Síndrome de hiperinfecção e/ou disseminação por Strongyloides stercoralis em pacientes imunodeprimidos
Hyperinfection syndrome and/or dissemination by Strongyloides stercoralis in immunosuppressed patients
Adriana Trajano Torres de Santana1
Melina Bezerra Loureiro2
1Estudante. Curso de Farmácia. Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN – Natal-RN, Brasil.
2Doutora. Curso de Farmácia. Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN – Natal-RN, Brasil.
Instituição: Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN – Natal-RN, Brasil.
Artigo recebido em 02/12/2014
Artigo aprovado em 01/02/2016
DOI: 10.21877/2448-3877.201600331
Resumo
A estrongiloidíase é causada principalmente pelo Strongyloides stercoralis, que afeta cerca de 30 a 100 milhões de pessoas em todo o mundo, sendo encontrada com maior frequência em países de clima tropical e subtropical. Usualmente, as infecções causadas por esse parasita são crônicas e assintomáticas, podendo persistir por décadas sem ser diagnosticada. Porém, em indivíduos imunodeprimidos, essa infecção pode se desenvolver para quadros mais graves como hiperinfecção e/ou disseminação, considerados como as formas que causam maior índice de mortalidade. Este trabalho relata, a partir de uma revisão da literatura, a associação do desenvolvimento da infecção causada pelo Strongyloides stercoralis em imunodeprimidos e a capacidade de evolução do parasita em indivíduos que fazem uso de corticosteroidoterapia, ressaltando a importância do diagnóstico precoce para evitar as formas graves da doença.
Palavras-chave
Estrongiloidíase; Strongyloides stercoralis; Imunocomprometimento
INTRODUÇÃO
A estrongiloidíase, também conhecida por estrongiloidose ou anguilulose, foi descoberta pela primeira vez em 1876, quando foram observadas larvas do parasita nas fezes dos soldados franceses que apresentavam um quadro de diarreia intensa, ficando conhecida como “diarreia da Conchinchina”, no sudeste da Ásia. Está doença é causada por duas espécies de helmintos do gênero Strongyloides, o Strongyloides fuellerborni e o Strongyloides stercoralis, sendo este último considerado a espécie mais comum e de maior importância clínica para o homem.(1)
Strongyloides stercoralis é um dos patógenos mais comuns distribuídos mundialmente e de grande importância clínica, que infecta cerca de 30 a 100 milhões de pessoas em todo o mundo. A estrongiloidíase é uma infecção global emergente que é subestimada em muitos países. Esta doença é considerada endêmica (infecção de 1%-5%), especialmente na Europa Central, Sudeste da Ásia, América Latina e na África subsaariana. Nas regiões não endêmicas do mundo, é diagnosticada principalmente em indivíduos imigrantes de países endêmicos, pessoas que trabalham com o solo (como em minas de carvão e fazendas) e pacientes que apresentam alterações na imunidade celular, enquanto que a infecção causada pelo Strongyloides fuellerborni ocorre esporadicamente na África e no sudeste da Ásia.(2)
O aumento contínuo na taxa de infecção é atribuído à falta de higiene pessoal, água potável insuficiente, medidas sanitárias insatisfatórias e à falta do conhecimento sobre a doença nas populações de alto risco. Muitos relatos de casos sobre o surgimento da doença em diferentes partes do mundo, consideradas como regiões não endêmicas, estão sendo publicados. A predominância destes estudos está associada a pacientes diagnosticados com doenças imunossupressoras, pacientes em tratamento com corticosteroides, receptores de órgãos transplantados e pacientes com doenças hematológicas malignas ou outras doenças debilitantes. Globalmente, as taxas de estrongiloidíase foram consideradas tão elevadas, chegando a 50%, principalmente em regiões que apresentam solo úmido (África Ocidental, Sudeste da Ásia e regiões tropicais do Brasil).(2) A infecção causada por esse helminto é assintomática ou oligossintomática, porém pode assumir quadros de extrema gravidade sob a forma de uma síndrome de hiperinfecção e/ou disseminação, como também pode persistir por décadas no hospedeiro e não ser diagnosticada.(3) Os casos de Síndrome de Hiperinfecção por Strongyloides (SHS) são caracterizados pelo aumento do número de larvas que são excretadas nas fezes ou no escarro em conjunto com outros sintomas do trato gastrointestinal e respiratório, em que nesta fase da doença as larvas estão confinadas nos sítios onde o ciclo parasitário normalmente ocorre – pele, pulmão e intestino.(1) Já quando as larvas são encontradas em outros órgãos, como, por exemplo, cérebro, fígado e rins, a estrongiloidíase passa a ser conhecida como a forma disseminada, sendo esta forma considerada a mais grave e de maior índice de mortalidade.(4)
