Bioética e relato de casos clínicos

Editorial/Editorial

 

Bioética e relato de casos clínicos

Bioethics and case reports

 

DOI: 10.21877/2448-3877.Edit.v49.n1.01

 

 

Desde a Antiguidade, casos clínicos têm sido parte integrante da literatura médica e científica, sendo reportados sob a forma de um único caso ou sob a forma de uma série de casos.(1) Os relatos de caso divulgam a observação clínica colhida durante a prática médica, cirúrgica ou laboratorial, fornecendo informações acerca de doenças novas, raras ou com apresentações pouco usuais, métodos de diagnóstico e efeitos benéficos ou adversos de diferentes estratégias terapêuticas. Os relatos de caso permitem também a detecção de inovações, formulações de hipóteses para avaliações clínicas futuras, mudanças na prática clínica, condução de terapias individualizadas e estudos de farmacovigilância.(2,3) Outros atributos encontrados em relatos de casos clínicos são a estrutura textual flexível, o tempo de publicação mais reduzido, o custo de realização baixo, a integração entre a área acadêmica e a clínico-hospitalar e a possibilidade de treinamento e aprendizado em instituições de ensino e pesquisa.(4)

Apesar de sua indiscutível utilidade, casos clínicos podem apresentar importantes limitações relativamente à impossibilidade de generalizações ou extrapolações, utilização em estudos epidemiológicos e determinação da causalidade, baixa evidência científica e viés de publicação, ênfase em condições clínicas atípicas e equívocos de interpretação, subjetividade, perda ou veracidade questionável da informação e problemas de confidencialidade.(4,5)

Para que relatos de casos clínicos possam atender ao objetivo precípuo de narrar estritamente um evento médico-cirúrgico, que tenha sido vivenciado por um ou mais pacientes atendidos em um determinado estabelecimento de assistência à saúde e guiar a prática clínica ou informar um desenho de estudo clínico, sua redação deve seguir um protocolo definido.(2) A despeito de algumas variações de estrutura, um relato de caso deve conter, em linhas gerais, um título, resumo, palavras-chave, introdução, informação do paciente, achados clínicos, cronologia dos fatos, avaliação diagnóstica, intervenção terapêutica, acompanhamento e resultados clínicos, discussão, conclusão, perspectiva do paciente, consentimento informado, referências, tabelas e figuras.(2,6,7) Dentro dessa estrutura, cada seção deve conter informações precisas, a fim de atender à construção de um texto com o mínimo de rigor científico.(6,7)

Nesse sentido, o Título deve ser uma descrição acurada, relevante e convincente do que se pretende apresentar.(8) Para um Título mais informativo, quatro elementos podem ser incluídos: o tipo de intervenção, o resultado da intervenção, o paciente ou a população sob estudo e a condição clínica de interesse.(7) As expressões relato de caso ou caso clínico eventualmente podem ser empregadas.(5)

O Resumo é um sumário do caso clínico escrito, que tem como função oferecer ao leitor uma apresentação rápida e organizada do artigo, destacando suas partes mais importantes.(7) O Resumo pode ser estruturado e conter os seguintes tópicos: introdução, métodos (ou relato de caso), resultados, discussão e conclusão. A introdução do Resumo deve estabelecer claramente a proposta do artigo, definindo seus objetivos e sua pertinência educacional. No tópico métodos, devem ser apresentadas as partes principais do caso, focando os aspectos primários da condição clínica do paciente, do diagnóstico e das técnicas de intervenção. Nos resultados, deve ser sumarizada a resposta do paciente à intervenção, incluindo as mudanças nas medidas de desfecho. A discussão deve mencionar concisamente a contribuição do caso para a literatura e conduzir à conclusão final.(5,7)As Palavras-Chave devem apresentar os elementos principais do caso e serem listadas entre dois a cinco termos ou descritores. Esses termos devem estar relacionados na base de dados do Medical SubjectHeadings (MeSH) contida no MedLine/PubMed, ou na base de dados dos Descritores em Ciências da Saúde [DeCS], relacionados na Biblioteca Virtual em Saúde – BVS (Bireme).(7,9)

 

 

 

A Introdução do caso clínico deve descrever claramente o propósito de sua publicação, demonstrando como o caso colabora com a prática clínica ou com a literatura. Ela deve situar o contexto do caso clínico em relação à informação previamente publicada, incluindo, por exemplo, a taxa de incidência da doença e sua morbi­mortalidade e os casos similares reportados. Além disso, a problemática social da doença, a definição de terminologias utilizadas, uma revisão da literatura e os objetivos para a apresentação do caso podem estar presentes.(7,10)

