A Revolta da Vacina
The Vaccine Revolt
Recebido em: 25/10/2021
Aprovado em: 18/11/2021
DOI: 10.21877/2118-3877.202200045
Paulo Murillo Neufeld, PhD
Editor-Chefe da Revista Brasileira de Análises Clínicas
Apesar de haver muitos indícios na história da humanidade acerca do desenvolvimento de vacinas e da vacinação em diferentes sociedades antigas da Ásia, África e Europa, a ciência considera como marco histórico o trabalho de Edward Jenner com a varíola e sua vacinação, na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, em decorrência da documentação e divulgação das práticas experimentais e dos resultados obtidos em publicações oficiais pelo médico inglês.
Interessante notar que, junto com os esforços de alguns para o controle das epidemias e, em particular, da varíola, que assolava o mundo desde tempos imemoriais, havia quase sempre nas sociedades do passado [e nas de hoje] um comportamento refratário constituído por protestos e objeções contra a vacinação, principalmente, pela igreja, nobreza e a própria população que era cooptada pelos clérigos e nobres, representantes das classes dominantes. Dentre os motivos para o fenômeno de rejeição, estava o obscurantismo teológico e científico e o preconceito das classes mais favorecidas que desejavam apenas para si o direito à saúde e ao bem-estar.
No continente americano, a varíola penetrou e se disseminou rapidamente logo após seu descobrimento pela armada do navegador Cristóvão Colombo, em 1492. Em 1677, em decorrência de grande número de casos da doença, o médico Thomas Tachter publicou o que viria a ser considerado o primeiro texto médico da América [A Brief Rule to guide the Common People of New England How to order themselves and theirs in the Small Pocks, or Measles], que trazia medidas orientativas de prevenção e controle da varíola pela população. Apesar de todas as dificuldades e movimentos contrários nas diversas civilizações do ocidente e do oriente ao longo da história, havia uma urgente necessidade sanitária de se controlar, de forma definitiva, a varíola no mundo, por isso, a medicina perseverou, em meio a enormes adversidades sociais contra as vacinações, sem recuos. Com esse firme propósito, por fim, a erradicação da doença foi anunciada pela Organização Mundial da Saúde [OMS], em 08 de maio de 1980.
No Brasil, a varíola também chegou com os primeiros colonizadores europeus no século XVI e, como em todos os lugares, se espalhou de maneira rápida entre as populações europeias, indígenas e africanas que viviam na colônia brasileira, fazendo um grande número de vítimas. Em 1804, contudo, a vacina jenneriana antivariólica chegou ao Brasil, trazida pelo Marques de Barbacena em associação com comerciantes bahianos. O nobre enviou à Portugal sete crianças escravizadas, que seriam utilizadas como cobaias e meios de transporte do vírus bovino, juntamente com um médico para que a técnica de vacinação braço-a-braço fosse aprendida e aplicada posteriormente no país. As crianças foram inoculadas e, ao desenvolverem a forma branda da doença no navio, o pus foi coletado das pústulas, se mantendo fresco e adequado para o uso nas primeiras imunizações na Corte do Rio de Janeiro. Essa forma de transporte do imunizante foi também bastante empregada para fazê-lo chegar nas localidades mais distante da colônia.
Vinda de Lisboa, a vacina chegou primeiramente à província da Bahia, indo para a Corte no Rio de Janeiro, em seguida. O Vice-Rei do Brasil e Marques de Aguiar, Dom Fernando José de Portugal e Castro, determinou que as inoculações fossem realizadas nos membros da Corte, às quintas-feiras e domingos, com hora marcada, na sede do governo, que ficava no prédio do Paço Imperial. Como uma prática cotidiana, essas inoculações, tanto no Paço Imperial quanto na igreja de NS do Rosário, perduraram até o final do século XIX.
A princípio, houve uma boa aceitação da vacina na Corte. Esse contexto favorável foi decorrente da política absolutista do governo português e do apoio direto do rei Dom João VI, que perdera parentes próximos como seu irmão mais velho e príncipe herdeiro (Dom José), uma irmã, um cunhado e seu filho primogênito (Dom Francisco Antônio). Antes de sua transferência para o Brasil, inclusive, ele vacinou seus dois filhos restantes (Dom Pedro e Dom Miguel). Dom João também solicitou a tradução e divulgação de todos os textos de Jenner sobre a vacinação antivariólica.
