Prevalência de critérios não clássicos citológicos sugestivos de HPV na presença de vaginose bacteriana

 

Prevalence of non-classic cytological criteria suggestive of HPV in the presence of bacterial vaginosis

 

Ednéia Peres Machado1, Andrea Timóteo dos Santos Dec2, Sarah Galvão de Souza3, Gabriela Livai Fagundes3, Alana Betina Schram3

 

1  Universidade Estadual de Ponta Grossa – PR – Professora assistente. Ponta Grossa, PR, Brasil.

2  Doutora em Medicina – Universidade Estadual de Ponta Grossa. Professora Adjunta. Ponta Grossa, PR, Brasil.

3  Graduanda em Farmácia – Universidade Estadual de Ponta Grossa. Ponta Grossa, PR, Brasil.

 

Recebido em 24/04/2020

Aprovado em 08/03/2022

DOI: 10.21877/2448-3877.202201984

 

INTRODUÇÃO

 

A vaginose bacteriana (VB) é a infecção vaginal de maior prevalência em mulheres em idade reprodutiva e sexualmente ativas. Caracteriza-se por uma síndrome resultante de supercrescimento da microbiota anaeróbia obrigatória ou facultativa vaginal, como Gardnerella vaginalis, Mobiluncus spp., Mycoplasma hominis, Ureaplasma urealyticum, Prevotella sp., Porphyromonas spp., Bacteroides sp., Peptostreptococcus spp. e Atopobium vaginalis, com ausência ou diminuição de Lactobacillus que tem função de proteção deste ambiente.(1)

A Gardnerella vaginalis, isolada com maior frequência na VB, é um cocobacilo Gram-variável, anaeróbio facultativo, que habita a mucosa vaginal e eventualmente pode ocasionar infecções no trato geniturinário, sorologicamente distinto, em virtude da ausência de células inflamatórias.(2)

A Gardnerella vaginalis é Gram-variável devido a uma fina camada de peptidoglicano, constituindo cerca de 20% do peso molecular da parede celular, semelhante aos 23% encontrados em Escherichia coli e com percentual muito menor que o observado em estafilococos, estreptococos e lactobacilos. A Gardnerella vaginalis não contém em sua parede celular compostos normalmente encontrados nas bactérias Gram-negativas, como ácidos micólicos e galactanas.(3)

Cerca de 50% das mulheres podem ser portadoras assintomáticas, por isso o isolamento de Gardnerella vaginalis não indica, necessariamente, VB. Entretanto, a ausência desta bactéria quase sempre caracteriza ausência de VB.(4)

A VB aumenta o pH vaginal (acima de 4,5), causando corrimento abundante acinzentado e fétido (peixe em decomposição) oriundo da produção de aminopeptidases com formação das aminas putrecina, cadaverina e trimetilamina, que rapidamente se volatizam, e por serem citotóxicas ocasionam a esfoliação das células epiteliais e o corrimento vaginal.(5)

O diagnóstico laboratorial de escolha para pesquisa de VB é a bacterioscopia pelo Gram, método padronizado por Nugent,(6) que classificou as bactérias em morfotipos por um sistema de escore, atribuindo um valor quantitativo por campo de microscópio a Lactobacillus, Gardnerella vaginalis e Mobiluncus spp.

No entanto, a VB e outras alterações relacionadas às infecções do aparelho genital feminino podem ser determinadas pela citologia cervicovaginal corada pelo Papanicolaou, observando-se os próprios agentes e/ou as alterações inflamatórias decorrentes da ação dos mesmos. Neste caso, o diagnóstico de VB, realizado pelos critérios de Bethesda, é dado pela evidência de base nebulosa de pequenos cocobacilos, presença de clue cells e ausência de lactobacilos.(7)

O exame de Papanicolaou é o método de escolha para o rastreamento do câncer de colo do útero no Brasil e tem-se mostrado uma excelente ferramenta auxiliar no diagnóstico de vaginose.(8)

Em gestantes, a VB está associada a complicações obstétricas como infecções pós-operatórias, parto prematuro, doença de inflamação pélvica, cervicite e corioamnionite.(9) Além disso, a VB tem sido considerada um problema de saúde pública pela associação com diversas infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), incluindo o vírus da imunodeficiência humana (HIV), o vírus herpes simples tipo 2 (HSV-2), a Chlamydia trachomatis, Trichomonas vaginalis, Neisseria gonorrhoeae, e papilomavírus humano (HPV) com lesões intraepiteliais cervicais.(10)