O presente trabalho teve como objetivo fazer uma abordagem da relação do desenvolvimento do Strongyloides stercoralis em pacientes imunodeprimidos, dando ênfase às possíveis doenças ou drogas utilizadas que pudessem debilitar a ação do sistema imunológico, a partir de uma revisão da literatura, tendo como ferramenta embasadora livros e artigos científicos disponíveis em revistas e periódicos. Para o desenvolvimento dessa pesquisa, foram utilizadas como fonte de busca as bases de dados: PubMed, SciELO, ScienceDirect, periódicos Capes. Foram utilizados artigos nacionais e internacionais disponíveis online em textos completos, aplicando os seguintes descritores: Strongyloides stercoralis; Estrongiloidíase em indivíduos imunodeprimidos; Síndrome de hiperinfecção por S. stercoralis. Em Inglês foram utilizados como descritores strongyloidiasis; strongyloidiasis in immunocompromised individuals; immune response to helminth infections; hyperinfection by strongyloides. As fontes bibliográficas incluídas foram aquelas que abordavam a relação do desenvolvimento do helminto nesses pacientes causando a síndrome de hiperinfecção/disseminação, e foram excluídas aquelas que não se encontravam dentro da temática abordada.
Caracterização do Strongyloides stercoralis
O Parasito
O nematelminto S. stercoralis pertence à ordem (superfamília) Rhabdiasoidea, família Strongyloididae. Dentre as espécies do gênero Strongyloides, este parasita é o que está mais adaptado ao parasitismo dos seres humanos, mas pode infectar outros primatas, como cães e gatos. Outras espécies de estrongiloides também podem infectar o homem, porém restringem-se a formas larvárias que invadem a pele, não tendo a capacidade de completar o ciclo, causando somente sintomas de larva migrans cutânea (larva de 3º estágio dos helmintos).(5)
É considerada uma espécie dimorfobiótica, ou seja, apresenta uma morfologia parasitária e outra de vida livre distinta, intercalando no ciclo evolutivo. As fêmeas partenogenéticas são responsáveis por constituir a forma parasitária, possuem aspecto filiforme, medindo 1,7 mm a 2,5 mm de comprimento. Vivem habitualmente na mucosa ou submucosa do intestino delgado, sobretudo no duodeno e porção inicial do jejuno. Reproduzem-se por partenogênese e os ovos embrionados eclodem dando origem às larvas rabditoides ou de primeiro estágio (L1), que apresentam um esôfago do tipo rabditoide com dilatações nas extremidades e um vestíbulo bucal curto. Essas larvas dão origem às larvas filarioides, ou de terceiro estágio (L3), que são longas e afiladas, apresentando uma ponta entalhada em uma de suas extremidades, sendo caracterizadas por possuírem um esôfago muito longo, o que corresponde à metade de seu comprimento. Têm a capacidade de invadir os tecidos, sendo consideradas as formas infectantes.(6) As larvas L3 liberam substâncias como as metaloproteinases, que auxiliam na penetração e na migração das mesmas através dos tecidos, até atingir pequenos vasos, chegando ao pulmão, onde atravessam os capilares alveolares e os bronquíolos, sendo transportadas junto com as secreções brônquicas até atingir a traqueia e a laringe. Quando já estão no estágio L4 são deglutidas atingindo o trato gastrointestinal e se alojando na mucosa intestinal, ficando nas glândulas de Lieber Kuhn, para posteriormente se transformarem nas fêmeas partenogenéticas, que iniciam a oviposição dando origem às larvas rabditoides.(7)
O duplo ciclo evolutivo é uma característica peculiar do S. stercoralis, o que permite ao parasita a sobrevida mesmo na ausência de um hospedeiro, conferindo assim uma capacidade de sobrevivência superior aos demais nematódeos. Durante esse ciclo, as larvas que são consideradas não infectantes podem dar origem a machos e fêmeas de vida livre ou se tornar infectantes, devido às fêmeas partenogenéticas serem triploides (3n), e liberar de forma simultânea três tipos de ovos que, posteriormente, darão origem a três tipos diferentes de larvas, sendo as haploides (n), que se transformam em machos de vida livre, e as diploides (2n), que originarão as fêmeas de vida livre, e também as larvas triploides (3n), que são responsáveis em dar origem às larvas filarioides.(8)
