Marcadores renais como prognóstico para Covid-19
Renal markers as a prognosis for Covid-19
Camila Cristina Sauder da Silveira1, Matias Nunes Frizzo1, Vitor Antunes de Oliveira1
1 Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí, Biomedicina. Ijuí, RS, Brasil.
Recebido em 25/04/2022
Aprovado em 10/08/2022
DOI: 10.21877/2448-3877.202200041
INTRODUÇÃO
A Covid-19 é a responsável pela maior crise na saúde pública dos últimos tempos. A nova patologia é uma infecção respiratória aguda potencialmente grave, com elevada transmissibilidade e distribuição global. Seu agente causador é um betacoronavírus, pertencente à família Coronavidae, e é denominado SARS-CoV-2 pela Organização Mundial da Saúde. Sua descoberta ocorreu a partir de amostras de lavado broncoalveolar obtidas de pacientes com pneumonia por causa desconhecida na cidade de Wuhan, China, no final de 2019.(1) As características clínicas da infecção variam expressivamente e são classificadas desde casos assintomáticos a casos críticos, sendo estes últimos associados à alta mortalidade. Os casos mais críticos estão frequentemente associados à síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA), caracterizada pela obstrução alveolar e diminuição do aporte de oxigênio, o que pode provocar choque séptico, e síndrome da disfunção de múltiplos órgãos (SDMO). Em vista disso, pacientes internados normalmente são submetidos a ventilação mecânica e oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO).(2)
O coronavírus tem acometido milhares de pessoas em todo o mundo, e a busca pelo tratamento correto e sua cura tem sido incansável por parte da comunidade científica. Sabe-se que o vírus atua não somente afetando o sistema respiratório, tratando-se de uma doença sistêmica. Em pesquisas publicadas recentemente observa-se uma íntima relação do agravo de lesões renais em pacientes acometidos pelo SARS-CoV-2. Acredita-se que o mecanismo envolvido neste processo refere-se à alta expressão de receptores da ECA-2 (enzima conversora de angiotensina 2) nas células renais, fato que favorece a infecção deste tipo de vírus.(3,4)
Em infecções virais são comuns alterações nos parâmetros laboratoriais dos pacientes infectados. Na Covid-19 ocorrem variações nos parâmetros hematológicos, bioquímicos, marcadores de infecção, coagulação e eletrólitos, os quais variam e se intensificam conforme a progressão da doença. Embora estas alterações não sejam efetivas para estabelecer o diagnóstico, a identificação de parâmetros associados a casos graves é crucial para monitorar seu desenvolvimento e auxiliar nas intervenções necessárias.(5)
Os casos mais agravantes do Covid-19 em pacientes têm sido correlacionados ao tratamento precoce e à utilização incorreta de medicamentos sem evidências de comprovação científica. Muitos medicamentos utilizados incorretamente e sem prescrição médica, em uma rotina diária de consumo, podem acarretar reações colaterais indesejáveis, agressão aos órgãos, ocasionando limitação de uso e impedindo a reação de resultados esperados.(6,7)
Embora os principais danos da doença sejam observados nos alvéolos, também há o acometimento de outros órgãos, incluindo os rins e algumas vezes causando lesão renal grave.(8) Estas lesões são caracterizadas por um declínio da taxa de filtração glomerular durante um período, perdurando de horas a dias, resultando caracteristicamente no aumento da concentração de creatinina.(9) As alterações nos parâmetros laboratoriais decorrem quanto à gravidade da infecção em cada indivíduo e podem divergir dependendo da população afetada.(10)
O acompanhamento destes marcadores renais tem como principal norteador a avaliação da função renal, auxiliando no diagnóstico e tratamento correto dos pacientes. Desta forma, o objetivo do presente trabalho é avaliar e evidenciar o quanto as alterações laboratoriais destes marcadores têm se associado a casos de maior gravidade da Covid-19 e a importância do acompanhamento frequente destes marcadores durante o período de internação.