A associação da VB como fator de risco para câncer cervical tem sido relatada pela produção de nitrosaminas carcinogênicas e o estímulo da liberação de citocinas como a interleucina-1 beta (IL-1β),(11) reduzindo a capacidade do sistema imunológico de eliminar a infeção pelo HPV.(12)

O método de Papanicolaou no rastreio do câncer cervical apresenta variação de sensibilidade entre 30% a 87%, com consequente emissão de resultados falsos negativos.(13)
A busca para melhorar a sensibilidade do teste de Papanicolaou levou à introdução de critérios morfológicos não clássicos ou secundários para diagnóstico citológico de HPV em adição aos critérios morfológicos ditos clássicos, ou seja, coilocitose e disceratose.(14)

As alterações celulares reativas não clássicas, de natureza benigna, são aumento nuclear (cariomegalia); binucleação ou multinucleação, ocasionalmente; nucléolos únicos ou múltiplos; o citoplasma pode apresentar policromasia, vacuolização ou halos perinucleares. Muitas vezes um núcleo benigno pode assumir proporções gigantescas com aumento do conteúdo de cromatina, porém sem critério conspícuo de malignidade. Além desses, disceratose leve, citoplasma limpo, grânulos de cerato-hialina, condensação de filamentos no citoplasma, células fusiformes e paraceratose são relatados como critérios não clássicos citomorfológicos para HPV.(7,14)

Este trabalho teve por objetivo identificar as alterações reativas celulares não clássicas para HPV na citologia pelo Papanicolaou, na presença de vaginose bacteriana classificada pelos critérios de Nugent pelo Gram.

 

MATERIAL E MÉTODOS

 

Este foi um estudo descritivo quantitativo, com estatística por frequência simples. As diferenças entre as variáveis foram calculadas pelos testes qui-quadrado, com significância de p<0,05, e kappa. A população-alvo deste estudo retrospectivo foi representada por 477 mulheres.

Os critérios de inclusão neste estudo foram amostras positivas para Gardnerella e/ou Mobiluncus com escore de Nugent no mínimo 1, ou seja, não necessariamente com diagnóstico laboratorial de VB, seguido da exclusão das amostras insatisfatórias pelo Papanicolaou.

As amostras satisfatórias pelo Papanicolaou apresentaram no esfregaço cervical pelo menos de 8.000 a 12.000 células escamosas e, no mínimo, 10 células endocervicais e/ou metaplásicas. Foram considerados insatisfatórios esfregaços obscurecidos em mais de 75% da preparação por sobreposição de células ou obscurecidas por leucócitos e/ou hemácias.

Desta forma, este estudo abordou 149 amostras que satisfizeram os critérios de inclusão de Nuget e de exclusão pela qualidade da amostra no Papanicolaou.

Foram coletados raspados de amostras cervicovaginais com auxílio de espátula de Ayre e escovinha cervical para pesquisa citológica pelo Papanicolaou, como também secreção de fundo de saco vaginal, com o auxílio de swab para pesquisa da microbiota vaginal pelo método de Gram. A bacterioscopia pelo Gram foi analisada em aumento de 1.000x e a citologia pelo Papanicolaou em aumento de 400x.

A VB foi classificada pelo Gram (padrão ouro) e quantificada de 1 a 4+, conforme o número de bactérias por campo microscópico: + para 1 a 5 por campo, ++ para 6 a 15 por campo, +++ para 16 a 30 por campo e ++++ quando acima de 30 por campo. Os resultados para VB foram interpretados pelo escore de Nugent, que consiste em identificar bacilos Gram-positivos (sugestivos de lactobacilos), bacilos curtos Gram-variáveis (sugestivos de Gardnerella vaginalis) e bacilos curvos Gram-negativos ou variáveis (sugestivos de Mobiluncus spp). Conforme a ausência ou presença de cada morfotipo bacteriano, Nugent estabeleceu uma pontuação, que somada é interpretada por um escore de 0 a 3, normalidade do ecossistema vaginal; de 4 a 6, resultado intermediário para VB; e de 7 a 10, desequilíbrio da microbiota vaginal normal caracterizando resultado positivo paraVB.(6)

Na citologia pelo Papanicolaou foram observadas as seguintes alterações reativas celulares: edema nuclear, paraceratose e binucleação, as quais foram quantificadas, em aumento de 400x, como rara diante da presença de alteração em uma célula a cada 20 campos, como moderada quando presente uma célula em 10 campos e como acentuada se presente uma célula a cada 5 campos microscópicos analisados pelo Papanicolaou.

