Recomendações da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas – SBAC quanto à preservação de amostras de urina, para fins forenses, de indivíduos do sexo feminino sob suspeita de abuso sexual

Recommendations from the Brazilian Society of Clinical Analysis – SBAC regarding the preservation of urine samples for forensic purposes from female individuals suspected of sexual abuse

 

 

Hemerson Bertassoni Alves1, Mauren Isfer Anghebem2, Ana Paula Giolo Franz3, Flávia Martinello4, Maria Elizabeth Menezes5

 

1  Farmacêutico, Doutor em Genética Forense pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Perito Criminal da Polícia Científica do Paraná, Professor Adjunto do Centro Universitário Santa Cruz, Curitiba, PR, Brasil.

2  Farmacêutica, Doutora em Ciências Farmacêuticas/Análises Clínicas, Professora Adjunta da Escola de Medicina e Ciências da Vida da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e Professora Adjunta do Departamento de Análises Clínicas da Universidade Federal do Paraná/UFPR, Curitiba, PR, Brasil. Membro do Grupo Técnico-Científico da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas – SBAC.

3  Biomédica, Doutoranda em Bioexperimentação, Laboratório de Análises Clínicas do Hospital de Clínicas de Passo Fundo, Passo Fundo – RS, Brasil. Membro do Grupo Técnico-Científico da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas – SBAC.

4  Farmacêutica, Pós-doutora em Análises Clínicas, Professora do Departamento de Análises Clínicas da Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC, Florianópolis, SC, Brasil. Membro do Grupo Técnico-Científico da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas – SBAC.

5  Farmacêutica, Doutora em Ciências (Microbiologia) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Assessora do Programa Nacional de Controle de Qualidade. Membro do Grupo Técnico-Científico da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas – SBAC.

 

INTRODUÇÃO

 

A presença de espermatozoides em amostras de urina de crianças e adolescentes do sexo feminino menores de 14 anos deve ser reportada em laudo pelo laboratório(1,2) e notificada ao Conselho Tutelar ou à Vara da Infância e Juventude ou ao Ministério Público, em respeito à Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente)(3) e ao Decreto-Lei nº 2.848/40 (Código Penal),(4) sob risco de infração criminal.

A amostra de urina pode conter vários elementos, como as células da uretra peniana e vaginal e espermatozoides,(5)que podem ser utilizados para fins de identificação humana forense. Por meio da comparação entre amostras referência e células espermáticas, é possível a identificação do autor do delito em casos de violência sexual. A detecção de espermatozoides auxilia na comprovação da ocorrência de ato sexual e a análise de DNA subsequente pode levar à identificação do suposto autor.(6)

A coleta de urina é uma opção não invasiva em casos de suspeita de abuso sexual, uma vez que é possível detectar vestígios de DNA ligado ao cromossomo Y (marcador sexual masculino) e de espermatozoides na urina de pacientes do sexo feminino até 24 horas após a penetração peniana-vaginal. São necessários mais estudos para determinar exatamente o efeito do tempo na detecção de espermatozoides em amostras de urina após suposto ato sexual não consentido, no entanto, evidências mostram que os espermatozoides podem ser observados após ato sexual em urinas de pacientes em período menstrual, bem como pacientes que urinaram previamente ou tomaram banho antes da realização da coleta de urina.(6,7)

Em virtude da escassez de material científico, este artigo tem como objetivo propor procedimentos e orientações referentes à cadeia de custódia da amostra e à preservação da amostra de urina para fins forenses de identificação genética humana.

 

CADEIA DE CUSTÓDIA DA AMOSTRA

 

Considera-se Cadeia de Custódia da Prova Pericial, segundo a Lei 13964/2019 que atualizou o Código de Processo Penal, o “conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte”.(8)

Na hipótese do Laboratório de Análises Clínicas ser notificado para preservação de uma amostra de urina para fins de identificação humana forense, ele deve respeitar as premissas dos artigos 158-A ao art. 158-F do Código de Processo Penal Brasileiro, cujas normas foram publicadas e instituídas pela Lei Federal 13.964/2019.(8) O laboratório passa a ser fiel depositário da amostra sob demanda judicial, ou seja, assume a guarda da amostra e não poderá descartá-la até que o processo esteja encerrado, sob pena de responder por perdas e danos (artigo 640 do Código Civil).(9)

Em suma, a amostra de urina deve ser registrada/cadastrada em meio eletrônico, pelo sistema de cadastro do Laboratório, com todas as informações identificadoras possíveis, como: nome, sobrenome, data, hora de coleta e demais informações relevantes sobre a urina e seu doador, descrevendo como a amostra chegou ao laboratório e quais procedimentos analíticos foram executados, possibilitando rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.

