Perfil de casos de intoxicação por naftalina atendidos no Centro de Informação Toxicológica do Rio Grande do Sul (CIT-RS) entre os anos de 2005 e 2023

Profile of cases of mothball poisoning attended at the Centro de Informação Toxicológica do Rio Grande do Sul (CIT-RS) between 2005 and 2023

 

Sabrina Nunes do Nascimento1, Rafael Velasques Michel1, Bruno Pereira dos Santos2, Bruna Telles Scola1, Juliana Pontes da Rosa1, Viviane Cristina Sebben1

 

1  Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul, Centro de Informação Toxicológica do Rio Grande do Sul (CIT-RS). Porto Alegre, RS, Brasil.

2  Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde. Porto Alegre, RS, Brasil.

 

Recebido em 01/03/2024

Aprovado em 25/03/2024

DOI: 10.21877/2448-3877.202400171

 

INTRODUÇÃO

 

O naftaleno (C10H8), um hidrocarboneto policíclico aromático comercialmente conhecido como naftalina (em “bolinhas” ou “pastilhas”), é um produto químico comumente utilizado nas residências como desodorizante e para proteger as roupas contra insetos, especialmente traças. Apesar de alguns produtos comerciais reportarem na sua embalagem que as pastilhas/bolinhas contêm 100% de naftalina (naftaleno), outros compostos, como paradiclorobenzeno (PDB), também podem estar presentes na sua composição. No entanto, o fato da composição nem sempre estar disponível na embalagem da naftalina dificulta a identificação do ingrediente ativo. A aparência física é igual para todos: geralmente, são sólidos cristalinos brancos.(1-4)

A exposição à naftalina, seja intencional ou acidental, tem sido reportada através da ingestão, contato dérmico ou inalatório.(5) A intoxicação por naftalina é um problema de saúde relevante, especialmente em crianças, devido à fácil disponibilidade deste produto, encontrado em supermercados, por um baixo preço, além de a sua presença ser disseminada nas residências brasileiras. O PDB e o naftaleno diferem quanto à toxicidade; enquanto a do naftaleno é atribuída aos seus metabólitos, especialmente o α-naftol, a do PDB não apresenta metabólitos, tendo a sua toxicidade limitada.(6,7)

Apesar de o naftaleno ser rapidamente absorvido após exposição e, uma vez na circulação sistêmica, possuir a capacidade de resultar em toxicidade em diferentes órgãos e sistemas, de forma geral a intoxicação apresenta, a princípio, alterações consideradas leves. Dentre as principais manifestações clínicas, pode-se citar náusea, vômitos, diarreia, dor abdominal, cefaleia, confusão mental, transpiração intensa, febre, taquicardia, taquipneia e agitação.(2,5,7,8)

Embora raros os efeitos graves como hemólise e metemoglobinemia podem ocorrer após exposição ao naftaleno, devido ao estresse oxidativo, através da geração de espécies reativas pelo metabólito α-naftol (Figura 1). Quando os eritrócitos são expostos a agentes oxidantes, os átomos de ferro são oxidados, passando do estado ferroso normal (Fe2+) para o estado férrico (Fe3+), produzindo a metemoglobina. Altos níveis de metemoglobina prejudicam gravemente a oxigenação dos tecidos, resultando em significativa hipóxia tecidual.(9,10) Quando ocorre hemólise ou metemoglobinemia, os sinais e sintomas resultantes, incluindo fraqueza, taquicardia, falta de ar e alterações mentais, podem surgir de 3 a 5 dias após a exposição devido à taxa lenta de metabolismo do naftaleno aos seus metabólitos oxidativos. Por isso, é importante acompanhar o paciente intoxicado durante esse período. A hemólise intravascular aguda pode ocorrer particularmente em indivíduos que apresentam deficiência da enzima glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD).(2,6,11,12)

O objetivo deste estudo é caracterizar o perfil de casos de intoxicação por naftalina atendidos pelo Centro de Informação Toxicológica do Rio Grande do Sul (CIT-RS), divisão do Centro Estadual de Vigilância em Saúde (CEVS) vinculado à Secretaria de Estado da Saúde do Rio Grande do Sul, de forma a contribuir com a avaliação da gravidade de casos envolvendo a exposição acidental ou intencional a este xenobiótico e avaliação da conduta clínica mais apropriada para esse tipo de intoxicação, visto que a verdadeira composição dos produtos comerciais, muitas vezes, é desconhecida.