Após a Introdução, o caso clínico é efetivamente descrito na seção Relato de Caso. Essa descrição deve ser procedida de forma cronológica com a apresentação sucessiva dos fatos clínicos. Somado a isso, a informação deve ser suficientemente clara e detalhada para permitir um perfeito entendimento do caso. Fotografias ou ilustrações, tabelas, gráficos e esquemas podem ser utilizados para uma melhor compreensão do que está sendo reportado.(10) De maneira frequente, nessa parte da publicação há uma apresentação geral do paciente e suas características demográficas (idade, sexo e ocupação), queixa clínica e sintomas principais, história clínica, intervalo de tempo dos fatos clínicos, antecedentes familiares e psicossociais, medidas de desfecho primário, métodos de avaliação, investigação e diagnóstico, achados clínicos e laboratoriais, protocolos de intervenção terapêutica, acompanhamento do curso ou progresso clínico, eventos ou resultados clínicos finais.(11)

A Discussão é uma etapa do caso clínico de importância crucial. Ela tem como propósito explicar, comparar e fundamentar o caso clínico com o que tem sido publicado por outros autores, bem como sumarizar os aspectos essenciais ou centrais do diagnóstico clínico-laboratorial, evolução clínica e estratégia terapêutica relatados. Nessa seção, uma revisão conscienciosa da literatura deve ser conduzida.(5,11) A reiteração da validade e singularidade do caso deve estar também presente. Adicionalmente, a objetividade do caso deve ser demonstrada. A acurácia do caso clínico deve ser ainda avaliada. A produção e derivação de novos conhecimentos e a aplicabilidade prática do caso, no que tange ao suporte às decisões clínicas, devem ser apresentadas e discutidas. É importante se discutirem igualmente as diferenças e limitações do caso, suas implicações para a generalização dos achados e seu impacto clínico. Os pontos de vista, hipóteses, sugestões ou recomendações clínicas devem ser elucidados ou esclarecidos e justificados.(7) A introdução de tabelas que enumerem o que foi reportado em casos clínicos publicados anteriormente, figuras, gráficos, fotografias e ilustrações podem permitir uma melhor organização da informação e um maior detalhamento e compreensão dos dados.(7,11) A Conclusão deve ser concisa e breve, em um único parágrafo, focando no que foi aprendido e resumindo as recomendações apresentadas e propostas.(10)

As Referências devem ser usadas para comparações com a literatura publicada e para suportar hipóteses, argumentos e recomendações. Nessa seção, longas listas devem ser evitadas, bem como devem ser evitados artigos de revisão ou atualização. Preferencialmente, devem ser utilizados artigos originais, recentes e selecionados por sua relevância e qualidade.(5,7,11)

Não há dúvidas da importância do relato de casos clínicos para o ensino e a pesquisa em medicina e saúde.(12) No entanto, a publicação desse tipo de literatura pode conter elementos que levem a questionamentos éticos ou bioéticos. Nesse contexto, duas situações devem ser criticamente consideradas: o consentimento informado e a confidencialidade ou privacidade.(13) O consentimento informado é a garantia de autonomia do indivíduo, o que permite que ele seja o agente de mudanças do seu próprio destino. O assentimento para que intervenções médicas sejam realizadas, ou para a participação em pesquisas clínicas, deve ser dado livremente e baseado no mais amplo e irrestrito conhecimento acerca dos riscos e dos benefícios potenciais.(14) A condição clínica do paciente, no que lhe concerne, é uma informação privada e a história que dela decorre não pertence nem ao profissional e nem à instituição que o assiste. Um controle da confidencialidade e da privacidade para a proteção contra a disseminação ou a externalização dessa informação deve fazer parte de qualquer sistema de cuidados médicos.(13)