METODOLOGIA
A presente pesquisa se enquadra em um estudo epidemiológico observacional, descritivo, analítico, transversal e retrospectivo com o objetivo de reunir e analisar dados a partir do levantamento de informações quantitativas e qualitativas acerca dos resultados de exames laboratoriais em pacientes internados com Covid-19. Estes dados foram coletados de prontuário de pacientes internados no Hospital Bom Pastor de Ijuí, localizado no noroeste do estado do Rio Grande do Sul, no período entre março de 2020 e agosto de 2021. Esta pesquisa foi conduzida após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, com parecer de nº 5.073.813, seguindo os padrões éticos definidos pela Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.
A pesquisa dispensa o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), pois a coleta de dados é somente dos prontuários dos pacientes, sem entrevista e contato direto. Foram utilizados 104 prontuários, sendo 40 mulheres e 64 homens com idade média de 54,9 anos, os quais ingressaram no Hospital Bom Pastor na ala da Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Destes, 75 apresentavam resultados de marcadores renais no desfecho final.
Foram incluídos neste estudo pacientes com Covid-19 internados na UTI, e não incluídos pacientes ambulatoriais, internados no leito clínico e aqueles que não realizaram dosagens de marcadores renais. As variáveis de interesse para este estudo foram sexo, idade, marcadores renais (níveis de creatinina, ureia e taxa de filtração glomerular – TFG), do primeiro e último dia da internação, sendo que estes indivíduos foram divididos em dois grupos conforme o desfecho final da evolução da doença (alta ou óbito), a fim de se realizar uma comparação entre eles.
A análise estatística e os gráficos foram projetados a partir do software Prism GraphPad 7.0. Também foi realizada a análise estatística descritiva, com média e desvio padrão, bem como teste t de Student para comparação das médias. Foram considerados significativos valores de p<0,05.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Foram analisados os resultados dos marcadores renais no primeiro e no último dia de internação na UTI dos indivíduos incluídos neste estudo, que foram divididos em dois grupos conforme o desfecho: alta ou óbito. Dos 104 pacientes, 61,53% (n=64) eram do sexo masculino e 38,47% (n=40) do sexo feminino, com idade média entre 54,1 anos para os homens e 56,2 anos para as mulheres. Oitenta e dois pacientes tiveram alta (78,85%) e 22 (21,15%) foram a óbito, sendo que, destes, 12 eram homens (54,54% ) e 10 eram mulheres (45,46%).
Como observado na Figura 1A, os pacientes que evoluíram para óbito, quando ingressaram no hospital, possuíam níveis de creatinina significativamente mais elevados quando comparados com os pacientes que tiveram alta. Além disso, os pacientes do grupo óbito apresentaram valores de creatinina 3,5 vezes maior que os que tiveram alta, conforme ilustrado na Figura 2A.
Os níveis de creatinina acima do valor de referência podem estar relacionados à obstrução do trato urinário, diminuição do fluxo sanguíneo renal e desidratação. Quando abaixo do valor de referência, são correlacionados a estados de debilidade física e redução da massa muscular.(11,12)
A creatinina é utilizada para a avaliação do funcionamento renal, sendo que sua excreção é feita pelos rins constantemente, por meio da filtração glomerular e excreção tubular ativa. Dentre os marcadores renais mais utilizados na clínica laboratorial a creatinina sérica é muito específica e confiável. Os valores de creatinina sérica, quando aumentados, geralmente indicam falha na função renal, sendo que o nível deste marcador geralmente é proporcional à condição e estado da doença.(13) No presente estudo, pode-se observar esta relação, uma vez que pacientes que evoluíram a óbito tiveram uma piora deste marcador conforme progressão da Covid-19.
De acordo com Kirsztajn,(14) conforme existir o declínio da função renal, a concentração sérica dos analitos produzidos no corpo em uma taxa constante e removido exclusivamente pela filtração glomerular irá aumentar como uma função recíproca, consequentemente, os marcadores séricos são estimados pela medida de TFG.
Outro resultado observado foi a alteração nos níveis de ureia, conforme Figura 1B, os quais apresentaram-se elevados no grupo que viria a óbito, no momento da internação. Percebe-se também que há um aumento de aproximadamente duas vezes nos níveis desse marcador durante o percurso da doença nos pacientes que evoluíram a óbito, reforçando a hipótese de mau prognóstico (Figura 2B e Tabela 1).
