Perfil lipídico de pacientes pediátricos

Lipid profile in pediatric patients

 

Marina R. M. Rover1

Emil Kupek2

Rita de C. B. Delgado3

Liliete C. Souza4

 

 

1Mestre em Farmácia, Farmacêutica da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC – Florianópolis, SC, Brasil.

2Doutor em Saúde Pública, Professor, Departamento de Saúde Pública, Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC – Florianópolis, SC, Brasil.

3Farmacêutica, Mestre em Farmácia, Depto. de Ciências Farmacêuticas, Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC – Florianópolis, SC, Brasil.

4Doutora em Farmácia. Professora, Departamento de Análises Clínicas, Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC – Florianópolis, SC, Brasil.

 

Instituição: Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC – Florianópolis, SC, Brasil.

 

Artigo recebido em 20/02/2012

Artigo aprovado em 19/02/2016

 

 

Resumo

Os objetivos deste trabalho são descrever a distribuição estratificada em percentis dos valores do perfil lipídico, por faixa etária e sexo, em crianças e adolescentes, e determinar se há diferenças em relação a estes valores, segundo sexo e faixa etária. Os critérios de inclusão foram: encaminhamento para a realização de exames de rotina; idade entre 2 e 19 anos e jejum de 12 horas. Foram excluídos os participantes que manifestavam quadro agudo de doença e aqueles com fatores que alteram os valores do perfil lipídico (Diabetes melittus e hipotireoidismo, corticoides e estrógenos, desnutrição e obesidade). O Colesterol total (CT), o Colesterol constituinte da Lipoproteína de Baixa Densidade (LDL-C), o Colesterol constituinte da Lipoproteína de Alta Densidade (HDL-C) e os Triglicerídeos (TG) foram determinados por métodos enzimáticos colorimétricos. Além destas determinações foi calculada a fração não-HDL-C e relações CT/HDL-C e LDL-C/HDL-C. No presente trabalho, uma distribuição representativa dos valores de lípides específica por sexo e faixa etária para crianças e adolescentes foi proposta pela primeira vez em âmbito nacional. Os resultados desta pesquisa confirmam a necessidade de pontos de corte específicos, visto que foram observadas diferenças significativas entre os sexos e entre as faixas etárias na maior parte das determinações do perfil lipídico (HDL-C, da relação CT/HDL-C, da relação LDL-C/HDL-C e do não-HDL-C). Os resultados deste estudo podem ser úteis para definir padrões nacionais próprios, para medir o progresso na saúde das crianças e adolescentes no futuro e para o planejamento de programas de prevenção das doenças cardiovasculares.

 

Palavras-chave

Perfil lipídico, Crianças, adolescentes

 

 

 

Introdução

 

As doenças cardiovasculares (CVD), como a ateros­clerose, estão entre as maiores causas de morbidade e mortalidade de adultos em todo o mundo.(1,2) Em geral, as manifestações clínicas da doença arterial coronariana (CAD) têm início a partir da meia idade, no entanto, estudos demonstraram que o processo aterosclerótico inicia-se na infância.(3) Alguns trabalhos encontraram estrias gordurosas na aorta de crianças a partir de 3 anos de idade.(3,4)

A dislipidemia é um dos fatores de risco de maior impacto na aterogênese. Há descrições de que os valores de colesterol das crianças coincidem com a prevalência de CAD nos adultos de sua região ou país, guardando relação direta entre si; sabe-se também que as frações lipídicas tendem a seguir o fenômeno de tracking, isto é, a maioria das crianças se mantém com os mesmos percentis em relação aos lípides até a vida adulta.(6,7)

Os intervalos de referência para lípides e lipo­proteínas são utilizados para identificar pessoas com alto risco para desenvolver CVD em comparação com pessoas do mesmo sexo e idade com valores baixos de lípides.(8) Entretanto, não há consenso sobre os pontos de corte para definir as dislipidemias na infância. Para a carac­terização das dislipidemias, a maioria dos países utiliza os valores de referência procedentes do National Heart, Lung and Blood Institute (NHLBI).(9) No Brasil, muitos autores adotam os valores recomendados pela V Diretriz Brasileira de Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose (V DBSD),(10)  além daqueles definidos pelo NHLBI.(9)

Os intervalos de referência transcritos de outros países desconsideram diferenças étnicas, socio­econô­micas e hábitos alimentares da população. O resultado final pode ser um número excessivo de decisões incor­retas, levando ao aumento de custos médicos, investi­gações desnecessárias e riscos para a saúde dos paci­entes.(11)

Estudos nacionais, realizados em municípios do estado de São Paulo, observaram que os intervalos de referência da amostra estudada diferem dos recomendados pelas diretrizes.(12,13) Esse fato ressalta a necessidade de se realizarem estudos semelhantes em outras regiões para se obter padronização brasileira dos intervalos de referência para triglicerídeos (TG), colesterol total (CT) e frações.