Essas duas premissas, o consentimento esclarecido e a confidencialidade, devem estar presentes em toda publicação que envolva o trabalho com seres humanos.(15) Assim sendo, em tese, um relato de caso deveria também levar em conta tais pressupostos e ser encaminhado a um Comitê de Ética. Todavia, não há consenso acerca da necessidade de se submeter um relato de caso a um tratamento bioético mais estrito.(16) Há um entendimento de que relatos de caso, empregados de forma restrita no ensino médico, com objetivos meramente educacionais, devam ser diferenciados das pesquisas envolvendo seres humanos. Nesse sentido, o envio a um órgão consultivo e deliberativo, como o Comitê de Ética em pesquisa, talvez pudesse ser prescindido. De outro modo, contudo, há também o entendimento de que relatos de caso devam ser considerados pesquisa com seres humanos, o que, conforme a Resolução CNS 466/2012, que regulamenta essa matéria no país, passaria a ter a necessidade de uma aprovação anterior à sua realização e de uma autorização prévia e formal dos participantes da pesquisa.(15)

Numa tentativa de ordenar o entendimento sobre a questão ética dos relatos de caso, tem sido proposto dividi-los em caso individual e série de casos.(16) Concei­tualmente, um relato de caso individual seria aquele artigo publicado com até três casos clínicos, enquanto que a publicação de mais de três casos passaria a configurar uma série de casos.(15) Dessa forma, um conjunto de até três casos clínicos poderia ser considerado como uma simples observação assistencial, não planejada e sem objetivos e projeto anteriores. Assim, por sua excepcionalidade, tendo em vista possuir características peculiares ou extraordinárias, um relato de caso individual teria poucas condições de ser submetido previamente a um Comitê de Ética. De maneira inversa, todavia, mais de três casos clínicos seria considerado pesquisa com seres humano e, por conseguinte, necessitaria da aprovação prévia do projeto de pesquisa por um Comitê de Ética.(14)

Apesar dos relatos de casos individuais eventualmente não serem considerados pesquisas científicas, sua publicação deve obedecer a princípios éticos definidos.(13) Como já mencionado, o mais importante seria a obtenção de uma autorização documentada e a preservação dos dados de identificação do paciente. Nesse sentido, o consentimento documentado poderia ser obtido de duas formas: através do próprio prontuário ou através de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE.(16) A utilização de prontuários pode ser uma alternativa válida para documentar essa autorização, desde que contenha informações adequadas ao perfeito entendimento da proposta da publicação. Estando de acordo, o paciente ou seu representante assinaria no prontuário, autorizando especificamente a publicação desse relato de caso.(15) O uso do TCLE, no entanto, pode não ser apropriado, já que seu modelo está normalmente vinculado às especificações de Comitês de Ética ou revistas científicas e os relatos de caso individuais se caracterizam por serem mais incidentais do que intencionais, não sendo possível, na maioria das vezes, nem prevê-los e nem definir antecipadamente o local de sua realização ou publicação.(16)

Outra questão relacionada com a autorização de pacientes é a ocasional dificuldade ou impossibilidade de sua obtenção pela não localização do indivíduo atendido.(14) Nesta situação, pode-se fazer contato com o Comitê de Ética da instituição, por meio de uma comunicação a essa instância, informando os fatos e solicitando uma manifestação formal. Não havendo, contudo, um Comitê de Ética na instituição, pode-se buscar um comitê externo, a princípio entre aqueles indicados pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP. O uso de um Termo de Compromisso de Utilização de Dados – TCUD pode ser também proposto, quando forem empregadas informações coletadas de prontuários ou base de dados.(15,16)

Por sua vez, a confidencialidade pode ser garantida num relato de caso individual pela não revelação de iniciais e nomes de pacientes, números de identificação de documentos pessoais, prontuários e telefones, datas relacionadas à vida civil, dados digitais ou informações virtuais, endereço residencial e profissional e origem geográfica específica.(16) Importa considerar que a confidencialidade é a preservação de informações sensíveis, dadas ou obtidas em confiança e sigilo.(14)

Um procedimento que pode assegurar o respeito ao consentimento informado e à confidencialidade dos dados é a avaliação e revisão do texto produzido, antes da submissão do relato de caso individual para a publicação, certificando, desse modo, o cumprimento dos aspectos éticos.(13) Sendo assim, o relato de caso individual poderia ser enviado ao Comitê de Ética, após o artigo estar pronto para a publicação, seguindo um caminho contrário ao naturalmente percorrido, já que não se trata de um projeto de pesquisa, cuja submissão ao Comitê de Ética ocorre obrigatoriamente antes do início das atividades de investigação.(13,15)

 

 

Referências

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Paulo Murillo Neufeld, PhD                                       

Editor-Chefe da Revista Brasileira de Análises Clínicas (RBAC)