A Doença
A estrongiloidíase causada pelo S. stercoralis é uma doença bastante variável, que depende do grau da infecção ocasionada pelo helminto e do estado imunológico do indivíduo. Usualmente é de cunho assintomático, podendo persistir por décadas sem ser diagnosticada. Na forma sintomática, os pacientes geralmente apresentam problemas gastrointestinais, respiratórios e dermatológicos.(6)
Esta doença pode ser classificada de acordo com as manifestações clínicas apresentadas, dividindo-as em: infecção aguda, infecção crônica, SHS e na forma disseminada. A infecção aguda é incomum de se diagnosticar na prática clínica, no entanto, alguns trabalhos relatam sintomas como reação local no sítio de entrada da larva, tosse, irritação traqueal (mimetizando uma bronquite, devido à passagem das larvas pelo pulmão), diarreia aquosa, cólicas, inchaços abdominais e, em alguns casos, constipação, devido ao alojamento e maturação das larvas no intestino delgado. Já a infecção crônica, geralmente também é assintomática; entretanto, manifestações gastrointestinais (vômitos intermitentes, prisão de ventre e diarreia) e pulmonares (tosse e sintomas similares à asma) podem ocorrer. Prurido anal e manifestações dermatológicas, como urticária e larva currens, e síndrome nefrótica também estão associadas com estrongiloidíase crônica. Em relação à SHS, que está relacionada a diferentes tipos de imunocomprometimentos, como, por exemplo, os iatrogênicos (uso de corticoides sistêmicos para tratamento de asma, Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES), artrite reumatoide), ou decorrente da associação do parasita com outras doenças que comprometem o sistema imunológico, como infecção pelo vírus linfotrópico das células T humanas (HTLV- I), alcoolismo, doenças hematológicas, transplantes de órgãos e Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), apresenta-se de forma insidiosa com febre, dor abdominal, anorexia, náuseas, vômito e diarreia causada pelo grande e crescente número de larvas que colonizam o intestino. E a forma disseminada, quando se observa a migração das larvas para os órgãos além do ciclo pulmonar de autoinfecção, tais como fígado, coração e sistema nervoso central. Possui uma elevada taxa de mortalidade e está geralmente associada a infecções bacterianas secundárias, como pneumonia, meningite, endocardite, sepse e peritonite causada por enterobactérias ou eventualmente por fungos, que muitas vezes pode “mascarar” a infecção causada pelo helminto.(5)
A infecção pelo S. stercoralis pode ocorrer por meio da heteroinfecção ou primoinfecção, que se dá pela penetração das larvas filarioides pela pele, mucosa oral, esofágica e gástrica; também pode ocorrer por uma autoinfecção externa, quando as larvas radbitoides, que ficam alojadas na região perianal, se transformam nas formas infectantes e acabam penetrando pela pele dessa região; ou na autoinfecção interna, quando as larvas radbitoides evoluem para as formas filarioides ainda na luz intestinal, podendo assim causar quadros de hiperinfecção e disseminação.(9)
Imunidade
O desenvolvimento da infecção por S. stercoralis depende da interação entre o hospedeiro e o parasita, que, em determinadas situações, acaba ocorrendo um desequilíbrio em favor do último, originando a hiperinfecção.(10)
Nas infecções helmínticas, a resposta imune celular dominante é a do tipo Th2. Quando essas células desta resposta são diferenciadas, reconhecem os antígenos e produzem IL- 4, que estimula a produção de anticorpos IgE pelas células B e IL- 5, que ativam os eosinófilos. Estes, quando ativados, liberam seus grânulos, que contêm proteínas tóxicas para os helmintos, e os anticorpos IgE ligados ativam mastócitos, que secretam citocinas para atrair mais leucócitos, garantindo uma maior defesa do sistema imunológico para expulsar os parasitas do intestino. As células do tipo Th2 também são produtoras da citocina IL- 13, que age nos fibroblastos aumentando a síntese de colágeno e a fibrose, e, juntamente com IL- 4, podem favorecer a expressão de receptores de manose, ativando assim os macrófagos que vão participar do reparo tecidual e contribuir no dano tecidual ocasionado nas infecções crônicas por parasitas. Em conjunto, as IL- 4 e IL- 13 podem induzir um peristaltismo que, junto com o muco produzido a partir das secreções das células caliciformes, facilita a expulsão dos helmintos.(10) Os eosinófilos atuam como células apresentadoras de antígenos, aumentando a produção de citocinas IL- 4, IL- 5 e IL- 13, e também na produção de anticorpos específicos, como IgE, IgM e IgG, favorecendo a eliminação do parasita.(11)
