Posicionamento da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas (SBAC) sobre o relato da presença de espermatozoides em amostra de urina – 2024

Position statement of the Brazilian Society of Clinical Analysis (SBAC) on the report of the presence of spermatozoa in urine samples

 

 

Mauren Isfer Anghebem1, Ana Paula Giolo Franz2, Flávia Martinello3

 

1  Farmacêutica, Doutora em Ciências Farmacêuticas/Análises Clínicas, Professora Adjunta da Escola de Medicina e Ciências da Vida da Pontifícia Universidade Católica e Professora Adjunta do Departamento de Análises Clínicas da Universidade Federal do Paraná/UFPR, Curitiba – Paraná – Brasil. Membro do Grupo Técnico-Científico da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas – SBAC.

2  Biomédica, Doutoranda em Bioexperimentação, Laboratório de Análises Clínicas do Hospital de Clínicas de Passo Fundo, Passo Fundo-RS, Brasil. Membro do Grupo Técnico-Científico da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas – SBAC.

3  Farmacêutica, Pós-doutora em Análises Clínicas, Professora do Departamento de Análises Clínicas da Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC, Florianópolis – Santa Catarina – Brasil. Membro do Grupo Técnico-Científico da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas – SBAC.

 

INTRODUÇÃO

 

O exame de urina é uma importante ferramenta diagnóstica. O resultado deste exame, analisado em conjunto com os dados da anamnese e exame físico do paciente, é capaz de diagnosticar e monitorar doenças do sistema urinário, distúrbios metabólicos e quadros infecciosos, mesmo em pacientes assintomáticos.(1)

O exame de urina compreende 3 fases principais: pré-analítica, analítica e pós-analítica. A fase pré-analítica do exame de urina é essencial para garantir um resultado acurado e reduzir a rejeição da amostra e as recoletas. Neste sentido, o laboratório de análises clínicas é responsável por fornecer ao paciente informações detalhadas sobre o preparo para a coleta e o procedimento para a coleta da amostra de urina. Deve ser enfatizado ao paciente que o resultado do exame de urina pode sofrer interferência de fatores como a alimentação e a hidratação, a diurese, o uso de medicamentos, a prática de exercícios físicos e a atividade sexual anterior à coleta.(2)

No sexo masculino, urinas coletadas após relação sexual ou masturbação podem conter espermatozoides que permaneceram na uretra, sem significado clínico. No entanto, a presença de espermatozoides na urina também pode estar associada à doenças ou ao uso de determinados medicamentos, motivo pelo qual se torna relevante o seu relato em laudos de adultos do sexo masculino.(3) Já em amostras de urina de indivíduos do sexo feminino o achado destes elementos requer cautela e condutas específicas apresentadas na sequência.

 

Espermatozoides em urina de adultos do sexo masculino

Os espermatozoides são comumente observados na primeira micção pós-ejaculatória, independente da idade do paciente. Em pessoas do sexo masculino com idade avançada também é possível encontrar espermatozoides na urina devido à contração reduzida do esfíncter uretral interno.(3) Nestas duas condições, o achado destes elementos não assume importância clínica.

O líquido seminal pode, portanto, contaminar a urina tanto após a ejaculação normal quanto nos casos de ejaculação retrógrada. A ejaculação retrógrada é um distúrbio decorrente de condições anatômicas, traumáticas, neuropáticas e/ou farmacológicas, caracterizado pelo fluxo reverso do líquido seminal da uretra posterior para a bexiga durante a ejaculação, podendo resultar em infertilidade masculina.(4)

Embora a presença de espermatozoides na urina não seja determinante, é um fator importante no diagnóstico da ejaculação retrógrada. A pesquisa de espermatozoides na urina após a ejaculação (urina pós-ejaculatória) para determinar a presença de ejaculação retrógrada parcial é recomendada em pacientes inférteis que apresentam baixo volume de sêmen.(5)