Morfologicamente, os critérios seguidos para relatar as alterações reativas celulares foram:

Paraceratose em células escamosas superficiais com densas partículas alaranjadas ou eosinofílicas no citoplasma, vistas isoladamente, em folhas ou em verticilos, com formato redondo, oval, poligonal ou em forma de fuso, núcleos pequenos (aproximadamente 10μm), densos e picnóticos.

Edema nuclear na presença de aumento nuclear moderado, em até duas vezes o tamanho de um núcleo normal, sem quaisquer anormalidades significativas da cromatina em células escamosas.

Binucleação em células com distribuição normal de cromatina em células escamosas.

A presença de células escamosas atípicas de significado indeterminado possivelmente não neoplásicas (ASC-US) foi considerada positiva pela observação de pelo menos uma célula no esfregaço com esta alteração.

ASC-US, anormalidades nucleares associadas a citoplasma orangeofílico denso (paraceratose). Núcleos aproximadamente 2½ a 3 vezes o tamanho da área do núcleo de uma célula escamosa normal intermediária, binucleação e hipercromasia nuclear mínima com cromatina delicada e irregularmente distribuída.

 

ÉTICA

 

A população-alvo desta pesquisa foram mulheres que realizaram o exame preventivo do câncer de colo do útero, no ano de 2017, no projeto de pesquisa “Adequabilidade das amostras cervicovaginais de mulheres atendidas no projeto de extensão ‘Prevenção e educação na atenção à saúde da mulher: coleta de exame Papanicolaou’”, aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Estadual de Ponta Grossa, com parecer consubstancial nº 1.614.753.

 

RESULTADOS

 

Foram avaliadas 149 amostras, das quais 121 (81,20%) foram diagnosticadas com VB, pelos critérios de Nugent ≥ 7. Já pelos critérios de vaginose por Bethesda, 60 (40,26%) amostras foram diagnosticadas laboratorialmente com VB (Tabela 1).

Quanto às alterações reativas celulares oriundas de inflamação foram observadas pela coloração de Papanicolaou: binucleação em 52 (34,89%), edema nuclear em 78 (52,34%) e paraceratose em 28 (18,79%), quantificadas em ausente, rara, moderada e acentuada. ASC-US foram observadas em 3 (2,01%) das amostras (Quadro 1 e Figura 1).

As alterações reativas celulares (binucleação, edema nuclear e paraceratose) foram mais frequentes no escore Nugent ≥7. ASC-US foram observadas apenas com Nugent ≥7. Já frente aos critérios de Bethesda para VB, a frequência de binucleação e edema nuclear distribuiu-se de forma equivalente tanto na presença quanto na ausência de VB no Papanicolaou e a paraceratose foi mais frequente na ausência deste critério. ASC-US foram mais frequentes na presença dos critérios de Bethesda para VB (ver Tabela 1).

A presença de mais de um tipo de alteração reativa celular foi observada com edema nuclear e binucleação em 13 (8,72%) amostras, binucleação e paraceratose em 2 (1,34%), edema nuclear e paraceratose em 4 (2,68%) e edema nuclear, binucleação e paraqueratose em 3 (2,01%) amostras.

ASC-US não se fizeram presentes de forma isolada. Em uma amostra foi observado edema nuclear e, em duas, binucleação e edema nuclear.

O diagnóstico laboratorial de VB pelos critérios de Nugent e pelos critérios de Bethesda pelo teste estatístico de kappa demonstrou não haver concordância significativa entre os dois métodos (kappa=0,035 e p=0,542).

A associação entre a presença/ausência de alterações reativas celulares classificadas pelos critérios de Nugent e Bethesda para VB foi avaliada pelo teste do qui-quadrado, a qual não demonstrou concordância em nenhum dos dois critérios. Contudo, foram observadas apenas duas associações que se aproximaram de p<0,05, sendo a associação binucleação com os critérios de Nugent para VB com p=0,059 e edema nuclear com os critérios de Bethesda para VB com p=0,052 (Tabela 2).