Em 1811, por Decreto Real, foi criada a Junta da Instituição Vacínica na Intendência Geral de Polícia do Rio de Janeiro, que tinha como atribuição precípua organizar e padronizar as práticas vacinais, promover a vacinação antivariólica em massa na Corte e atuar como um centro difusor de vacinação para outras províncias brasileiras. Apesar de sua criação, o sucesso da instituição foi relativo, tendo em vista a falta de recursos humanos (um inspetor e três vacinadores cirurgiões) e financeiros e a adesão irregular da população. Além dos nobres e indivíduos abastados da sociedade, o público-alvo, em função de interesses econômicos, era formado principalmente por escravizados, incluindo os que estavam à venda. A vacina contra a varíola passou a ser uma exigência para que os escravizados aportados no Brasil fossem entregues aos seus respectivos proprietários, exigindo-se, para tanto, um certificado de vacinação. A população livre, todavia, continuava com uma baixa assistência e, por conseguinte, baixo percentual de vacinação, não se conseguindo, por isso, alcançar uma imunização de base na maioria das regiões do país.
Com a política governamental de vacinar os escravizados oriundos da África, os relatos de casos de varíola ao longo dos anos foram se tornando cada vez menos frequentes na corte do Rio de Janeiro, contudo, com o aumento do tráfico ilegal e a entrada clandestina de escravizados não vacinados, houve, no período compreendido entre 1834 e 1838, um retorno violento dos casos da doença na capital. Paralelamente, uma crescente aversão à vacinação, por parte da população, surgiu como mais um fator de dificuldades para o controle da virose.
Em relação à “vaciofobia” gerada no meio da população, a técnica braço-a-braço empregada era um complicador. Essa técnica dependia do comparecimento do vacinado uma semana depois para que o pus a ser utilizada na vacinação de outro indivíduo pudesse ser retirado de suas pústulas. Entretanto, havia resistência nesse retorno, por ser a retirada do material purulento um procedimento incômodo e demorado. Isso gerava conflitos entre a população, vacinadores e policiais. Uma outra situação estava associada a questões médicas e à teologia cristã. No tocante às questões médicas, havia o temor dos indivíduos adquirirem a doença dos bovinos cujo pus era extraído para a imunização de pessoas, dúvidas acerca da eficácia das vacinas, tendo em vista o relato de casos de varíola entre pessoas vacinadas, equívocos de diagnóstico com a catapora, disseminação da ideia de que se poderia contrair sífilis na vacinação braço-a-braço e confusão entre as técnicas de vacinação [vírus bovino] e variolação [vírus humano da varíola benigna]. A visão teológica da vacinação foi outro agravante. A igreja incitava reiteradas vezes os fiéis contra a vacinação com base em dogmas religiosos sobre a origem satânica das vacinas e a ocorrência de possessões diabólicas, bem como sobre a “indesejável” interferência humana nos desígnios de Deus. Além disso, a dificuldade de se importar da Europa a matéria prima purificada (linfa vacínica), a má formação dos vacinadores e a falta de logística para o transporte de vacinas para regiões distantes eram também obstáculos. Todas essas situações repercutiram negativamente na população que passou a ver com desconfiança e medo o procedimento de vacinação, levando a sua rejeição e combate.
Para impor a vacinação à população [que vinha numa progressiva rejeição], o Decreto Imperial no. 464 de 1846 tornou a vacinação compulsória no país, o que desencadeou diversos conflitos entre o povo e o governo, principalmente, no Rio de Janeiro, e acirradas discussões acerca dos limites entre o respeito às liberdades individuais e à vida privada e as prerrogativas de intervenção sanitária do Estado. Em decorrência disso, no final do século XIX, a população comparecia em número cada vez menor nos postos de saúde, indicando descrença e resistência ao método de vacinação e suas práticas.