 

PRESERVAÇÃO DAS AMOSTRAS PARA
EXAMES GENÉTICOS

 

A preservação adequada de amostras de urina é crucial para garantir a integridade do DNA para exames genéticos de identificação humana. O armazenamento em condições de frio e técnicas de manuseio assépticas são fundamentais para obter resultados precisos e confiáveis. Além disso, a comunicação clara com o laboratório que realizará a análise genética é importante para garantir que os métodos de preservação e transporte sejam adequados às necessidades específicas do exame.(10)

Tecnicamente, qualquer matriz congelada que não tenha influência de inibidores da reação em cadeia da polimerase (PCR – polymerase chain reaction), incluindo a urina, pode ficar guardada por longos períodos.(10)

 

Procedimento técnico

A depender da situação, o laboratório de análises clínicas deverá proceder da seguinte forma, sempre garantindo a cadeia de custódia:

 

  1. Amostra primária de urina para identificação genética coletada no próprio laboratório ou em outro local:

Amostras de urina de crianças e adolescentes do sexo feminino menores de 14 anos suspeitas de contaminação por material seminal, coletadas no próprio laboratório ou coletadas em outro local (hospital, clínica, escola, creche, residência) e enviadas ao laboratório de análises clínicas para análises forenses, devem ser processadas da seguinte maneira:

  1. Separar uma alíquota de 10 mL de urina em tubo estéril e, caso ainda tenha amostra de urina, guardar o tubo primário devidamente identificado em freezer a -20 ºC até o encerramento do processo.
  2. Centrifugar o tubo estéril a 2000-3000 g, por 10-15 minutos;
  3. Descartar o sobrenadante com auxílio de pipeta e ressuspender o pellet (sedimento) no próprio resíduo líquido urinário;
  4. Congelar esta amostra em tubo tipo eppendorf, em freezer a -20 ºC ou, preferencialmente, em freezer a -80 ºC.
  5. Registrar esta amostra congelada no sistema do laboratório para o envio aos laboratórios indicados pela justiça, seguindo as recomendações contidas na RDC ANVISA 504/2021,(11) ou suas atualizações, que dispõe sobre as boas práticas para o transporte de material biológico humano.
  6. Repetir os passos 1 a 5, mantendo uma amostra guardada no laboratório para análise de contraprova.

 

  1. Amostra de urina já processada para posterior identificação genética

Se for identificada a presença de espermatozoides durante a análise microscópica do sedimento urinário de crianças e adolescentes do sexo feminino menores de 14 anos, o achado deve ser reportado conforme sugerido no Posicionamento da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas (SBAC) sobre o relato da presença de espermatozoides em amostra de urina,(2) e uma alíquota deste material deve ser preservada para fins de exame de identificação genética.

 

O procedimento para o armazenamento é o seguinte:

  1. Separar duas alíquotas do pellet (sedimento) em tubo tipo eppendorf, sendo uma alíquota para a prova e outra, para a análise de contraprova. Caso ainda tenha amostra de urina no tubo primário, guardá-lo devidamente identificado, em freezer a -20 ºC, até o encerramento do processo.
  2. Congelar ambos os tubos em freezer a -20 ºC ou, preferencialmente, em freezer a -80 ºC.
  3. Registrar estas amostras congeladas no sistema do laboratório para o envio aos laboratórios indicados pela justiça[*], seguindo as recomendações contidas na RDC ANVISA 504/2021.(10)

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

  1. Conselho Federal de Medicina. Parecer CFM nº 18/2024, de 27 de julho de 2024. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2024/18.
  2. Anghebem, Mauren Isfer; Franz, Ana Paula Giolo; Martinello, Flávia. Posicionamento da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas (SBAC) sobre o relato da presença de espermatozoides em amostra de urina – 2024. Comissão de Publicações da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas – SBAC. RBAC. 2024; 56(3):133-137.
  3. Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, 27 set. 1990.7.
  4. Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, 3 jan. 1941.
  5. Kouri TT, Hofmann W, Falbo R, Oyaert M, Schubert S, Gertsen JB, Merens A, Pestel-Caron M; Task and Finish Group for Urinalysis (TFG-U), European Federation of Clinical Chemistry and Laboratory Medicine (EFLM). The EFLM European Urinalysis Guideline 2023. Clin Chem Lab Med. 2024 Jun 5;62(9):1653-1786.
  6. Smith DA, Webb LG, Fennell AI, Nathan EA, Bassindale CA, Phillips MA. Early evidence kits in sexual assault: an observational study of spermatozoa detection in urine and other forensic specimens. Forensic Sci Med Pathol. 2014 Sep;10(3):336-43.
  7. Joki-Erkkilä M, Tuomisto S, Seppänen M, Huhtala H, Ahola A, Karhunen PJ. Urine specimen collection following consensual intercourse – A forensic evidence collection method for Y-DNA and spermatozoa. J Forensic Leg Med. 2016 Jan; 37:50-4.
  8. Brasil. Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal. Diário Oficial da União, 29 abril 2021.
  9. Brasil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, 11 jan. 2002.
  10. Sambrook, Joseph; Russell, David William. Molecular cloning: a laboratory manual. 3. ed. New York: Cold Spring Harbor Laboratory Press, 2001.
  11. Resolução RDC nº 504, de 27 de maio de 2021. Dispõe sobre as boas práticas para o transporte de material biológico humano. Publicação: Diário Oficial da União, 31 maio 2021.

[*] O Laboratório notificado pela Justiça deve entrar em contato com o Laboratório de Análises Clínicas e/ou Forenses indicado pela Justiça para a realização das análises, para estabelecer procedimentos orientativos sobre o encaminhamento destas amostras.

 

 

Este artigo deverá ser citado como:

Alves, Hemerson Bertassoni; Anghebem, Mauren Isfer; Franz, Ana Paula Giolo; Martinello, Flávia; Menezes, Maria Elizabeth. Recomendações da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas – SBAC quanto à preservação de amostras de urina, para fins forenses, de indivíduos do sexo feminino sob suspeita de abuso sexual. RBAC. 2024; 56(3):143-145.