age

 

Paulo Murillo Neufeld, PhD  |  Editor-Chefe da RBAC

 

A medicina laboratorial teve seu começo há cerca de 6.000 anos com o estudo da urina humana que era classicamente denominado de uroscopia. Desde os tempos antigos até a era vitoriana, a urina foi utilizada como a principal ferramenta de diagnóstico da natureza das doenças dos indivíduos. O termo uroscopia é derivado do grego ouron, que significa urina, e skopein, que significa examinar, inspecionar, contemplar.

Os registros históricos dão conta de que os egípcios, babilônicos e sumérios foram os que iniciaram a arte da uroscopia. Médicos babilônicos e sumérios acerca de 4.000 aC registravam as avaliações de urina em tabletes de argila. Textos desses povos mencionavam e descreviam a aparência, o volume e a cor da urina. Termos babilônicos como sinatu pizu (urina branca ou pura), sinatu zalmi (urina preta), urpati sinatu (nuvens da urina), tidu da sinatu (lama ou sedimento da urina) e sinatu bursi (urina vermelha brilhante) eram indicativos de seu conhecimento no exame de urina. Particularmente, na Suméria, os médicos já associavam as características da urina com as alterações observadas em diferentes doenças.

Referências ao exame de urina podem ser encontradas também em textos egípcios antigos. No Papiro de Kahun (1900 aC) é mencionada a urina vermelha, que era evidência de infecção por Schistosoma hematobium, enquanto que no Papiro Ebers (1550 aC), a hematúria era atribuída a “vermes na barriga”.

Há evidências nas obras de Charaka (300 aC) e Sushruta (700 aC), fundadores da medicina Ayurveda, sobre o reconhecimento do sabor doce da urina de indivíduos diabéticos e a observação de que formigas eram atraídas para ela, assim, esses insetos passaram a ser reconhecidos como meio de diagnóstico. Na medicina indiana antiga, o exame físico da urina também era empregado no diagnóstico em combinação com a aparência dos olhos, pele, voz e pulso do paciente. A cultura hindu também reconhecia que a urina de algumas pessoas tinha um gosto doce e que as formigas eram atraídas para ela.

Desde o século I antes de Cristo, o exame da urina era parte integrante do sistema hipocrático e, a mais 1.500 anos atrás, o Corpus Medicus Greco-Romano fazia descrições das características físicas da urina. Hipócrates (460-377aC) foi quem, inicialmente, levantou a hipótese de que a urina era um filtrado dos humores e que vinha dos rins. Em decorrência disso, Hipocrates passou a utilizar a urina como exame das funções do corpo humano e meio de diagnóstico, sendo empregada também como um método de prognóstico.

Nos antigos textos sânscritos, datados de 100 aC, todas as condições mórbidas da urina eram caracterizadas como prameha e categorizadas dentro de 20 grupos diferentes, derivados da fleuma, da bile ou do vento. Por exemplo, o termo udakameha fazia alusão à urina tipo água, enquanto o termo surameha referia-se à urina que se assemelhava ao conhaque. O termo madhumeha referia-se à “urina de mel”, descrição atribuída à urina do diabetes mellitus.

Galeno de Pérgamo (129-216dC), relevante intérprete das ideias hipocráticas, destacou a importância da boa saúde para o equilíbrio dos humores corporais. Segundo Galeno, os rins e a urina desempenhavam um papel importante para esse equilíbrio. Galeno refinou as hipóteses de Hipócrates, teorizando que a urina representava não apenas um filtrado dos quatro humores, mas sim um filtrado do sangue. Galeno procurou tornar o diagnóstico de urina mais específico. Ele usou a frase “diarréia da urina” para descrever a micção excessiva e observou que era um sintoma atípico.

Avicena (980-1037 dC) notou também que a qualidade da urina era afetada pela comida e bebida ingeridas. Assim, a urina “ruim” estaria ligada à má digestão, catarro, frio, inquietação ou desequilíbrios humorais. Segundo Avicenna, a urina normal era aquela com aparência suave, cores sutis como bergamota (amarelo claro), que tinha odor suave (nem inodoro nem cheiro de putrefação). Ele acreditava que, se uma pessoa com uma doença grave tivesse essas especificações de urina, a condição estaria melhorando.

Um passo importante no exame de urina foi dado por Theophilus Protospatharius de Constantinopla (século VII dC), ao escrever o De Urinis, um texto sobre o exame macroscópico da urina e sobre o significado de suas alterações. Nesse importante tratado, Theophilus observou que a urina era um filtrado do sangue e forneceu descrição anatômica de como era produzida. Ele foi capaz de discernir dez tonalidades cromáticas da urina, subdividindo-as em categorias. Além disso, desenvolveu uma série de algoritmos e técnicas, tais como a prática de aquecimento e resfriamento da urina e o exame de urina, usando copos de urina coloridos

 

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