Todo esse ambiente adverso, iniciado no século XIX, alcançou o século XX, atingindo seu paroxismo no movimento popular que ficou conhecido na história como “A Revolta da Vacina” e que teve também, em 1904, a cidade do Rio de Janeiro como palco. Na realidade, apesar de apresentar elementos de continuidade, o momento político por que passava a República Velha foi o fator desencadeante e consequente das diversas causas e motivações sociais.
A república foi instaurada em 1889, deixando para trás o período monárquico do Brasil. A República Velha, fase compreendida entre 1889 e 1930, foi marcada pelo controle político das elites agropecuárias com mínima participação popular. Quando o império foi derrubado, não existiam instituições republicanas estabelecidas para substituir àquelas imperiais. Assim, por falta de opção, as Forças Armadas chamaram para si a reponsabilidade de organizar o tecido político do país. Em decorrência disso, por serem as únicas instituições que conseguiam manter a unidade nacional e regional, impondo sua autoridade e impedindo a fragmentação do país, os dois primeiros governos da República nascente foram liderados por militares das Forças Armadas, num período que ficou conhecido como “República das Espadas” e que se estendeu de 1889 até 1894. A partir de 1894, o controle do governo passou às mãos das oligarquias latifundiárias vinculadas à cultura do café em São Paulo e da pecuária em Minas Gerais. Era a “República Oligárquica” e os tempos da política do café com leite.
Com o Golpe Militar de 1889, algumas providências foram tomadas, sendo uma das mais importantes, a expulsão da Família Real e a formação de um governo provisório para o novo regime. Desse modo, assumiu a chefia do governo o Marechal Deodoro da Fonseca que anulou a Constituição de 1824, passado a governar por Decretos-Lei até que uma nova constituição fosse promulgada. Assim, em 1891, o governo convocou uma Assembleia Constituinte que consagrou a separação entre a Igreja e o Estado, passando os atos civis a serem realizados de forma secular, a definição de república federativa como o regime político, a divisão do Estado em três poderes e a instituição do voto universal masculino. Outras medidas foram a transformação das províncias em estados, a dissolução das Assembleias Provinciais e Municipais, com a nomeação de interventores e intendentes para os municípios, e a naturalização automática de estrangeiros. O Estado também passaria a não ser mais obrigado a fornecer educação pública gratuita.
Uma política industrializante, conhecida como Encilhamento, proposta pelo senador e ministro Rui Barbosa, que incluía a emissão de papel-moeda, a liberação de crédito e empréstimos, o estimulo à criação de empresas e sociedades anônimas, produziu forte inflação, desvalorização do dinheiro, especulação financeira, surgimento de empresas fantasmas e falência generalizada, levando o Marechal Deodoro da Fonseca a tentar fechar o Congresso, a fim de conter as fortes críticas à condução da economia que sofria por parte dos parlamentares. A tentativa de dissolver o Legislativo Federal e determinar um estado de sítio não foi apoiada pelos demais militares, fazendo com que Deodoro da Fonseca renunciasse, com o objetivo de evitar uma guerra civil no país, assumindo seu vice, o Marechal Floriano Peixoto.
Ao assumir, Floriano Peixoto tentou consolidar a república, atacando a oposição com políticas de exílio de civis e reforma ou transferência de militares de alta patente. Ele reprimiu, ainda, duas revoltas, a “Revolta da Armada”, uma rebelião liderada pela Marinha que exigia maior participação no governo republicano, e a “Revolta Federalista”, uma guerra civil ocorrida no Rio Grande do Sul entre os federalistas e os republicanos contra o governo local e central e a favor de uma revisão da Constituição. Apesar de todos esses problemas, Floriano Peixoto, que tinha a aceitação da classe média brasileira, deu também apoio à urbanização e a industrialização com a importação de maquinário e matéria–prima para alavancar o desenvolvimento da economia. No entanto, essa política desenvolvimentista trouxe muitos descontentamentos, principalmente entre os grandes proprietários de terras, que pleiteavam recursos do Governo Federal, para o setor agrícola, e não eram atendidos. Além disso, Floriano Peixoto claramente impedia a elite cafeicultora de ascender ao poder e conquistar altos cargos na administração central. O governo de Peixoto foi marcado por um forte paternalismo com estímulo à economia industrial e por uma reforma alfandegária com medidas antiiniflacionárias ineficientes.