Na infecção por S. stercoralis, a eosinofilia é mais frequente quando comparada com outras parasitoses, devido à fêmea partenogenética habitar dentro da submucosa do intestino e não no lúmen intestinal, provocando a reação eosinofílica mais intensa. Embora os mecanismos dependentes de eosinófilos possam causar a morte das larvas filarioides de Strongyloides, não são suficientes para proteger completamente o hospedeiro da infecção. Apesar disso, a ausência é um sinal de mau prognóstico para infecção causada pelo S. stercoralis, principalmente quando se trata de pacientes imunocomprometidos.(12) Em casos de autoinfecção, a resposta imune humoral desempenha um papel importante no controle da infecção, uma vez que a IgA controla a quantidade de larvas excretadas, inibindo a fecundidade do parasita e a viabilidade dos ovos.(13) Além disso, os mastócitos presentes no intestino liberam proteoglicanas sulfatadas que dificultam a fixação do helminto no epitélio intestinal e estimulam a contração muscular, contribuindo para a eliminação do parasita.(14) Segundo Blankenhaus et al., as infecções por Strongyloides podem estimular as células T regulatórias (Treg), que, por sua vez, suprimem a resposta imune protetora, como a ativação de eosinófilos dependentes de IL-5, representando um mecanismo de evasão do parasita.
Alterações das respostas imunes mediadas por células do tipo Th2 podem levar a quadros de hiperinfecção e disseminação, principalmente em pacientes em uso de glicocorticoides. Estes fármacos possuem um amplo efeito inibitório na resposta imune mediada por linfócitos T e B, bem como um potente efeito supressor das funções efetoras dos monócitos e neutrófilos.(12) A SHS tem sido descrita em pacientes que fazem uso contínuo de glicocorticoide, independentemente da dose. Até mesmo regimes de pouca duração (6-17 dias), em pacientes imunocompetentes, podem estar associados com a hiperinfecção e disseminação da doença.(16)
Muitos parasitas, ao longo da evolução, desenvolveram mecanismos de escape do sistema imunológico, particularmente da resposta imune adaptativa, garantindo sua permanência no hospedeiro. Além da capacidade de evasão, o parasita também tem a capacidade de suprimir a resposta imune e se alojar em órgãos e células que são inacessíveis ao sistema de defesa do nosso organismo, dificultando, com isso, a ação do mesmo para que se tenha a eliminação desses parasitas.(17)
Epidemiologia
Estudos realizados por Pires e Dreyer,(18) mostraram que o S. stercoralis é um parasita amplamente distribuído, porém sua prevalência é maior nas regiões tropicais e subtropicais, podendo ser classificada como esporádica (<1% nos Estados Unidos, Europa e Ásia), endêmica (1%-5%, nas regiões subtropicais) e hiperendêmica (> 5%, nas regiões tropicais).
Mesmo sendo considerada uma parasitose de elevada prevalência mundial, principalmente em países subdesenvolvidos, a estrongiloidíase só foi adicionada recentemente pela Organização Mundial de Saúde (OMS) na lista de doenças parasitárias negligenciadas. Em países desenvolvidos, onde as condições socioeconômicas e sanitárias são adequadas, os principais fatores de risco para adquirir a infecção são o turismo e a imigração. Um estudo desenvolvido por Sudarshi et al.,(19) em um hospital de Londres, com 192 casos de infecção por S. stercoralis, verificou que, entre estes, 64 (33%) viajaram para áreas endêmicas e 128 (67%) imigraram de países que apresentavam alta prevalência dessa parasitose. Outro fator que está relacionado com o desenvolvimento da estrongiloidíase nos países desenvolvidos é o trabalho com agricultura e jardinagem, podendo ser visto em um estudo realizado por Magnaval no ano de 2000,(20) no qual, dos 17 casos de estrongiloidíase autóctone da França, 13 desses pacientes tinham contato direto com o solo devido às atividades de jardinagem que desenvolviam.