 

Tabela 1

Frequências do critério de Nugent e presença de Nebulosa de acordo com as alterações reativas celulares

Alteração reativa celular Nugent Bethesda
< 7 ≥ 7 Ausente Presente
N % n % n % n %  
Binucleação Ausente 14 9,39 83 55,7 60 40,26 37 24,83  
  Presente 15 10,2 37 25,2 28 19,0 24 16,3  
  Escassa 14 9,5 32 21,8 25 17,0 21 14,3  
  Moderada 1 0,7 5 3,4 3 2,0 3 2,0  
Edema Ausente 15 10,06 56 37,58 49 32,88 22 14,76  
  Presente 14 9,5 64 43,5 39 26,5 39 26,5  
  Escasso 10 6,8 29 19,7 21 14,3 18 12,2  
  Moderada 4 2,7 25 17,0 15 10,2 14 9,5  
  Acentuada 0 0,0 10 6,8 3 2,0 7 4,8  
Paraceratose Ausente 27 18,12 94 63,08 73 48,9 48 32,21  
  Presente 2 1,34 26 17,7 15 10,2 13 8,8  
  Escassa 0 0 20 13,6 11 7,5 10 6,8  
  Moderada 2 1,34 6 4,1 4 2,7 3 2,0  
ASC-US Ausente 30 19 116 78,9 88 59,1 58 38,8  
  Presente 0 0 3 2 1 0,7 2 1,3  

Quadro 1

Dados quantificados das estruturas microscópicas observadas pelo método de Gram (1000x) e Papanicolaou (400x).

Microscopia Quantificação
Abs. %
Escore de Nugent (Gram) Normal 2 1,34
Intermediário 26 17,44
Vaginose bacteriana 121 81,20
Critérios de Bethesda (Papanicolaou) Nebulosa e clue cells 60 40,26
Binucleação Ausente 97 65,1
Rara 46 30,87
Moderada 6 4,0
Edema nuclear Ausente 71 47,65
Rara 39 26,17
Moderada 29 19,46
Acentuada 10 6,71
Paraceratose Ausente 121 81,20
Rara 20 13,42
Moderada 8 5,36
ASC-US Ausente 146 97,98
Presente 3 2,01

Nota: abs.= número absoluto, %= número em percentual.

Figura 1

Alterações reativas celulares pelo método de Papanicolaou e microbiota vaginal compatível em Gardnerella vaginalis e Mobiluncus sp pelo método de Gram.

Tabela 2

Valor de p no teste do qui-quadrado entre os critérios de Nugent e Bethesda para a vaginose bacteriana frente à presença de alterações reativas celulares

Alterações reativas Celulares Critérios para diagnóstico laboratorial
de vaginose bacteriana
  Critérios de Nugent Critérios de Bethesda
Binucleação p = 0,059 p = 0,326
Edema nuclear p = 0,117 p = 0,052
Paraqueratose p = 0,144 p = 0,779
ASC-US p = 0,528 p = 0,355

 

DISCUSSÃO

 

O diagnóstico de vaginose bacteriana evoluiu com o tempo. Dos critérios de Amsel que avaliam a presença de pelo menos três dos aspectos ,como o corrimento branco e homogêneo, pH vaginal acima de 4,5, teste de aminas com KOH a 10% e presença de clue cells como a característica mais específica e sensível de vaginose bacteriana,(15) ao escore de Nugent pela coloração de Gram, um método rápido, de baixo custo, altamente reprodutível e utilizado em muitos laboratórios, considerado como “padrão ouro” para o diagnóstico de VB bacteriana por ser mais sensível e específico.(9)

Já a cultura de Gardnerella vaginalis ou de bactérias anaeróbias não são recomendadas como método diagnóstico visto esses microrganismos serem observados em cerca de 50% de mulheres assintomáticas e pelo fato da presença de Gardnerella vaginalis por si só não ser uma indicação para tratamento, pois apenas as mulheres que preenchem os critérios diagnósticos para vaginose bacteriana são tratadas para essa condição.(16)

Também o método de Papanicolaou, cujo principal objetivo é o diagnóstico citológico do câncer, tem se mostrado útil na detecção de VB pela visualização de clue cells, alterações celulares apresentadas pela infecção e acentuada diminuição de lactobacilos.(17)

Este estudo demonstrou não haver concordância significativa entre os métodos de Gram e Papanicolaou (kappa=0,035 e p=0,542) para o diagnóstico de VB. Provavelmente esse resultado deu-se por questões intrínsecas aos métodos, desde a técnica de coleta de material necessária para a realização do exame a que se destina cada método até o objetivo das técnicas em si. A prevalência de VB foi maior pelo método de Nugent, e possivelmente essa condição de superioridade do teste de Nugent acarretou maior prevalência das alterações reativas celulares não clássicas frente ao de Nugent (81,20%), em detrimento de Bethesda (40,26%).