Desta forma, o objetivo do presente estudo foi des­crever a distribuição em percentis dos valores do perfil lipídico: CT, Colesterol LDL (LDL-C), Colesterol HDL (HDL-C), TG, não-HDL-C, relação CT/HDL-C e relação LDL-C/HDL-C, por faixa etária e sexo, em crianças e adolescentes entre 2 e 19 anos de idade e determinar se há diferenças em relação aos valores do perfil lipídico, segundo sexo e faixa etária.

 

MATERIAL E MÉTODOS

 

No ano de 2006, foram estudadas 1.011 crianças e adolescentes de ambos os sexos, em laboratório de análises clinicas acreditado pelo Programa de Excelência para Laboratórios Médicos da Control Lab e pelo Programa Nacional de Controle de Qualidade Ltda da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas.

Os critérios de inclusão na pesquisa foram: encami­nhamento ao laboratório para a realização de exames de rotina; idade entre 2 e 19 anos e jejum de 12 horas. Foram excluídos os participantes que manifestavam quadro agudo de doença.

Foi utilizado um questionário contemplando variáveis biológicas e sociais, que caracterizavam a amostra, entre elas: histórico familiar de CAD em parentes de primeiro grau;(14) tabagismo; idade gestacional ao nascimento (pre­maturos com idade gestacional, ao nascimento, menor que 37 semanas;(15) ocorrência de alterações metabólicas; e uso de medicamentos.

Foram aferidos peso e estatura para obtenção do body mass index (BMI), considerando-se desnutrido se < que o percentil 5; eutrófico se > que o percentil 5 e que o 85; sobrepeso se ≥ que o percentil 85 ou obeso se ≥ que o percentil 95 para idade e sexo, segundo critério do Center for Disease Control and Prevention (CDC).(16)

Para determinar a distribuição dos percentis dos valores do perfil lipídico, foram utilizados os critérios de exclusão dos participantes com o objetivo de eliminar aqueles com fatores que sabidamente poderiam alterar os valores do perfil lipídico. Desta forma, foram excluídos os participantes que apresentavam ao menos um dos seguintes fatores: Diabetes melittus; hipotireoidismo; doenças renais; hepatopatias; AIDS; hipertensão; gravidez; uso de medicamentos como tiazídicos, betabloqueadores, corticoides, estrógenos e hormônio de crescimento; des­nu­trição ou obesidade e prematuridade. Também foram excluídos os sabidamente dislipidêmicos (de acordo com o NHLBI)(9) e aqueles em que não foi possível a deter­minação do BMI.(10,11,17,18) Ainda, para a distribuição per­centil, a amostra em estudo foi distribuída em faixas etá­rias: 2 a 5 anos; 6 a 9 anos; 10 a 14 anos e 15 a 19 anos, e agrupadas, segundo o sexo, com base nas carac­terís­ticas de desenvolvimento e seguindo os principais referis nessa área.(8,19-21)

As determinações de CT [coeficiente de variação analítico (CVa): 2,6%] e TG [(CVa): 4,9%] foram realizadas por método enzimático colorimétrico em autoanalisador (Roche®  modelo COBAS MIRA). Para o HDL-C, a amostra passou por um pré-tratamento de precipitação por fosfo­tungstato de magnésio e, posteriormente, a determinação do HDL-C [(CVa): 5,1%] no sobrenadante foi feita com o mesmo método enzimático colorimétrico. O LDL-C foi calculado pela fórmula de Friedewald. Além dessas deter­minações, foram calculadas a fração não-HDL-C(22) e as relações CT/HDL-C e LDL-C/HDL-C.(23)

Os cuidados relacionados à fase pré-analítica segui­ram as orientações da IV Diretriz Brasileira sobre Dislipi­demias e Prevenção da Aterosclerose.(24)

Os dados obtidos durante a pesquisa foram plotados em planilhas desenvolvidas com o programa estatístico EpiData® 3.0. A análise dos dados coletados foi realizada pelo programa estatístico Stata® 9.0. Determinou-se a distribuição dos percentis 5, 10, 25, 50, 75, 90, 95 dos valores do perfil lipídico conforme o sexo e a faixa etária para os participantes incluídos. Foram comparados os valores de TC, LDL-C, HDL-C, TG, relação TC/HDL-C, relação LDL-C/HDL-C e não-HDL-C, por sexo e faixa etária, utilizando o teste não paramétrico de Qui-quadrado de Pearson e os intervalos de confiança 95%.

O estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina, obtendo o parecer favorável no mês de junho do ano de 2005 (Projeto 095/05). Após esclare­cimentos sobre a pesquisa, todos os pais ou responsáveis legais pelas crianças e adolescentes assinaram o consen­timento escrito de adesão ao estudo.

 

RESULTADOS

 

Para a determinação da distribuição percentil dos valores do perfil lipídico, foram excluídos participantes que possuíssem algum fator que poderia influenciar os seus valores lipídicos, sendo assim, foram excluídos: 106 por apresentarem patologias que provocam alterações no metabolismo basal; 5 por serem gestantes; 27 por utilizarem medicamento que provoca alteração em seus valores lipídicos; 27 por terem nascido prematuros; 130 por serem considerados desnutridos (BMI < 5), 95 por serem considerados obesos (BMI> 95), 20 por terem diagnóstico e estarem em tratamento de algum tipo de dislipidemia e 34 por não terem os dados referentes ao BMI.

O número de participantes, por faixa etária e por sexo, as respectivas médias e a distribuição percentil para cada variável analisada: CT, LDL-C, HDL-C, TG, relação TC/HDL-C, relação LDL-C/HDL-C e não-HDL-C, para os 567 participantes incluídos estão apresentados nas Tabelas 1, 2 e 3 a seguir. O número total de amostras difere entre as variáveis analisadas porque, para alguns participantes, não foi possível a realização de todos os ensaios.

Na avaliação deste grupo de participantes foram encontradas diferenças significativas entre os sexos masculino e feminino para as determinações do HDL-C (nas faixas etárias dos 10 aos14 anos e dos 15 aos 19 anos) (p= 0,050), bem como da relação CT/HDL-C (dos 10 aos 14 anos) (p= 0,007) e da relação LDL-C/HDL-C (dos 10 aos 14 anos) (p= 0,003) e do não-HDL-C (dos 6 aos 9 anos) (p= 0,047) e marginalmente significativas do LDL-C (dos 10 aos 14 anos) (p= 0,067).

As diferenças significativas entre as faixas etárias, segundo o sexo, são apresentadas na Tabela 4.

 

 

artigo-8-tabela-1

artigo-8-tabela-2

artigo-8-tabela-3

artigo-8-tabela-4 

DISCUSSÃO

 

Os valores de referência para lípides e lipoproteínas para a faixa etária pediátrica mais utilizados são aqueles recomendados pela NHLBI.(9) Esses pontos de corte foram determinados com base no Lipid Research Clinics-Prevalence Study, desenvolvido nos Estados Unidos da América para determinar a distribuição dos valores lipídicos na população infantil e sugerir critérios de normalidade para as frações lipídicas.(8) Os resultados obtidos nesse estudo com valores menores que o percentil 75 foram considerados desejáveis para CT e LDL-C; iguais ou maiores que o percentil 75 e menores que o 95 foram considerados limítrofes para CT e LDL-C; valores iguais ou maiores que o percentil 95 foram considerados elevados para TG, CT e LDL-C; e valores iguais ou menores que o percentil 5 foram considerados baixos para HDL-C e válidos para crianças e adolescentes de 2 a 19 anos, de ambos os sexos.(9)

O fato do laboratório escolhido para a realização deste estudo atender os encaminhamentos do ambulatório do maior hospital infantil da região, procurado principal­mente por crianças e adolescentes até os 14 anos, pode estar relacionado com o pequeno número de pacientes na faixa etária entre os 15 e 19 anos. Neste contexto, também pode ser considerada a possibilidade dos indiví­duos desta faixa etária não manterem o hábito de procurar atendimento médico para exames de rotina.