O Brasil é considerado uma área de elevada endemicidade, apresentando faixa de infecção que varia de menos de 5% até 80%, sendo que essas variações ocorrem em função da idade da população estudada e também em função das diferenças geográficas e socioeconômicas. Além das desigualdades sociais, o processo de urbanização de forma desordenada acaba contribuindo para as condições de vida precárias de uma grande parcela da população, refletindo no aumento do desenvolvimento de infecções por parasitas intestinais. Devido a essa infecção apresentar uma ocorrência de aproximadamente 5,5% nas cinco regiões brasileiras, o país foi caracterizado como uma área hiperendêmica, passando a ser incluído no Plano Nacional de Vigilância e Controle de Enteroparasitoses, no ano de 2005 e, dois anos depois, no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), os quais fornecem ações de saneamento básico, com intuito de garantir uma melhoria na qualidade de vida da população e assim conseguir diminuir os casos de infecção por este helminto.(21)
Em regiões onde o vírus HTLV-I apresenta elevada endemicidade, observa-se que a população infectada por este vírus apresentou uma alta prevalência de coinfecção por S. stercoralis. Outros estudos também relatam que, no início da epidemia da AIDS, a estrongiloidíase teria elevada prevalência nessa população, inclusive de suas formas graves; embora existam relatos de casos de estrongiloidíase disseminada em pacientes aidéticos, essa parasitose não se encontra entre os eventos oportunistas mais importantes. Além destes, outro fator que está interligado com o desenvolvimento da infecção por este helminto é o uso frequente de corticosteroides ou de alguma outra droga que cause imunodepressão.(22)
Doenças infecciosas e o uso de drogas imunossupressoras relacionadas ao desenvolvimento da estrongiloidíase
Indivíduos imunodeprimidos são considerados uma população de risco para o desenvolvimento de estrongiloidíase grave, em que a hiperinfecção/disseminação está relacionada com uma síndrome de autoinfecção acelerada, que, em muitos casos, está associada com algum comprometimento no sistema imune. Os primeiros relatos de infecção disseminada ou hiperinfecção foram publicados por Cruz e colaboradores (1966) e Rogers e Nelson (1966), que documentaram a ocorrência de estrongiloidíase fatal associada ao linfoma e ao uso de corticoides. Entre as várias condições imunossupressoras associadas com a estrongiloidíase grave, o uso de glicocorticoides, alcoolismo e a infecção pelo retrovírus HTLV-I são as mais frequentes.(23)
Um dos principais grupos de pacientes imunocomprometidos é formado pelos indivíduos que fazem uso de fármacos imunossupressores para o tratamento de linfoma, artrite reumatoide, LES e para prevenir a rejeição de órgãos transplantados. Dentre todos os medicamentos imunossupressores prescritos para essas doenças, os glicocorticoides são os mais frequentemente associados com a transformação da estrongiloidíase crônica na SHS.(1) Dois principais mecanismos estão envolvidos para que ocorra essa transformação: o primeiro está relacionado ao aumento da apoptose de células Th2, o que reduz o número de eosinófilos e inibe a resposta dos mastócitos, levando ao agravamento da infecção; e o segundo é a elevação da concentração de derivados de glicocorticoides, que, por sua similaridade com a ecdisona, hormônio que regula a fecundidade das fêmeas partenogenéticas e a transformação das larvas rabditoides em filarioides infectantes, leva a quadros de SHS.(8) O mesmo mecanismo é observado em pacientes etilistas, provavelmente devido ao efeito do álcool no eixo hipotálamo-pituitária-adrenal, que eleva os níveis de corticosteroides endógenos. Além disso, o álcool também altera a morfologia das vilosidades intestinais e pode interferir na permeabilidade e na motilidade intestinal, favorecendo a transformação das larvas rabditoides em filarioides, elevando o risco de autoinfecção. Como a estrongiloidíase ainda apresenta dificuldade para ser diagnosticada devido ao parasita ter um ciclo biológico bastante peculiar e também por se tratar de uma doença que muitas vezes é assintomática, indivíduos que apresentam infecções latentes ou subclínicas podem desenvolver outras doenças fatais muitos anos depois de ter saído da área endêmica. Assim, estudos relatam que uma melhor forma para prevenir a hiperinfecção nos pacientes cronicamente infectados é tratando-os de forma profilática antes de se iniciar uma terapia imunossupressora.(24)