Após 5 anos de governo militar, finalmente o poder passou às mãos dos civis, em 1894. A partir desse período, as oligarquias estaduais, lideradas por fazendeiros paulistas e mineiros, tiveram sucesso na implantação de uma economia política centralizada em commodities agropecuárias, principalmente o café. A divisão no meio militar e, em particular, a Constituição de 1891 facilitou essa aquisição de poder, pois o Brasil passou a um regime federativo com grande autoridade concedida aos estados, tendo cada um deles, inclusive, representantes na Câmara dos Deputados em quantidade proporcional ao número de seus habitantes, o que deu hegemonia [e alternância de poder] a São Paulo e Minas Gerais sobre os demais entes da federação. Importa mencionar que as bases dessa dominação estavam fundadas na “Política dos Governadores” e no “Coronelismo”. Com um pacto de apoio mútuo entre governadores estaduais e presidente da república e o controle da justiça e dos votos [“voto de cabresto”] nas mãos de grandes proprietários rurais, os chamados “coronéis”, a oposição era eliminada federativa e regionalmente [“curral eleitoral”].
Com a eleição [pelo “povo”] do presidente Prudente de Morais (1894-1898), que estava atrelada à crise gerada pelos ataques aos florianistas, a elite cafeicultora do oeste paulista conquistou o poder, passando a governar o país. Em seu governo, Prudente de Morais procurou resolver conflitos relacionadas às regiões de fronteira, alterou as políticas alfandegárias e de exportação e suprimiu de forma violenta o movimento missionário na comunidade baiana de Canudos [Guerra de Canudos]. O início do apogeu da “República Oligárquica” veio com o Presidente Campos Sales (1898-1902). Sales adotou inúmeras medidas (rolagem da dívida externa e penhora de rendas) que beneficiaram a economia brasileira, controlando a grave crise financeira que assolava o país. Nesse período, a chamada “Política dos Governadores” teve seu fortalecimento. Com o governo do presidente Rodrigues Alves (1902-1906), houve a valorização do café através da concessão de empréstimos que seriam utilizados para o financiamento do excedente da produção cafeeira, sendo que a venda dos estoques só ocorreria quando os preços aumentassem. Uma reforma urbana no Rio de Janeiro foi também levada a curso com grandes obras arquitetônicas e de saneamento que determinaram a retirada dos cortiços das áreas centrais da cidade e a construção de passeios públicos e grandes avenidas. Rodrigues Alves ainda adotou a prática de vacinação obrigatória contra a varíola. As consequências de tais reformas e da política de saúde governamental foi o deslocamento da população carente para os morros e periferia da cidade e a emblemática “Revolta da Vacina”.
Importa mencionar, inicialmente, que a questão primordial da “Revolta da Vacina” está fulcrada nas históricas relações políticas, econômicas e sociais construídas, modificadas e reconstruídas no século XIX e, mais particularmente, a partir da década de 1870. Um ponto sensível nesse contexto sociológico foi a perseguição aos cortiços e seus habitantes, pois essas moradias [desde sempre] abrigavam aqueles que “incomodavam” o poder imperial, como os abolicionistas e republicanos. Além disso, os “projetos civilizantes” postulados pelo governo eram perturbados pelas doenças que ali tinham seus mananciais e pelo “comportamento viciado” de seus moradores. Na república, esse sistema gerador de importunação ao poder constituído continuou como epicentro de mobilização e contestação.
Uma outra análise relevante sobre a “Revolta da Vacina”, que decorreu, de fato, como será visto, do acúmulo de ações autoritárias governamentais e da perda das moradias [cortiços] da população mais marginalizada, está associada a um processo de apropriação do corpo pela ciência. Esse processo, na verdade, iniciou-se com René Descartes na França no século XVII e teve sua consolidação no Brasil no final do século XIX e no século XX. Assim, além dos motivos socioeconômicos, a população se rebelou também pela perda de controle sobre seus próprios corpos. O movimento foi, inegavelmente, uma sedição dos revoltosos para manter os corpos livres da disciplina e da apropriação pelo que mais tarde Michel Foucault chamaria de biopolítica/ biopoder e Achille Mbembe de necropolítica.