A ejaculação retrógrada ocorre mais comumente como resultado de prostatectomia transuretral, dissecção de linfonodos retroperitoneais e neuropatia diabética. A neuropatia diabética contribui para um amplo espectro de distúrbios clínicos, incluindo distúrbios da ejaculação, motivo pelo qual é possível encontrar espermatozoides em urina de indivíduos com diabetes. A ejaculação retrógrada também pode estar associada à história de cirurgia pélvica para câncer colorretal ou história de ressecção transuretral da próstata, devido a lesões em nervos envolvidos na ejaculação durante o procedimento cirúrgico. E, ainda, espermatozoides podem ser encontrados em urinas de indivíduos em uso de alfabloqueadores ou inibidores seletivos da recaptação da serotonina, que são fatores de risco conhecidos para distúrbios de ejaculação.(6) Espermatozoides podem ser observados em urinas de usuários de drogas psicoativas e álcool, uma vez que estas substâncias afetam o fechamento do esfíncter uretral interno durante a ejaculação, facilitando o fluxo de sêmen para a bexiga.(3)

 

Espermatozoides em urina de crianças e adolescentes do sexo masculino

Semenarca ou espermarca é o termo utilizado para descrever a primeira ejaculação do menino, uma emissão espontânea de sêmen que acontece por volta de 12 ou 13 anos de idade. É um evento involuntário que geralmente ocorre durante o sono, quando é chamada de polução noturna. Trata-se de um processo fisiológico normal, motivo pelo qual a partir desta idade é possível encontrar espermatozoides na urina de adolescentes do sexo masculino, sem que tenham praticado relação sexual ou masturbação nas horas que antecederam a coleta da amostra de urina.(7) A espermatúria é um evento comum e regular nas fases inicial e média da puberdade, podendo ocorrer antes de qualquer outro sinal da puberdade, sendo, portanto, útil para determinar a maturação gonadal.(8) Assim, fica a critério do médico assistente determinar a relevância clínica e a necessidade de pesquisa de espermatozoide na urina de crianças e adolescentes do sexo masculino.

 

Espermatozoides em urina de adultos do sexo feminino

A observação de espermatozoides na urina de adultos do sexo feminino está associada à exposição sexual recente, indicando falha na fase pré-analítica do exame de urina. A presença destes elementos na urina desta população só assume relevância em contextos forenses, onde há suspeita de abuso sexual ou outras formas de exposição não consentida. Apenas nesta situação específica, sob demanda judicial, a pesquisa de espermatozoides na urina deverá ser realizada e sua presença, obrigatoriamente, ser relatada. Nestes casos, é necessário que sejam asseguradas todas as etapas da cadeia de custódia. A cadeia de custódia define todo o percurso da prova material, desde o seu reconhecimento até o seu descarte, com o objetivo de garantir a autenticidade, a idoneidade e a preservação dos vestígios.

 

Espermatozoides em urina de crianças e adolescentes do sexo feminino

O achado de espermatozoides em crianças e adolescentes do sexo feminino requer a investigação de possíveis erros pré-analíticos. O laboratório de análises clínicas deve garantir a qualidade de todas as etapas do exame, incluindo a rastreabilidade, a fim de evitar e excluir possível troca de amostra ou contaminação durante a coleta e/ou processamento da amostra.

Segundo o Decreto-Lei nº 2.848/40 (Código Penal), artigo 217-A, é considerado crime ter conjunção carnal ou praticar ato libidinoso com menor de 14 anos.(9) Portanto, uma vez garantida a qualidade da amostra, a observação de espermatozoides em urina de crianças e adolescentes do sexo feminino menores de 14 anos pode caracterizar abuso sexual e sempre deverá ser reportada no laudo do exame de urina. Além disso, o laboratório deve comunicar o Conselho Tutelar ou a Vara da Infância e Juventude ou o Ministério Público, na ausência do primeiro. Esta ação vai ao encontro do Parecer nº 18/2024,(10) do Conselho Federal de Medicina, publicado em 27 de julho de 2024, que afirma que configura omissão e negligência não relatar no laudo do exame de urina a presença de espermatozoides em pacientes do sexo feminino de até 13 anos, 11 meses e 29 dias.