Foi observada no Brasil uma prevalência de 11,8% de estrongiloidíase em pacientes imunocomprometidos, segundo Paula et al.(25) Nesse mesmo estudo, foi constatada uma coinfecção dessa parasitose em pacientes que apresentavam o vírus HIV. Até a década de 90, a hiperinfecção pelo S. stercoralis era considerada uma infecção oportunista em pacientes soropositivos, porém, devido à ausência de quadros graves de estrongiloidíase nessa época, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) acabou excluindo a hiperinfecção por Strongyloides como um dos critérios de suspeita para o diagnóstico da AIDS. A AIDS é caracterizada por apresentar uma modulação da resposta imune onde observa-se um aumento das citocinas do perfil Th2 e uma diminuição das citocinas do perfil Th1, devido à destruição das células TCD4+ através do efeito citopático do vírus, ou pela citotoxicidade das células TCD8+; sendo assim, o padrão dominante da resposta imune em pacientes infectados pelo vírus HIV é do tipo Th2, o que favorece infecções por outros parasitas e não por helmintos (S. stercoralis). Brown e colaboradores (2004) demonstraram que não há associação entre a infecção por S. stercoralis e o aumento da carga viral em pacientes infectados com HIV, mas, devido ao profundo estado de imunossupressão desenvolvido na AIDS, eventualmente pode haver um aumento no risco de hiperinfecção ou disseminação dessa helmintíase.(22)
Outro estado sobre imunossupressão que está envolvido com a transformação da estrongiloidíase crônica para hiperinfecção/disseminação é em casos de pacientes que apresentam o vírus HTLV-I. Em regiões onde esses dois agentes são endêmicos, além da forma de estrongiloidíase disseminada, pode também ocorrer o desenvolvimento da estrongiloidíase recorrente. Este vírus apresenta uma alta prevalência no Brasil, América Central e África, e em regiões com elevada incidência de doenças infectoparasitárias. O HTLV-I é o agente causal da mielopatia associada ao vírus ou paraparesia espástica tropical (HAM/TSP) e da leucemia /linfoma de células T do adulto (ATLL), infecta predominantemente células T, induzindo ativação e proliferação celular com produção de concentrações elevadas de citocinas associadas com resposta Th1, como IL12, Fator de Necrose Tumoral alfa (TNF-a) e interferon gama (INF- g). Alguns estudos de corte transversal revelam que pacientes infectados pelo HTLV-I têm mais predisposição para desenvolver doenças parasitárias, virais e bacterianas quando comparados com indivíduos soronegativos para este vírus. Portadores que apresentam a associação do HTLV-I com S. stercoralis acabam tendo falha terapêutica no tratamento da estrongiloidíase, podendo ser comprovado em um estudo que observou, num universo de 33 pacientes infectados apenas pelo helminto, que 31 obtiveram a cura da doença quando tratados com tiabendazol, enquanto que, em outro estudo, em um universo de 55 pacientes coinfectados, só foi observada a cura em apenas 39 deles quando tratados com o mesmo medicamento, o que comprova a falha do sistema imune no combate ao helminto em pacientes que apresentam alguma outra doença que cause imunossupressão.(26)
A coinfecção com HTLV-I e S. stercoralis está relacionada com a gravidade da estrongiloidíase. A hiperinfecção pelo S. stercoralis é explicada pela resposta imune dos indivíduos coinfectados pelo HTLV-I. Pacientes soropositivos para o HTLV-I produzem grande quantidade de IFN-g quando comparados com indivíduos soronegativos. A produção desta citocina modula negativamente a resposta Th2. A infecção pelo HTLV-I em indivíduos com estrongiloidíase desvia o foco da resposta Th2, a qual é dirigida contra o helminto. Assim, nesta associação, a produção de citocinas do tipo 2, principalmente IL-4 e IL-5, é diminuída, como também a produção de IgE contra antígenos do parasita. A redução da produção de citocinas e de IgE constitui a base do aumento da susceptibilidade à infecção pelo S. stercoralis. Dessa forma, os pacientes coinfectados com HTLV-I e S. stercoralis podem desenvolver estrongiloidíase crônica e a forma disseminada da doença. Além das células Th1 e Th2 estarem envolvidas na resposta imune celular e humoral, outro tipo de células T, as regulatórias (Treg), são responsáveis pela modulação da resposta imune. As células Treg, que são CD4+ CD25+ produzem IL-4, IL-10 e TGF-b. Montes e colaboradores (2010) mostraram que a frequência de células T regulatórias é maior em indivíduos coinfectados do que em pacientes somente infectados pelo S. stercoralis, e que este aumento correlacionou-se com a diminuição da produção de IL-5 e a contagem total de eosinófilos em indivíduos coinfectados.(27)