 

MÉTODOS

 

Este estudo descritivo e retrospectivo foi realizado utilizando registros de casos de exposição à naftalina atendidos pelo CIT-RS. O atendimento do CIT-RS funciona através de telefone, em sistema de plantão, 24 horas por dia, 7 dias por semana. No atendimento, são registradas informações como: nome, sexo e idade do paciente; circunstância da exposição (acidental ou intencional); dose de exposição; via de exposição; e manifestações clínicas apresentados pelo paciente. Foram analisados casos envolvendo exposição à naftalina atendidos no período de junho de 2005 a outubro de 2023. Os dados dos atendimentos realizados estavam disponíveis no sistema online de dados do CIT-RS, o CITonline. No geral, foram avaliados todos os atendimentos associados à naftalina, em humanos, no referido período.

Os dados foram organizados e tabulados utilizando o Microsoft Excel (2007), de acordo com as seguintes variáveis: sexo, idade, circunstância da exposição, via de exposição, quantidade do agente tóxico, manifestações clínicas e gravidade do caso.

 

Figura 1

Fisiopatologia do naftaleno.(13)

 

RESULTADOS

 

No período de junho de 2005 a outubro de 2023, foram registrados 409.760 casos de exposição humana a agentes tóxicos atendidos pelo CIT-RS. Destes, 7.011 (1,7%) foram relacionados a pesticidas de uso doméstico, sendo 1.424 associados à exposição à naftalina e, destes, 357 associados a possíveis sintomas. Em média, foram registrados 19 casos por ano no período de estudo.

Dos 357 casos de naftalina avaliados, 180 (50,4%) eram do sexo feminino e 175 (49,6%) do sexo masculino, enquanto que para dois pacientes atendidos o sexo não foi registrado (Tabela 1). A via oral (ingestão) foi a via de exposição envolvida na maioria dos casos atendidos (299; 83,7%), seguida da via inalatória (39; 10,9%), via dérmica (7; 2,0%), via intranasal (4; 1,1%) e apenas 1 caso envolveu a via ocular.

Conforme demonstrado na Tabela 1, a maior ocorrência de casos de intoxicação por naftalina atendidos foi observada em crianças de 1 a 4 anos (207; 58,0%). As ocorrências foram divididas em nove circunstâncias, no que tange à causa da exposição, sendo acidental (acidente individual) na maioria dos casos estudados (282; 79,0%) e por tentativa de suicídio em 47 casos (13,2%). Dentre os casos envolvendo tentativa de suicídio, em 28 casos (58,3%) houve a ingestão concomitante de outros agentes, especialmente medicamentos (como benzodiazepínicos, antidepressivos e analgésicos), álcool e pesticidas de uso agrícola. A faixa etária dos pacientes que tiverem a exposição à naftalina por tentativa de suicídio foi de 13 a 83 anos (média ± desvio padrão: 29,0 ± 16,5 anos).

 

Tabela 1

Frequência dos parâmetros epidemiológicos dos casos de intoxicação por naftalina atendidos pelo CIT-RS, de 2005 a 2023.