Retomando a discussão dos fatores políticos e sociológicos que desencadearam, à época, o movimento popular contra a vacinação obrigatória, revisita-se à figura do presidente Rodrigues Alves que, ao assumir, em 1902, reiterou que o programa de seu governo era o saneamento da capital e o melhoramento do Porto do Rio de Janeiro. Para tanto, nomeou como prefeito o engenheiro Francisco Pereira Passos que pôs em prática o projeto da Presidência da República. Assim, em 1903, foram contratadas obras públicas para a reurbanização de algumas das principais ruas e avenidas da cidade, com base num projeto chamado “bota-abaixo”, que promoveu a desapropriação e a demolição de casarões e de habitações coletivas ou cortiços que supostamente eram focos de doenças como a febre amarela, a peste bubônica e a varíola, bem como a cólera, a tuberculose, a febre tifoide, o impaludismo, o exantema febril e a lepra. O ministro da indústria, transporte e obras públicas, Lauro Müller, foi encarregado de modernizar, aparelhar e também sanear o porto. Concomitantemente, o governo passou a pagar à população pela captura de ratos, considerados vetores das doenças que assolavam a cidade. Com efeito, em certa medida, houve algum controle de muitas dessas infecções que levavam centenas de pessoas a óbito. No entanto, a varíola continuava resistindo à política de saneamento do novo presidente.
No que concerniu à saúde pública, foi nomeado, em março de 1903, o médico Oswaldo Cruz como o diretor geral de saúde. Cruz iniciou seu trabalho pelo combate à febre amarela, empregando os mesmos métodos utilizados por Carlos Finlay e Walter Reed, de forma exitosa, em Cuba. Esse método incluía a separação de doentes em hospitais e o extermínio das larvas dos mosquitos vetores, bem como a drenagem dos bolsões de água estagnada das partes baixas da cidade. Além disso, criou o Serviço de Profilaxia da Febre Amarela e aumentou os quadros de médicos e funcionários da Diretoria de Saúde Pública. Com um estilo militar de viés autoritário, a campanha contra a febre amarela foi posta em marcha, nos primeiros meses de 1904, sob o comando das brigadas de saúde, conhecidas por “mata-mosquitos”.
Essas brigadas inspecionavam imóveis residências e comerciais, preenchendo formulários e mapas sanitários, orientando com folhetos acerca das medidas e cuidados que inquilinos e proprietários deveriam tomar para o combate à doença, fiscalizando e multando aqueles que descumpriam as determinações preconizadas pela Diretoria de Saúde Pública, promovendo evacuações, transferências e interdições, solicitando reformas ou promovendo demolições prediais, procedendo limpezas, pulverizações e desinfecções de imóveis e de seus entornos e isolando em domicílio ou removendo para hospitais os enfermos. Com relação à peste bubônica, a campanha seguiu de forma similar com o extermínio dos ratos e pulgas, higienização e desinfecção de ruas, passeios públicos, casas e construções comerciais e vacinação.
Essas ações tinham como foco as áreas mais pobres e com grande densidade populacional como morros, bairros afastados e casas de cômodos e cortiços. Efetivamente, os resultados obtidos por Cruz foram satisfatórios, apesar dos desconfortos que a entrada nas casas causava e da inquietação que os despejos, interdições e internações forçadas produziam na população do Rio de Janeiro. Todos os métodos de prevenção e controle empregados nas campanhas governamentais pela brigada sanitária, acabaram levando ao temor, hostilidade e ódio das classes sociais mais baixas contra os brigadistas, à contrariedade dos médicos que não estavam certos quanto aos procedimentos empregados e à oposição dos políticos ao governo federal.