De acordo com o Art. 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente, incorre em infração administrativa passível de multa o médico ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde que deixar de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente.(11) De acordo com o Conselho Federal de Medicina, “a notificação ao Conselho Tutelar pelo médico ou responsável pelo estabelecimento de saúde é, portanto, compulsória nos casos de suspeita ou confirmação de abuso sexual contra crianças e adolescentes de até 13 anos, 11 meses e 29 dias, sob pena de multa e multa em dobro em caso de reincidência. Todas as amostras de crianças e adolescentes do sexo feminino de até 13 anos, 11 meses e 29 dias em que tenha sido detectada a presença de espermatozoides deverão ser armazenadas em condições adequadas para eventuais estudos forenses. O Conselho Tutelar costuma disponibilizar formulário padrão para as notificações, que pode variar conforme o estado.”(10)

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A fase pré-analítica, que abrange desde a orientação e o preparo do paciente, a coleta, transporte e armazenamento da amostra, desempenha um papel crucial na acurácia dos resultados laboratoriais e deve ser rigorosamente controlada para assegurar a validade dos dados.

Relações sexuais devem ser evitadas um dia antes da coleta da amostra de urina devido à probabilidade de contaminação da amostra com proteínas e outros elementos, como células epiteliais e espermatozoides. É fundamental reforçar a orientação aos pacientes para que descartem o primeiro jato de urina, promovendo a eliminação de elementos normalmente presentes na abertura uretral. Isso também minimiza as chances da amostra de urina ser contaminada por espermatozoides que permaneceram na uretra.

Embora a literatura esteja amplamente focada em indivíduos adultos do sexo masculino, a presença de espermatozoides em amostras de urina de outras populações deve ser criteriosamente avaliada devido às implicações clínicas e legais.

O Parecer CFM nº 18/2024,(10) que recomenda o relato no laudo do achado de espermatozoides na urina de crianças e adolescentes do sexo feminino de até 13 anos, 11 meses e 29 dias, é direcionado aos laboratórios dirigidos por médicos e regularmente inscritos nos Conselhos Regionais de Medicina. Todavia, poderá ser seguido pelos laboratórios de análises clínicas sob responsabilidade técnica dos demais profissionais legalmente habilitados para exercer as análises clínicas.

O relato da presença de espermatozoides na urina de crianças e adolescentes do sexo masculino fica facultado ao laboratório. No entanto, recomenda-se que seja relatada para que o médico assistente determine a relevância clínica do achado.

Em amostras de urina de indivíduos do sexo feminino com 14 anos ou mais, não é aconselhável o relato da presença de espermatozoides, pela falta de relevância clínica. Nestes casos, a rejeição da amostra com solicitação de nova coleta pode ser indicada e padronizada pelo laboratório, para garantir uma amostra livre da interferência do material seminal. É importante que o laboratório tenha procedimentos bem estabelecidos que garantam toda a cadeia de custódia nos casos sob demanda judicial.

Ressalta-se que, neste documento, o termo sexo é definido pelos aspectos anatômicos (genitália) da espécie humana, ou seja, o termo foi utilizado para se referir ao gênero, masculino ou feminino, designado ao nascimento.(12)

 

RECOMENDAÇÕES DA SBAC

 

A SBAC recomenda que:

  1. Diante da observação inequívoca de espermatozoides na urina, os laboratórios sigam o algoritmo ilustrado na Figura 1.
  2. Os laboratórios de análises clínicas solicitem Termo de Consentimento para o relato de todos os elementos observados no exame de urina, e incluam as observações descritas na Figura 1.
  3. Os laboratórios implementem procedimentos detalhados com o fluxo de notificação de casos de amostras de urina de crianças e adolescentes do sexo feminino menores de 14 anos com presença de espermatozoides para o Conselho Tutelar, de acordo com sua rotina, resguardando-se de penalidades éticas e criminais.

 

 

Figura 1

Algoritmo para relato no laudo laboratorial da presença de espermatozoides em urina.

Observações:

Os comentários I, II, III e IV, a seguir, poderão ser utilizados como notas explicativas nos laudos de exame de urina.

(I) Espermatozoides podem ser observados na urina pós-ejaculatória, independente da idade do paciente; e, em idosos, devido à contração reduzida do esfíncter uretral interno, sem relevância clínica.(1) A presença de espermatozoide pode, também, estar associada à ejaculação retrógrada, que consiste no fluxo reverso do líquido seminal da uretra posterior para a bexiga durante a ejaculação, decorrente de condições anatômicas, traumáticas, neuropáticas e/ou farmacológicas. A interpretação fica a critério do médico.(2)

1    Tomita M, Kikuchi E, Maeda T, Kabeya Y, Katsuki T, Oikawa Y, Kato K, Ohashi M, Nakamura S, Oya M, Shimada A. Clinical Background of Patients with Sperm in Their Urinary Sediment. PLoS One. 2015 Sep 11;10(9):e0136844.