Parâmetros N %
Sexo

Feminino

Masculino

 

180

175

 

50,4

49,6

Faixa etária (anos)

< 1

1-4

5-10

11-19

20-30

31-60

> 60

 

11

207

27

25

32

43

8

 

3,1

58,0

7,6

7,0

8,9

12,0

2,2

Circunstância

Acidente ambiental

Acidente coletivo

Acidente individual

Acidente ocupacional

Ignorada

Tentativa de suicídio

Uso indevido

Violência/homicídio

Abuso

 

1

3

282

5

5

47

8

1

3

 

0,3

0,8

79,0

1,4

1,4

13,2

2,2

0,3

0,8

Evolução

Cura

Cura suposta

Ignorada

Óbito

Cura com sequela

 

40

200

114

1

1

 

1,1

56,0

32,0

0,3

0,3

 

Dentre os casos por tentativa de suicídio, apenas um paciente evoluiu para óbito: trata-se de um homem, de 47 anos de idade, que apresentava depressão e realizou tentativa de suicídio ingerindo três bolinhas de naftalina. O paciente iniciou com quadro de icterícia, hepatoesplenomegalia e púrpura. Chegou ao hospital com quadro respiratório grave, necessitando de ventilação mecânica. Dez dias após, apresentou gengivorragia. Os resultados dos exames laboratoriais indicavam anemia intensa (Hb= 6,8g/dL), diminuição do hematócrito (Hct= 19%) e uremia (106mg/dL).

Quanto à evolução dos pacientes, 40 (1,1%) evoluíram para cura e 200 (56,0%) supostamente para cura. Nesta última classificação, considerou-se cura suposta os casos em que não foi possível contato telefônico para evolução do caso ou devido à evasão ou alta hospitalar.

Quanto às manifestações clínicas apresentadas pelos pacientes expostos à naftalina, os sinais e sintomas mais reportados, observados em 191 casos (53,5%) foram associados ao trato gastrointestinal, incluindo: náusea, vômitos, diarreia, dor e distensão abdominal (Figura 2). Sintomas envolvendo o Sistema Nervoso Central (SNC) foram relatados, havendo 33 pacientes (9,2%) apresentando cefaleia, tontura/vertigem e confusão mental. A terceira manifestação mais prevalente foi sonolência (26; 7,3%). Também foram registrados: febre (14; 3,9%); dispneia (11; 3,1%); hipertensão/taquicardia (9; 2,5%); efeitos oculares (dor, ardência, irritação, secreção e cegueira) (9; 2,5%); agitação (9; 2,5%); prostração (8; 2,2%) e dor epigástrica (8; 2,2%). Outros sintomas registrados foram: dor/ardência/sangramento em cavidade oral (6; 1,7%); alterações hematológicas (6; 1,4%); eritema (5; 1,4%); palidez (5; 1,4%); sialorreia (4; 1,1%); dor retroesternal (4; 1,1%); e letargia (4; 1,1%). Cinquenta e um pacientes (14,3%) permaneceram assintomáticos após a exposição à naftalina.

A informação sobre a quantidade de naftalina à qual os indivíduos foram expostos não estava disponível para todos os casos, principalmente porque a maioria dos pacientes atendidos era de crianças e os pais alegaram não terem visto a quantidade ingerida ou inserida no nariz. A quantidade de naftalina foi de apenas uma unidade (bolinha) para a maioria dos casos registrados: 157 pacientes (43,9%). Por outro lado, as maiores quantidades registradas foram de 24 bolinhas e de meio pacote, em indivíduos de 24 e 17 anos, respectivamente; em ambos os casos, a ingestão de naftalina ocorreu por tentativa de suicídio. O paciente que ingeriu meio pacote também fez uso de captopril e apresentou sintomas gastrointestinais e neurológicos, tendo evoluído supostamente para cura. O outro paciente apresentou apenas sonolência como sintoma e evoluiu para suposta cura.

Para avaliar a gravidade dos casos de exposição à naftalina atendidos pelo CIT-RS, utilizou-se a escala Poisoning Severity Score (PSI) da Organização Mundial da Saúde (OMS), que se trata de uma escala padronizada para classificar a gravidade da intoxicação.(14) Dos 357 casos estudados: 51 casos (14,3%) receberam classificação 0, pois não apresentaram qualquer sinal ou sintoma associado à intoxicação por naftalina; 300 casos (84,0%) receberam escore de 1, ou seja, apresentaram gravidade leve, transitória e/ou os sintomas resolveram-se espontaneamente; 5 casos (1,4%) receberam escore 2, isto é, de gravidade moderada (sintomas pronunciados ou prolongados); nenhum caso recebeu escore de 3 (toxicidade severa) e apenas um caso recebeu escore de 4 (fatal).