Dando seguimento ao seu trabalho, Oswaldo Cruz se voltou para a erradicação da varíola que, no mesmo período dos combates à febre amarela e peste bubônica, vinha crescendo em número de casos, vitimando uma considerável quantidade de pessoas e apresentando uma importante recalcitrância em relação às medidas de controle e prevenção até então propostas pela Diretoria Geral de Saúde. Conforme determinação dessa diretoria, os indivíduos doentes deveriam ser recolhidos aos hospitais da cidade para tratamento, contudo, de fato, o número de pessoas que recebia atendimento médico-hospitalar era muito reduzido, estando a maior parte dos enfermos com varíola fora dos hospitais e, portanto, sem assistência médica. Não obstante haver diversos postos de saúde espalhados no Rio de Janeiro para a vacinação, a procura da população pela imunização era extremamente baixa. Diante do crescente aumento dos casos de varíola e da reduzida procura pela vacinação nos postos de atendimento, o governo viu como única solução ao combate à infecção que não cedia, o retorno à obrigatoriedade de vacinação.
A ideia da vacinação obrigatória, todavia, sofreu inúmeros reveses. A imprensa teve papel ativo [e ambivalente] contra a obrigatoriedade da vacinação, publicando diariamente denúncias, textos e depoimentos desfavoráveis à sua imposição e se colocando “ao lado” da população menos favorecida, bem como noticiando o movimento dos políticos adversários do governo do presidente Rodrigues Alves contrários a essa proposição. A resistência à vacinação obrigatória partiu também da Igreja [de diferentes denominações e crenças] com seu discurso teológico não intervencionista e do Centro das Classes Operárias com sua oposição sindical ao projeto sanitário. Muitos médicos e militares também se mostravam refratários à prática da vacinação obrigatória.
No âmbito legislativo, foram travadas intensas batalhas. Importante mencionar, inicialmente, que a Constituição de 1891 não reconhecia o direito à saúde como uma garantia constitucional. Essa lacuna era superada, de algum modo, por decretos e leis que visavam o estabelecimento de um ordenamento jurídico-sanitário. Dos que merecem destaque, podem ser citados o Decreto no. 1.151 de 05 de janeiro de 1904, que tratava da reorganização dos serviços de higiene administrativa da União, o Decreto no. 5.156 de 08 de março de 1904, que estabeleceu novo regulamento para os serviços sanitários da União, e o Decreto no. 5.157 igualmente de 08 de março de 1904, que aprovou o regulamento do Serviço de Profilaxia da Febre Amarela. De maneira geral, no bojo desses decretos estavam a organização da Diretoria Geral de Saúde Pública, a criação de um Código Sanitário, o estabelecimento de uma justiça sanitária, a criação das brigadas sanitárias e a definição das práticas de controle, prevenção e profilaxia geral e específica das doenças infecciosas. No entanto, a grande polêmica que desencadeou, inclusive, importantes enfrentamentos políticos, ficou a cargo da Lei no. 1.261 de 31 de outubro de 1904, que tratava da obrigatoriedade da vacinação e revacinação contra a varíola em todo o país.
Apesar da menor resistência política quando da aprovação dos decretos sanitários pelo legislativo, mesmo ainda como projeto de lei em tramitação, a Lei no. 1.261 foi motivo de intensos debates no Senado e na Câmara dos Deputados, repercutindo, inclusive, diretamente sobre a população da capital. Nessas discussões, o governo afirmava que a vacinação contra a varíola era de grande interesse para a promoção da saúde do povo brasileiro, tendo em vista as inúmeras áreas de endemicidade da virose no país, sendo a maior delas, na cidade do Rio de Janeiro. Em contraponto, os argumentos da oposição eram que os métodos de execução da lei se mostravam violentos, a vacina era de qualidade discutível e os funcionários aplicadores, enfermeiros e policiais encarregados da execução da campanha não eram técnica e moralmente confiáveis. A população, por sua vez, traumatizada pela experiência pouco agradável com as ações sanitárias [muitas das vezes desastrosas] da Diretoria Geral de Saúde Pública nas campanhas de combate à febre amarela e à peste bubônica iniciadas em abril de 1903 e na execução do novo Código de Higiene [batizado de forma irônica de “Código das Torturas”, “Nova Inquisição” e “Santo Ofício da Higiene”] aprovado em fevereiro/ março de 1904, bem como pela ocorrência da morte de Cypriana Maria Leonarda imputada à vacina em julho de 1904 e pela percepção de que a consciência de cada um é que deveria guiar a livre decisão de se vacinar ou não, engrossaram o coro dos descontentes com as condições de aplicação e o caráter compulsório da lei.