Existem evidências que a infecção pelo S. stercoralis influencia o curso clínico da infecção pelo HTLV-I. A ATLL está relacionada ao longo tempo de infecção pelo HTLV-I, não sendo comum em indivíduos jovens. Porém, observou-se que pacientes com ATLL coinfectados pelo S. stercoralis eram mais jovens do que os pacientes não infectados pelo helminto, sugerindo assim que o período de latência do vírus que leva ao desenvolvimento da ATLL é reduzido quando o indivíduo é coinfectado pelo S. stercoralis. No entanto, Plumelle e colaboradores (1997) mostraram uma melhor sobrevida dos pacientes com ATLL e S. stercoralis (167 dias), enquanto que nos pacientes somente com ATLL a sobrevida foi de apenas 30 dias. Estes achados sugerem que a infecção por helmintos pode alterar a clínica de doenças relacionadas com maior proliferação de células T. Com relação à mielopatia associada ao HTLV-I (HAM/TSP), estudos demonstraram que há uma associação entre HAM/TSP e coinfecção pelo helminto S. stercoralis.(27)
A ocorrência de disseminação da estrongiloidíase vem sendo avaliada cada vez mais em casos de pacientes que fazem transplantes de órgãos ou enxertos mesmo quando estes não se encontram em áreas endêmicas. Este fato é explicado quando altas doses de uma terapia imunossupressora são utilizadas para evitar rejeição ou por algum defeito da imunidade celular. Os pacientes transplantados estão no grupo de risco para desenvolver a SHS pelo fato de serem considerados mais susceptíveis à contaminação pela forma crônica da infecção quando comparados com outros grupos de pacientes.(28)
Estudos revelam que pacientes sujeitos a transplantes de órgãos devem utilizar a ciclosporina, uma droga imunossupressora que suprime as reações imunológicas que causam rejeição de órgãos transplantados devido à mesma apresentar uma atividade antiparasitária direta, o que pode fornecer proteção contra a síndrome de hiperinfecção. Porém, em alguns relatos de casos de pacientes transplantados foi utilizado o tacrolimus como droga imunossupressora, cuja finalidade é reduzir a atividade do sistema imune após o transplante, a fim de evitar rejeição; entretanto, essa droga ocasiona uma redução na atividade dos linfócitos T e IL2, auxiliando no desenvolvimento do S. stercoralis e, consequentemente, na disseminação do mesmo, devido a um aumento no ciclo de vida do parasita e, por consequência, um aumento no ciclo reprodutivo das larvas que começam a migrar para vários outros órgãos.(28)
Embora a literatura apresente poucos relatos de casos de estrongiloidíase disseminada em pacientes diabéticos, é importante destacar que, por mais que a transmissão do S. stercoralis seja independente do paciente ser ou não diabético, deve ter um controle devido ao seu risco de mortalidade nas formas graves. Como o diabetes é uma desordem metabólica frequente em todo o mundo, a frequência da associação entre o parasita e esse distúrbio metabólico é de extrema importância. Em um relato de caso, onde o paciente apresentava uma terapia com prednisona e azatioprina por via oral para tratamento de pênfigo vulgar, um ano depois foi diagnosticado com Diabetes mellitus provavelmente secundária a terapia por esteroides, e três anos depois, mesmo o paciente não estando em área endêmica foi verificada a presença de Strongyloides em diferentes estágios de maturação, demonstrando assim que existe uma correlação de forma indireta entre pacientes diabéticos e estrongiloidíase.(10) Podemos sugerir que esse mecanismo ocorre porque os esteroides podem gerar uma resistência à insulina, fazendo com que o corpo se torne incapaz de absorvê-la corretamente, e, com isso, o aparecimento do diabetes induzido por esteroides.