 

Figura 2

Principais sinais e sintomas apresentados pelos pacientes expostos à naftalina atendidos pelo CIT-RS, no período de 2005 a 2023.

 

DISCUSSÃO

 

Neste estudo, a maioria dos casos de exposição à naftalina foi observada em crianças, especialmente na faixa etária abaixo de 5 anos (1 a 4 anos; 58%), que pode ser explicado pelo uso e disponibilidade da naftalina nas residências. Além disso, crianças dessa faixa etária estão no início do desenvolvimento motor são bastante curiosas e têm o hábito de levar objetos à boca. De fato, a ingestão de substâncias nocivas está entre as causas mais comuns de lesões em crianças com menos de 6 anos de idade.(15,16) O mesmo perfil foi observado pelo Centro de Informação e Assistência Toxicológica de Santa Catarina (CIATOX-SC), que registrou 76,3% dos casos de intoxicação por naftalina atendidos, no período de 2003 a 2010, na faixa etária de 1 a 4 anos.(12) A segunda faixa etária com maior prevalência de atendimentos em nosso estudo foi de 20 a 30 anos, sendo, nesses casos, a intoxicação por naftalina causada por uso intencional para tentar suicídio. Tais achados vão ao encontro dos dados de intoxicação por naftaleno observados na população do Irã.(5)

Um problema potencial nos casos de intoxicação com naftalina é determinar a dose ingerida. Normalmente, as pastilhas/balas de naftalina pesam entre 2 a 5 gramas. A dose letal tóxica estimada do naftaleno é de 5 a 15 gramas para adultos e de 2 a 3 gramas para crianças, ou seja, a ingestão de apenas uma unidade de naftalina por crianças já seria potencialmente fatal.(5,17) Contudo, nossos resultados demonstraram, de forma geral, que os casos envolvendo intoxicação por naftalina apresentaram uma boa evolução, inclusive em pacientes que ingeriram doses maiores do que a dose letal reportada na literatura. Um fato que pode explicar tal achado é que a composição dos produtos comerciais de naftalina não seja exatamente de naftaleno a 100%, conforme reportado nas embalagens, uma vez que outros produtos menos tóxicos, como o PDB, podem estar presentes.(1) De fato, o PDB é muito menos tóxico do que o naftaleno: a ingestão de até 20 gramas do composto pode ser bem tolerada em adultos.(18)

Em sua maioria, os pacientes demonstraram-se estáveis, assintomáticos e sem alterações laboratoriais, tendo uma boa evolução. Ademais, a maioria dos pacientes avaliados apresentou efeitos gastrointestinais, como náusea, vômitos, diarreia, dor e distensão abdominal, além de cefaleia, tontura/vertigem e confusão mental, corroborando com o que é reportado na literatura como efeitos tóxicos mais comumente associados à intoxicação por naftalina.(6,11,17) Um achado interessante foi a sonolência como um dos sintomas mais reportados em nosso estudo. Em 6 dos 26 casos que apresentaram este sintoma, no entanto, houve ingestão concomitante de outros compostos, especialmente medicamentos psicotrópicos em tentativas de suicídio. Em 4 destes casos, tratava-se de coingesta de benzodiazepínicos (clonazepam e alprazolam), o que pode explicar a sonolência observada. A maioria dos pacientes, por permanecerem assintomáticos, recebeu alta em um período menor que 3 dias, o que dificulta o acompanhamento destes pacientes quanto ao risco de desenvolvimento de hemólise.