Após a aprovação da lei em 31 de outubro de 1904, essa entraria em vigor a partir de 11 de novembro de 1904, sendo que sua regulamentação sob a forma de decreto da Diretoria Geral de Saúde ficou a cargo de Oswaldo Cruz. A proposta de Cruz era extremamente rígida e incluía a imposição de vacinação a todas as fachas etárias (recém-nascidos, jovens, adultos e idosos), exames e reexames, multas pesadas, demissões sumárias e limitado direito de defesa e/ ou recurso judicial e administrativo. O objetivo era alcançar o maior número de pessoas imunizadas de maneira rápida, sem obstáculos e nem dificuldades. Não houve, contudo, maiores preocupações com questões de âmbito psicológico, emocional, material e financeiro da população. Na verdade, o governo esperava submissão total e incondicional.
Com uma insatisfação crescente cuja origem remontava os tempos do império e o início da república e perpassava por autoritarismos e políticas de dominação, lutas de classe, movimentos subversivos, pobreza, ignorância e superstição, reforma urbana e redistribuição espacial de grupos sociais e empoderamento das ciências médicas, a revolta foi sendo construída e atingiu sua culminância em novembro de 1904.
As agitações começaram efetivamente em 10 de novembro de 1904, após a publicação no jornal “A Notícia”, no dia anterior, dos duros termos do regulamento que vinha sendo elaborado por Oswaldo Cruz. Grandes aglomerações se formaram na rua do Ouvidor, na Praça Tiradentes e no Largo de São Francisco onde a população discursava contra a lei da vacina e seu regulamento e pedia a sedição popular. Na Praça Tiradentes, populares entraram em conflito com a polícia jogando pedras, vaiando e gritando slogans e palavras de ordem como “Morra a Polícia” e “Abaixo a Vacina”. No final dos confrontos, 15 pessoas foram presas.
No dia 11 de novembro de 1904, o movimento passou a contar com a participação da Liga contra a Vacina Obrigatória, criada em 05 de novembro de 1904, pelos opositores do governo do presidente Rodrigues Alves. Para o dia 11, foi convocado um comício no Largo de São Francisco, porém, como os líderes da Liga não compareceram, oradores populares tomaram a cena, proferindo discursos inflamados e mantendo os ânimos exaltados. Com ordem para intervir, a polícia foi recebida pelos manifestantes sob vaias e provocações. As tentativas de prisões foram rechaçadas pelos populares que se armaram de paus, pedras e ferros dos canteiros de obras das reformas do centro da cidade. A polícia revidou com agressões físicas, houve correria e perseguições, tiros foram ouvidos, lojas, bancos e repartições públicas cerraram as portas. Cerca de 18 pessoas foram presas.
No dia 12 de novembro de 1904, uma nova concentração popular foi convocada pela Liga contra a Vacina Obrigatória na sede do Centro das Classes Operárias, na rua Espírito Santo, próximo à Praça Tiradentes. Nova aglomeração de manifestantes foi formada no Largo de São Francisco. Após algum tempo, no entanto, puseram-se em marcha pelo centro da cidade e pelos bairros da Lapa, Glória e Catete, exortando personalidades, instituições e jornais favoráveis ao movimento e gritando palavras de ordem com ataques e vaias a autoridades, políticos e militares que apoiavam a obrigatoriedade de vacinação. Em vários pontos do trajeto da passeata, ocorreram confrontos entre a população revoltosa e a polícia, inclusive com troca de tiros. O Exército foi convocado para guardar o Palácio do Catete, sede da Presidência da República. Lauro Sodré e Barbosa Lima, líderes da Liga contra a Vacina Obrigatória, tentaram assumir o comando do movimento popular com a intenção de atribuir um sentido político à revolta. Em associação com as lideranças do Centro das Classes Operárias, eles aproveitaram o movimento para iniciar uma conspiração com o objetivo de derrubar o governo, através de um Golpe de Estado.