A coleta de material para cada método, Gram e Papanicolaou, é distinta. Para o Gram é recomendada a coleta de secreção de fundo de saco vaginal e para o Papanicolaou é orientada a limpeza do corrimento vaginal com auxílio de gaze e pinça de Cherron para coleta do raspado cervical. Assim, o locus e a metodologia de coleta diferem em ambas as técnicas de coloração. Essas peculiaridades foram relatadas em outros estudos que discutem a grande variação na sensibilidade do Papanicolaou para diagnóstico de VB (43,1% a 95%) devido ao emprego de diferentes critérios morfológicos e do local de coleta, se dupla, do colo e canal como ocorre no Brasil, ou se tríplice (canal, colo e fundo de saco vaginal).(18,19)

Uma das relevâncias da pesquisa de agentes microbiológicos para VB está na sua implicação no favorecimento da instalação e permanência do vírus HPV, o principal fator de risco para câncer cervical, e neste caso específico a VB tem sido relatada em várias publicações como cofator de risco para HPV.(20)

A patogênese da VB no câncer cervical é complexa, pois envolve crescimento excessivo de uma associação de vários microrganismos anaeróbios que causam desequilíbrio no ecossistema vaginal, com depleção de lactobacilos produtores de peróxido de hidrogênio, produção elevada de poliaminas e ácidos orgânicos (ácidos acético e succínico) citotóxicos para as células do epitélio escamoso vaginal, levando à esfoliação celular e produção de corrimento volátil e fétido com ausência de infiltrado inflamatório.(20)

Uma das hipóteses da ação da VB como cofator para o desenvolvimento do câncer cervical apoia-se no aumento de nitrosaminas vaginais que eleva a probabilidade de danos ao DNA e a mudança nos perfis de citocinas que alteram a resposta imune, dificultando a eliminação do HPV.(21)

É relatado que mulheres com neoplasia intraepitelial cervical (NIC) e VB apresentaram aumento no nível de interleucinas (IL) 1, IL-6 e IL-10 e de óxido nítrico (NO), aliado ao fato de a VB produzir grande quantidade de imunomoduladores como proteases, sialidases, succinato e outros componentes indutores de inflamação, como ácido lipoteicoico (LA), peptidoglicanos (PG) e lipopolissacarídeos (LPS), substâncias que associadas promovem o crescimento de células neoplásicas tanto in vitro como in vivo. Somado a isso, a IL-6 apresenta propriedade pró-angiogênica capaz de atuar na angiogênese tumoral direcionada ao crescimento neoplásico.(20)

É hipotetizada também a capacidade da VB de aumentar a degradação da mucina no fluido vaginal, impedindo a formação de gel que reveste o epitélio cervical, causando microabrasões ou alterações de células epiteliais, o que pode aumentar a suscetibilidade da infecção por HPV, facilitando a adesão, invasão e eventualmente a incorporação do HPV oncogênico no genoma de células da zona de transformação. Também é possível que a VB atue como cofator na aquisição ou reativação da infecção pelo HPV, afetando o equilíbrio dentro do tecido cervical pelo aumento dos níveis vaginais de IL-1β, porém sem aumento nos níveis de IL-8, o que pode explicar a ausência ou diminuição de neutrófilos.(20)

A imunidade vaginal em resposta a perturbações microbianas ainda é pouco compreendida e pode ser crucial na proteção contra resultados adversos associados à VB, em que os sinais inflamatórios são escassos. Bactérias anaeróbias presentes na VB são capazes de produzir muitos metabólitos, como sialidases, que são capazes de degradar imunoglobulina A e alterar a resposta imune local.(22)