Existem fatores genéticos e de desenvolvimento que tornam alguns indivíduos mais suscetíveis aos efeitos da naftalina. Em condições normais, há múltiplos mecanismos nos eritrócitos capazes de prevenir a toxicidade induzida pelo estresse oxidativo. O efeito protetor mais importante é via geração de NADPH reduzido, o qual é utilizado para manter os estoques adequados de glutationa reduzida para prevenir a hemólise causada pelo estresse oxidativo. Indivíduos que apresentam deficiência da enzima G6PD não produzem NADPH suficientemente. Por isso, tais indivíduos têm níveis mais baixos de glutationa e estão, consequentemente, em maior risco de sofrerem hemólise e metemoglobinemia após exposição à naftalina.(9) Nesses casos, pode haver anemia, leucocitose, febre, hematúria, icterícia e disfunção hepática e renal.(8,10) Em pacientes com deficiência da enzima G6PD, apenas 250 a 500 gramas de naftalina já representa quantidade suficiente para causar hemólise.(18) Uma vez que a determinação da atividade da G6PD não faz parte do rol de exames de rotina da maioria dos laboratórios de análises clínicas e a deficiência dessa enzima pode ser desconhecida em indivíduos intoxicados por naftalina, o ideal é acompanhar o paciente por até 5 dias.(2,6,11,12) Dos casos avaliados em nosso estudo, apenas um paciente era conhecidamente deficiente em G6PD. Trata-se de uma criança, sexo masculino, 3 anos de idade, que ingeriu cerca de 5 unidades de naftalina, em acidente individual. Na admissão, o paciente apresentava agitação, náusea e vômitos. No segundo dia, a criança apresentava níveis baixos de hemoglobina (3,0g/dL). Clinicamente, a criança apresentava confusão e palidez. Três dias após a exposição, o paciente evoluiu para um quadro estável, tendo tido alta da unidade de tratamento intensivo (UTI) e recebendo terapia com vitamina C.

A deficiência de G6PD é detectada na triagem neonatal ampliada, popularmente conhecido como teste do pezinho ampliado. Em 2018, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (CONITEC) no Sistema Único de Saúde emitiu parecer desfavorável à inclusão do parâmetro nos testes obrigatórios do Sistema Único de Saúde (SUS). Em que pese, por força de lei local, o Distrito Federal tenha incluído a pesquisa da deficiência da G6PD no teste do pezinho oferecido pelo sistema público de saúde, o relatório da CONITEC aponta que esta melhoria usa muitos recursos e não oferece diferencial na clínica. Ademais, a dosagem de G6PD está incorporada no SUS, nas modalidades ambulatorial e hospitalar, sendo seu ressarcimento sem limitações.(19) Diante deste cenário, faz-se necessário que os laboratórios de análises clínicas vinculados aos serviços de atendimento médico possuam disponibilidade de oferta deste teste, mesmo através de um serviço de apoio, principalmente nos casos em que a sintomatologia advinda das intoxicações por naftaleno assim o sugerirem, como diagnóstico diferencial. Além disso, é imprescindível que os Centros de Informação e Assistência Toxicológica questionem o médico e/ou profissional de saúde no momento do atendimento de casos de intoxicação por naftalina quanto à possibilidade ou confirmação de deficiência de G6PD pelo paciente intoxicado. Em caso positivo, o paciente apresenta potencial para desenvolver hemólise ou metemoglobinemia, devendo a conduta clínica ser direcionada para estas situações. Em caso negativo, o paciente pode receber alta em um curto período de tempo, não necessitando ser acompanhado por até 5 dias, evitando o uso prolongado desnecessário de leito no SUS.