Comparando-se os resultados encontrados no pre­sente estudo com os obtidos no Lipid Research Clinics-Prevalence Study(8) foram observados, em geral, valores menores para as determinações de CT, LDL-C e HDL-C e maiores para os de TG. Para as relações CT/HDL-C e LDL-C/HDL-C, os valores encontrados foram, em geral, maiores, comparados aos observados no estudo de Elcarte  et al.(23) E para o não-HDL-C, os valores encontrados foram menores que aqueles obtidos no The Bogalusa Heart Study.(22)

Diferenças significativas foram observadas entre os sexos masculino e feminino para as determinações do HDL-C (nas faixas etárias dos 10 aos14 anos e dos 15 aos 19 anos) (p= 0,050), da relação CT/HDL-C (dos 10 aos 14 anos) (p= 0,007), na relação LDL-C/HDL-C (dos 10 aos 14 anos) (p= 0,003) e no não-HDL-C (dos 6 aos 9 anos) (p= 0,047) e marginalmente significativas do LDL-C (dos 10 aos 14 anos) (p= 0,067). Em geral, o sexo feminino teve maiores valores de LDL-C, relação CT/HDL-C e relação LDL-C/HDL-C do que o masculino; outros estudos também observaram esta tendência.(12,22,25)

As maiores médias de CT foram observadas para as faixas etárias dos 2 aos 9 anos, semelhantes ao observado por Moura et al.(12) Para o TG, a média mais alta foi obser­vada nas crianças e adolescentes dos 10 aos 14 anos. Observaram-se valores maiores de HDL-C no sexo mas­culino na faixa etária dos 10 aos 14 anos, e no sexo feminino dos 15 aos 19 anos. Como no estudo de Moura et al.,(12) os maiores valores para as relações CT/HDL-C e LDL-C/HDL-C foram observados na faixa etária dos 2 aos 5 anos. A idade foi inversamente relacionada com ambos, não-HDL-C e LDL-C, como encontrado no estudo de Srinivasan et al.(22)

Deve-se considerar que os valores de referência propostos pela NHLBI(9) não levam em conta os efeitos da puberdade nos valores lipídicos. Visto que a distribuição dos lípides muda durante a adolescência, diferentes proporções de adolescentes de ambos os sexos são identificados para o acompanhamento e tratamento base­ados nesse único ponto de corte, dependendo da idade em que eles foram avaliados.(20) Segundo Friedman et al.,(21) a sensibilidade e a especificidade dos pontos de corte propostos pela NHLBI(9) para predizer as alterações dos valores lipídicos, quando adultos, e as CVD, dependem da idade em que a determinação dos lípides foi feita. Essa marcante variação de sensibilidade que ocorre com a idade sugere outra limitação das diretrizes brasileiras atuais. Alguns autores têm recomendado a utilização de um critério específico por idade e sexo que, embora mais complexos, têm precedente, incluindo os critérios para pressão arterial específicos por sexo, idade e esta­tura.(19,20,21,26,27)

 

CONCLUSÃO

 

No presente trabalho, uma distribuição representativa dos valores de lípides específica por sexo e faixa etária para crianças e adolescentes entre 2 e 19 anos foi proposta pela primeira vez em âmbito nacional. Além disto, destacaram-se as diferenças encontradas segundo o sexo e as faixas etárias corroborando com outros autores sobre a necessidade da determinação de valores de referência para crianças e adolescentes específicos por sexo e faixa etária. Desta forma, estes dados podem ser úteis para definir padrões nacionais próprios, para medir o progresso na saúde das crianças e adolescentes no futuro e para o planejamento e implemento de programas de prevenção das CVD

 

Abstract

The objectives of this study is to describe the stratified percentile distribution of the lipid profile values by age group and sex, in children and adolescents and determine whether there are differences with respect to these values, according to sex and age group. Inclusion criteria included: approval to conduct routine tests; aged 2 to 19 years and fasting for 12 hours. Participants who expressed acute disease and those with factors that alter the values of the lipid profile were excluded (Diabetes mellitus and hypothyroidism, corticosteroids and estrogens, malnutrition and obesity). Total Cholesterol (TC) Low Density Lipoprotein Cholesterol (LDL-C) High Density Lipoprotein Cholesterol (HDL-C) and Triglycerides (TG) were determined by enzymatic colorimetric methods. It was also calculated the fraction of non-HDL-C, TC/HDL-C and LDL-C/HDL-C ratios. In this study, a representative distribution of specific lipid values by sex and age group for children and adolescents was first proposed at national level. These results confirm the need for specific cutoff points, as significant differences were observed between the sexes and between age groups in most measurements of the lipid profile (HDL-C, the TC/HDL-C and LDL-C/HDL-C ratios and non-HDL-C). The results of this study may be useful to set national standards, to evaluate the health of children and adolescents in the future and to support the planning for programs to prevent cardiovascular diseases.

 

Keywords

Lipid profile; Children; Adolescents

 

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Correspondência

Marina Raijche Mattozo Rover

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