Outro cofator adicional importante na carcinogênese cervical poderia ser a relativa ausência de peróxido de hidrogênio (H2O2) produzido pelos lactobacilos na VB. Suspeita-se que a indução da apoptose representa o elemento-chave da intermediação lactobacilar na defesa antitumoral, assim o H2O2 produzido pelos lactobacilos e peroxidase vaginal com consequente geração de ácido hipocloroso (HClO) criaria um ambiente em que células transformadas na mucosa vaginal seriam impulsionadas à apoptose seletiva pela interação com o HClO pré-formado com espécies reativas de oxigênio derivadas de células-alvo (superóxido ânions), o que levaria à geração de sítios de radicais hidroxila reativos.(23)

Contudo, a associação de VB ao HPV pode apresentar um viés de causalidade reversa que resultaria em mulheres infectadas pelo HPV que ficam mais propensas em adquirir VB, ou mesmo existir uma relação temporal, em que a VB poderá ocorrer simultaneamente com ou após a infecção pelo HPV, em vez de aquisição antes do contágio pelo HPV. Assim, talvez a infecção por HPV cervical possa favorecer mudanças no ambiente vaginal que aumentam o desenvolvimento VB.(24)

Permanece a dúvida sobre a relação causal entre VB e lesões pré-cancerosas cervicais, ou se ambas as condições ocorrem em mulheres sexualmente ativas. Sabe-se que fatores sociodemográficos e comportamentais de estilo de vida influenciam risco de VB e lesões pré-cancerosas cervicais de maneira semelhante.(24)

Um estudo brasileiro de coorte transversal demonstrou que mulheres com presença de 20% ou mais de clue cells no esfregaço cervical apresentavam 2,2 vezes mais riscos de detectar diagnóstico de HSIL em amostras positivas para HPV.(25) Na Costa Rica, pesquisa de regressão logística em pacientes com lesão de alto grau (HSIL) indicou que a VB e a cervicite estiveram fortemente associadas ao diagnóstico citológico no grupo de pacientes HPV positivo.(26)

O método de Papanicolaou detecta lesões pré-cancerosas e o câncer cervical em estágio inicial ou avançado e também é importante no reconhecimento das alterações inflamatórias, designadas pelo sistema Bethesda como alterações celulares reativas,(7) possibilitando avaliar a intensidade da reação inflamatória, acompanhar sua evolução e, em certos casos, determinar o agente causal,(17) e assim acrescenta importantes informações que em algumas circunstâncias são cruciais para o estabelecimento do diagnóstico.(5)

Sob o efeito persistente de infecções microbianas e reações inflamatórias, tanto as células escamosas quanto colunares podem sofrer alterações degenerativas, geralmente mudanças inespecíficas, mas que auxiliam na interpretação adequada de alterações celulares mais sérias.(27)

O teste de Papanicolaou tem sido a melhor estratégia de saúde pública para a detecção de lesões pré-neoplásicas e neoplásicas e na identificação de alterações citomorfológicas relacionadas ao HPV. Atualmente existe grande preocupação em torno da detecção citológica precoce desta infecção e também com a melhoria do diagnóstico citológico, pois em países em desenvolvimento a triagem citológica vem falhando em promover a redução na incidência de câncer cervical, sendo uma das causas a limitação de sensibilidade do método. Com isto, tem-se estudado a introdução de novos critérios morfológicos, denominados não clássicos ou secundários, para diagnóstico citológico de HPV.(7)

Vários estudos têm avaliado a sensibilidade do teste de Papanicolaou com o uso de critérios não clássicos de lesão celular para HPV comparada à do teste de biologia molecular para pesquisa de HPV (padrão ouro). A sensibilidade dos critérios não clássicos varia de estudo para estudo, provavelmente pela variação do tipo de critério morfológico não clássico usado, que vai de hipercromasia nuclear, pleomorfismo e aumento da relação núcleo/citoplasma, ou inclusão de disceratose, discariose, binucleação e multinucleação, grânulos de cerato-hialina a paraceratose.(28)

A redução de especificidade e sensibilidade dos critérios não clássicos ocorre na presença de inflamação moderada ou intensa, provavelmente pela sobreposição de efeitos citopáticos oriundos da inflamação com os critérios não clássicos relacionados ao diagnóstico do HPV.(28)

Estudos também divergem quanto ao uso de critérios não clássicos para diagnóstico citológico sugestivo de HPV. Alguns preconizam que há necessidade de pelo menos dois critérios, sendo um deles clássico; outros sugerem pelo menos a observação de três critérios não clássicos e, por fim, há aqueles que reportam a necessidade de quatro ou mais dos critérios não clássicos citológicos para sugestão de HPV no mesmo esfregaço.(29)