De acordo com a base de dados de Toxicologia Clínica TOXBASE.org, o naftaleno é considerado uma substância altamente tóxica que pode levar à hemólise intravascular e à hemoglobinúria.(6) Não existe antídoto específico para a intoxicação por naftaleno e não há guias específicos com informações sobre o manejo clínico de pacientes intoxicados.(7,11) As recomendações do TOXBASE.org em casos de intoxicação por ingestão de naftaleno incluem: controle de sinais vitais, descontaminação gástrica (embora o seu benefício não seja totalmente estabelecido), realização de exames laboratoriais (testes de função renal e hepática, eletrólitos, hemograma completo, dosagem de metemoglobinemia e gasometria em casos de rebaixamento do nível de consciência, baixa saturação de oxigênio e/ou distúrbio metabólico identificado), manejo de distúrbios hidroeletrolíticos e de lesão renal aguda, se presentes. É relevante destacar que, na presença de metemoglobinemia, a oximetria de pulso não é um parâmetro confiável para a mensuração da saturação de oxigênio. Em indivíduos que apresentam sintomas compatíveis com o quadro de metemoglobinemia, a oxigenoterapia de alto fluxo, como também a avaliação da concentração de metemoglobinemia tornam-se urgentes. No entanto, se tal avaliação não estiver disponível, deve-se administrar azul de metileno (cloreto de metiltionina), com a dose variando conforme a idade do paciente e a gravidade do caso. A transfusão de sangue e a exsanguineotransfusão devem ser consideradas em casos específicos, como naqueles em que há resposta ineficaz ao tratamento com azul de metileno. Em situações de contato inalatório ou dérmico com o naftaleno, deve-se afastar o indivíduo do ambiente de exposição e realizar a descontaminação externa. Nestes casos, na presença de sinais ou sintomas sistêmicos, torna-se necessária uma avaliação mais acurada. Já em casos de contato ocular, deve ser realizada irrigação local abundante e solicitada avaliação de um oftalmologista, visto que há risco de danos à córnea.(6)

A via inalatória foi a via de exposição envolvida em cinco casos envolvendo crianças com menos de 1 ano até 4 anos. Em um desses casos, a exposição à naftalina levou à anemia hemolítica em uma criança de 10 meses do sexo masculino. Após investigação, comprovou-se que o bebê era exposto cronicamente ao composto desde os dois meses de idade no estabelecimento da sua responsável, de 20m2, onde eram armazenados 2kg de naftalina. A criança também apresentou sintomas neurológicos, e recebeu transfusão sanguínea para tratar a anemia. À evolução, o paciente se apresentava melhor. Não foi confirmado se a criança era portadora de deficiência de G6PD.

Este trabalho teve algumas limitações, pois nem todas as variáveis avaliadas estavam disponíveis para todos os pacientes estudados. O estudo foi realizado retrospectivamente; logo, é possível que nem todos os dados médicos tenham sido repassados ou anotados nos casos dos pacientes registrados no sistema CIT-online do CIT-RS.

De uma maneira geral, nossos resultados demonstraram que mesmo em casos em que o paciente ingeriu uma quantidade de naftalina acima da dose considerada letal, a manifestação clínica foi leve, sem complicações. Uma hipótese para tal achado é a real composição da naftalina, já que pode não haver 100% de naftaleno. Ademais, é de extrema importância que seja questionado sobre a possibilidade da deficiência de G6PD no atendimento de um paciente com suspeita de intoxicação por naftaleno. Tendo em vista que o teste para deficiência de G6PD não é rotina nos exames de triagem neonatal, concluímos ser de suma importância a análise laboratorial de casos específicos, como em pacientes que apresentaram hiperbilirrubinemia neonatal, ou então quando a ingestão de naftalina e quadro clínico forem associados à fadiga, dor nas costas e abdominal, colúria e icterícia, pois esses pacientes têm maior risco de sofrerem hemólise e metemoglobinemia. Nesse sentido, diante do perfil de casos atendidos pelo CIT-RS, e também considerando o perfil semelhante de atendimentos realizados pelo CIATOX-SC,(12) nosso grupo sugere a realização de estudos similares nas bases de dados dos demais centros de assistência e informação toxicológica do Brasil, servindo como uma base sólida para a toxicovigilância e até mesmo a elaboração de uma metanálise. Tal iniciativa pode auxiliar no desenvolvimento de protocolos de atendimento em casos de intoxicação por naftaleno mais condizentes com a realidade brasileira.

 

REFERÊNCIAS

 

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Correspondência

Sabrina Nunes do Nascimento

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