No dia 13 de novembro de 1904, o conflito se generalizou e o que se viu foi uma violenta reação popular que, como um rastilho de pólvora, se espelhou rapidamente pelas ruas do centro da cidade e dos bairros adjacentes. A população enfurecida, por onde passava, destruía bondes, postes de luz, combustores de gás, calçamentos e árvores e vegetações das praças e passeios públicos. Além disso, foram atacadas repartições públicas, delegacias, quartéis [quartel de cavalaria], companhias de bondes, lojas e gasômetros. Barricadas e trincheiras foram levantadas nas ruas. Querosene, armas e dinamites foram roubadas de casas comerciais e instituições militares e policiais ou doadas por simpatizantes. As autoridades, percebendo que estavam perdendo o controle, tentaram pôr fim aos conflitos intensificando a presença dos contingentes do Exército, Marinha, polícia e Guarda Nacional para patrulhamento em diferentes regiões da cidade e guarnecimento de prédios públicos e locais estratégicos. Nesse momento, o principal motivo pelo qual a revolta foi deflagrada [a obrigatoriedade da vacinação e os métodos rígidos de controle das doenças infecciosas] sofreu certo deslocamento e o foco passou a ser os serviços públicos precários, o governo e sua política excludente e as forças de repressão.
No dia 14 de novembro de 1904, os manifestantes tomaram de assalto duas delegacias no centro da cidade, destruíram combustores de gás, linhas telefônicas e veículos de obras públicas, levantaram novas barricadas e atacaram a estação das barcas e algumas fábricas como o Moinho Inglês e as Velas Esteáricas. Intenso tiroteio foi travado entre os manifestantes e as tropas do governo. A cidade foi dividida em três zonas de patrulhamento, sendo o litoral de responsabilidade da Marinha, o norte da avenida Passos de responsabilidade do Exército e o sul da avenida Passos de responsabilidade da polícia. Somado a isso, foram trazidos reforços dos batalhões de Niterói, São Paulo e Minas Gerais.
Concomitante a todos esses eventos, um Golpe de Estado continuava sendo planejado com o concurso de Lauro Sodré e militares sediciosos. Programado inicialmente para o dia 17 de novembro de 1904, em decorrência de uma denúncia de conspiração pela imprensa, o “golpe” foi antecipado para o dia 15 de novembro, durante o desfile militar pelo Dia da Independência, que não aconteceu. Duas escolas militares estavam também envolvidas nesse plano de sedição. A Escola Preparatória e Tática de Realengo, comandada pelo general Hermes da Fonseca, e a Escola Militar da Praia Vermelha. Efetivamente, a penas a escola da Praia Vermelha se engajou no levante e se envolveu em um combate armado com as tropas governamentais. Interessante notar que, num dado momento, parte das tropas do governo passou para o lado dos revoltosos, havendo um cessar fogo e um abandono de ambas as tropas do local de combate. Nessa ocasião, várias pessoas que participaram da tentativa de golpe foram presas e outras tantas mortas pelas forças militares leais ao presidente Rodrigues Alves.
No dia 16 de novembro de 1904, diante dos conflitos que já duravam 6 dias, o governo decretou Estado de Sítio e decidiu revogar a obrigatoriedade da vacina, desarticulando os revoltosos e sufocando o movimento. O Estado de Sítio foi prorrogado em duas oportunidades, em 14 de dezembro de 1904 e 15 de fevereiro de 1905. Em setembro de 1905, o Congresso anistiou todos os civis e militares participantes dos acontecimentos de novembro de 1904.
Com o fim dos conflitos, as campanhas de vacinação prosseguiram num certo curso natural. Nos anos seguintes, as taxas de mortalidade declinaram, se tornando praticamente zero, demonstrando a efetividade da vacina. Importa reiterar, contudo, que foi a obrigatoriedade e não a eficácia da vacina, num primeiro momento, o estopim da revolta que, na verdade, entre outras questões, denunciava a precariedade das relações sociais e institucionais vivida pela população brasileira daquela época.
Em termos sanitários, a “Revolta da Vacina” intensificou as discussões sobre saúde e saneamento, o que determinou a reestruturação dos diversos programas e serviços de saúde pública que passaram a ser fundamentados em ações governamentais que visavam o controle e a prevenção de doenças e outros agravos de forma essencialmente científica com o emprego de dados estatísticos e epidemiológicos e com a participação mais consciente da população.
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