Outro quadro descrito na literatura associado a esse parasita foi o desenvolvimento de úlceras gástricas em um indivíduo que apresentava, em seu histórico médico, hipertensão arterial e asma, porém não fazia uso de corticosteroides inalados ou quaisquer outros medicamentos que interferissem no mecanismo do sistema imunológico. Nesse relato de caso, só foi possível identificar a presença do S. stercoralis após a realização de uma biópsia na qual foi constatada a presença de ovos e vermes adultos e pela elevada quantidade de eosinófilos. Pacientes infectados por esse nematódeo correm o risco de desenvolver úlceras gastrointestinais devido à própria ação do sistema imunológico quando está atuando no combate contra o helminto, uma vez que, durante a ação das interleucinas para destruir o parasita, a IL5, que atua na diferenciação e maturação dos eosinófilos, e estes, por apresentarem em sua composição granulações tóxicas favoráveis para destruir o parasita, também acabam se tornando prejudiciais para as microvilosidades intestinais, acarretando a formação de poros e facilitando a entrada de outras substâncias tóxicas, e, consequentemente, causando degeneração no epitélio gastrointestinal com a formação de úlceras.(29)
A hiperinfecção por S. stercoralis também é considerada fatal quando diagnosticada em pacientes que apresentam mieloma múltiplo, uma neoplasia maligna que resulta da proliferação monoclonal e difusa de células plasmáticas na medula óssea, representando cerca de 10% das neoplasias malignas hematogênicas. Pacientes diagnosticados com esse tipo de neoplasia apresentam como conduta terapêutica protocolos utilizando quimioterápicos e radioterapia em conjunto; nesse caso, quando indivíduos que se encontram em áreas consideradas endêmicas para o Strongyloides apresentarem esse tipo de anormalidade imunológica intrínseca terão uma maior probabilidade para o desenvolvimento da hiperinfecção e disseminação da estrongiloidíase pelo fato de esses fatores (mieloma múltiplo e quimioterapia) causarem diminuição na atividade do sistema imunológico, favorecendo a síndrome de hiperinfecção. A SHS, associada ao mieloma múltiplo, apresenta uma ocorrência de 2,5%, sendo a maioria dos infectados do sexo masculino.(30) Como a terapia imunossupressora apresenta um desfecho elevado para o desenvolvimento do parasita, outras complicações secundárias, como infecções bacterianas e quadros de meningite, são consideradas de grande importância para o agravamento da hiperinfecção, uma vez que, durante a migração das larvas, através do epitélio intestinal, bactérias se disseminam causando septicemia com taxas de mortalidade de 50% a 86%.(27)
Estudos relevam que, em indivíduos saudáveis, a eosinofilia é maior quando comparada com indivíduos imunocomprometidos. Outro aspecto relevante é em relação à associação da estrongiloidíase com o HIV, em que pessoas que apresentam essa coinfecção têm um número de eosinófilos menos significativo quando comparado com indivíduos que se apresentam infectados pelo parasita e outras doenças crônicas ou fazem uso de drogas imunossupressoras. Uma série de casos de estrongiloidíase recentes mostrou que, em 33 destes casos, em um grupo de cinco pacientes, dois (40%) com síndrome de hiperinfecção apresentaram quadros de eosinofilia, o que mostra a ligação da produção dessas células quando o indivíduo se encontra parasitado. A falta de eosinofilia em pacientes mais graves, com síndrome de hiperinfecção ou disseminação, é bastante provável, sendo causada por uma fraca ou deficiente resposta do perfil Th2; com isso, essa ausência de eosinofilia periférica indica um mau prognóstico, podendo contribuir para a não identificação da infecção parasitária, facilitando no desenvolvimento e disseminação do parasita.(11)
Considerações finais
Os pacientes imunodeprimidos que apresentam algum histórico de exposição ao Strongyloides stercoralis devem ter um acompanhamento clínico e laboratorial de forma periódica, ressaltando a importância da realização do exame parasitológico de fezes para que se tenha uma detecção precoce dessa infecção e, assim, estabelecer um tratamento adequado, prevenindo a ocorrência da estrongiloidíase na sua forma grave.
Apesar de ser uma infecção frequentemente leve, esse grupo de indivíduos, principalmente os que fazem uso de corticosteroidoterapia, podem apresentar-se na forma de hiperinfecção e/ou disseminação, que, na maioria das vezes, está relacionada com o aumento no índice de mortalidade, ocasionado pelo Strongyloides stercoralis.
Abstract
The Strongyloidiasis is mainly caused by Strongyloides stercoralis which affects about 30 to 100 million people around the world, being found in greater frequency in countries with tropical and subtropical climates. Usually, the infections caused by this parasite are asymptomatic and chronic, that can persist for decades without being diagnosed. However, in immunocompromised individuals this infection can develop into more serious conditions such as hyperinfection and/or dissemination, considered the ways that cause the highest mortality rates. This paper reports the association of the development of infection caused by Strongyloides stercoralis in immunosuppressed and the development capacity of the parasite in individuals who make use of corticosteroidoterapia from a literature review, emphasizing the importance of early diagnosis to prevent severe forms of the disease.
Keywords
Strongyloidiasis; Strongyloides stercoralis; Immunocompromise
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Correspondência
Adriana Trajano Torres de Santana
Av. General Gustavo Cordeiro de Farias, S/N,
Faculdade de Farmácia – Petrópolis,
59022-200 – Natal – RN, Brasil