2    Gupta S, Sharma R, Agarwal A, Parekh N, Finelli R, Shah R, et al. A Comprehensive Guide to Sperm Recovery in Infertile Men with Retrograde Ejaculation. World J Mens Health. 2022 Apr;40(2):208-216. doi: 10.5534/wjmh.210069.

 

(II) O relato da presença de espermatozoides em urina de crianças e adolescentes do sexo masculino pode ser útil para determinar a maturação gonodal, ficando a critério médico a relevância clínica do achado.(1)

1    Engelbertz F, Korda JB, Engelmann U, Rothschild M, Banaschak S. Longevity of spermatozoa in the post-ejaculatory urine of fertile men. Forensic Sci Int. 2010 Jan 30;194(1-3):15-9.

 

(III) O laboratório pode definir como critério de rejeição e solicitar nova amostra quando observar a presença de espermatozoides em amostras de urina de pessoas do sexo feminino maiores de 14 anos.

 

(IV) A presença de espermatozoides em amostras de urina de crianças e adolescentes menores de 14 anos será reportada em laudo pelo laboratório e notificada ao Conselho Tutelar ou à Vara da Infância e Juventude ou ao Ministério Público, em respeito à Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente)(1) e ao Decreto-Lei nº 2.848/40 (Código Penal),(2) sob risco de infração criminal.

1    Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, 27 set. 1990.7.

2    Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, 3 jan. 1941.

 

 

REFERÊNCIAS

 

  1. Haq K, Patel DM. Urinalysis: Interpretation and Clinical Correlations. Med Clin North Am. 2023 Jul;107(4):659-679.
  2. Coppens A, Speeckaert M, Delanghe J. The pre-analytical challenges of routine urinalysis. Acta Clin Belg. 2010 May-Jun;65(3):182-9.
  3. Tomita M, Kikuchi E, Maeda T, Kabeya Y, Katsuki T, Oikawa Y, Kato K, Ohashi M, Nakamura S, Oya M, Shimada A. Clinical Background of Patients with Sperm in Their Urinary Sediment. PLoS One. 2015 Sep 11;10(9):e0136844.
  4. Gupta S, Sharma R, Agarwal A, Parekh N, Finelli R, Shah R, et al. A Comprehensive Guide to Sperm Recovery in Infertile Men with Retrograde Ejaculation. World J Mens Health. 2022 Apr;40(2):208-216.
  5. Mieusset R, Walschaerts M, Isus F, Almont T, Daudin M, Hamdi SM. Diagnosis of Partial Retrograde Ejaculation in Non-Azoospermic Infertile Men with Low Semen Volume. PLoS One. 2017 Jan 6;12(1):e0168742.
  6. Ariagno JI, Mendeluk GR, Pugliese MN, Sardi SL, Acuña C, Repetto HE, Curi SM. The only presence of sperm in urine does not imply retrograde ejaculation. Arch Androl. 2005 Nov-Dec;51(6):431-6.
  7. Pedersen JL, Nysom K, Jørgensen M, Nielsen CT, Müller J, Keiding N, Skakkebaek NE. Spermaturia and puberty. Arch Dis Child. 1993 Sep;69(3):384-7.
  8. Engelbertz F, Korda JB, Engelmann U, Rothschild M, Banaschak S. Longevity of spermatozoa in the post-ejaculatory urine of fertile men. Forensic Sci Int. 2010 Jan 30;194(1-3):15-9.
  9. Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, 3 jan. 1941.
  10. Conselho Federal de Medicina. Parecer CFM nº 18/2024, de 27 de julho de 2024. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2024/18.
  11. Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, 27 set. 1990.
  12. Posicionamento Conjunto Medicina Diagnóstica Inclusiva: cuidado de pacientes transgênero. SBEM, CBR, SBPC-ML, 2019.

 

Este posicionamento deverá ser citado como:

Anghebem, Mauren Isfer; Franz, Ana Paula Giolo; Martinello, Flávia. Posicionamento da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas (SBAC) sobre o relato da presença de espermatozoides em amostra de urina – 2024. Comissão de Publicações da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas – SBAC. RBAC. 2024; 56(3):133-137.