Este estudo verificou a presença dos critérios não clássicos, a binucleação, o edema nuclear e paraceratose. Amostras com escore de Nugent ≥7 apresentaram maior percentual de alterações reativas celulares (binucleação em 28,43%, edema nuclear em 42,95% e paraceratose em 17,44%). Nas amostras com escore <7 foram observadas alterações reativas celulares, com menor percentual (binucleação 10,06%, edema nuclear 9,5% e paraceratose 1,34%). Amostras com dois critérios não clássicos simultâneos ocorreram em 12,7% dos casos e com três alterações simultâneas em 2,0%.

A binucleação é o resultado da divisão nuclear sem a divisão do citoplasma que pode ocorrer na regeneração tissular rápida.(30) Relacionada ao HPV, provavelmente ocorre como resultado de anormalidades mitóticas fusiformes que levam à replicação do DNA sem citocinese, seguida de heteroploidia.(31)

O edema nuclear apresenta-se uma a duas vezes em tamanho, porém ocasionalmente pode apresentar-se maior, geralmente observado em células escamosas do tipo superficial ou intermediária. Apesar do aumento do tamanho nuclear, a cromatina é finamente e uniformemente granular e por não se fazer acompanhar de hipercromasia ou irregularidade da membrana nuclear não representa uma lesão escamosa significativa para a avaliação de neoplasias.(7)

A paraceratose é uma alteração reativa benigna causada por irritação crônica, onde as células escamosas aparecem ceratinizadas com citoplasma denso e núcleos picnóticos.(7) Às vezes é observada em associação com infecções por HPV, considerado um achado importante em casos sem fundo inflamatório, caracterizado pela presença de núcleos frequentemente picnóticos e hipercromáticos com citoplasma eosinofílico escuro, geralmente associado a um epitélio escamoso relativamente maduro. Casos de paraceratose ou hiperceratose devem ser reexaminados, pois podem sobrepor uma alteração anormal, como displasia ou carcinoma de células escamosas.(32)

ASC-US são alterações celulares mais pronunciadas do que as alterações reativas benignas, com marcante aumento nuclear, apresentando variação nuclear e binucleação, contudo são quantitativas e qualitativamente menos evidentes que lesão interaepitelial escamosa de baixo grau (LSIL) e lesão intraepitelial escamosa de alto grau (HSIL), não sendo suficientes para um diagnóstico de neoplasia intraepitelial.(17,32)

Este trabalho comprovou que as alterações reativas celulares, consideradas critérios não clássicos para HPV, estão presentes em portadoras de VB em concordâncias com diversos estudos que relatam a presença de alterações reativas celulares como binucleação, paraceratose e edema nuclear na presença de VB. Essas alterações foram mais prevalentes na presença de VB diagnosticada pelos critérios de Nugent ≥7 em relação aos critérios de Bethesda pelo Papanicolaou.

 

CONCLUSÃO

 

Este estudo demonstrou não haver concordância significativa, entre o escore de Nugent pelo Gram e os critérios de Bethesda pelo Papanicolaou, para o diagnóstico laboratorial de vaginose bacteriana, apresentando no escore de Nugent maior capacidade para tal diagnóstico.

As alterações reativas celulares oriundas de inflamação e/ou degeneração, como binucleação, edema nuclear e paraceratose tidas como critérios não clássicos sugestivos de infecção pelo HPV, foram mais frequentes nas amostras positivas para vaginose bacteriana pelo escore de Nugent.

Contudo o teste qui-quadrado não demonstrou concordância estatística entre as alterações reativas celulares e o escore de Nugent para vaginose bacteriana, sendo encontrado o resultado mais próximo de p<0,05 na binucleação (p<0,059).

Sendo o teste de Gram de baixo custo e de fácil aplicação, tornando-o favorável em localidades carentes, a inserção desta análise laboratorial durante a coleta de Papanicolaou pode ser uma grande aliada, tanto para o diagnóstico de vaginose bacteriana como no rastreio do câncer de colo do útero, na busca de identificar e acompanhar mulheres com esse fator de risco.

 

REFERÊNCIAS

 

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Correspondência

Ednéia Peres Machado

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