Figura 1
Valores de creatinina (A), ureia (B) e taxa de filtração glomerular – TFG (C) de pacientes com Covid-19 na admissão hospitalar. Esses pacientes foram divididos, conforme a evolução do seu quadro, em alta e óbito e comparados através do teste não paramétrico Mann-Whitney. Em todos os parâmetros analisados foi observada diferença estatística significativa entre o grupo que evoluiu para alta e o grupo que evoluiu a óbito (p>0,05).
(*) indicam a diferença entre os grupos.
Figura 2
Valores de creatinina (A), ureia (B) e taxa de filtração glomerular – TFG (C) de pacientes com COVID-19 no desfecho final da doença. Esses pacientes foram divididos, conforme a evolução do seu quadro, em alta e óbito e comparados através do teste não paramétrico Mann-Whitney. Em todos os parâmetros analisados foi observado diferença estatística significativa entre o grupo que evoluiu para alta e o grupo que evoluiu a óbito (p>0,05).
Tabela 1
Níveis de creatinina e ureia no percurso da Covid-19
Admissão | Desfecho final | |||
Alta | Óbito | Alta | Óbito | |
Creatina | 1,02±0,03 | 1,26±0,12 | 1,06±0,07 | 3,53±0,40 |
Ureia | 42,77±2,20 | 63,95±5,88 | 49,07±4,30 | 137,80±15,13 |
Legenda: Níveis de creatinina e ureia em mg/dL de paciente com Covid-19 na admissão hospitalar e no desfecho final da doença. Valores estão apresentados em média ± desvio padrão. Os resultados não foram comparados estatisticamente e estão apresentados para fins de observação da evolução destes marcadores ao longo da doença.
A ureia é uma substância produzida pelo fígado, resultante da metabolização das proteínas ingeridas na alimentação e da degradação proteica endógena. Após esse processo metabólito, a ureia circulante é filtrada pelos rins e 90% são excretados na urina, o restante é eliminado pelo trato gastrointestinal e pela pele. Desta forma, o aumento sérico de ureia pode estar associado a dano renal.(15,16)
Apesar de existir a livre filtração pelo glomérulo, a ureia tende a ser um fraco preditor da taxa de filtração glomerular, pois cerca de 40% a 70% retornam para o plasma através da difusão passiva, que é dependente do fluxo urinário. Tal fato ocorre pois este metabólito não é reabsorvido nem secretado ativamente, no entanto a estase urinária leva a um maior retorno de ureia ainda nos túbulos renais e a uma subestimação da TFG através do cálculo pelo clearance de creatinina.(17,18)
No presente estudo os pacientes que evoluíram a óbito apresentaram aumento na concentração plasmática de ureia conforme progressão da Covid-19, em decorrência da queda da taxa de filtração glomerular.
Conforme Azinheira et al.,(19) o comprometimento da função biológica da enzima conversora de angiotensina 2 pode levar à redução do fluxo sanguíneo renal e da TFG, alterando a capacidade dos rins de eliminar substâncias (metabólitos) que, em excesso, são tóxicas para o organismo. Além disso, há um aumento da vasoconstrição, sobrecarregando e comprometendo a função renal.(19)
Como observado na Figura 1C, os pacientes do grupo óbito apresentavam taxa de filtração glomerular significativamente mais baixa na admissão quando comparada com a dos pacientes do grupo alta. Além disso, os pacientes do grupo óbito tiveram, em média, uma queda duas vezes maior de suas TFG. Nesse sentido, no presente estudo observam-se TFG inferiores, em média, a 65,3% no grupo óbito, fato este que pode ser obeservado comparando as Figuras 1C e 2C. A TFG é a medida da depuração de uma substância que é filtrada livremente pelos glomérulos e não sofre reabsorção e secreção tubular, por isso é comumente utilizada como medida de avaliação e funcionamento da função renal, sendo um marcador de extrema importância para detecção, avaliação e tratamento de doenças renais.(20)
Os dados do presente estudo evidenciam o declínio da função renal dos pacientes do grupo óbito, os quais apresentam níveis de TFG abaixo de 50mL/min/1,73m2 conforme Figura 2C. Isso decorre pelo fato do SARS-CoV-2 alcançar os rins pela via hematogênica, causando danos às células renais por meio de sua ligação à ECA-2, que é expressa na borda das células tubulares proximais e, em menor grau, nos podócitos.(21,22)
Conforme o estudo de Kunutsor e Laukkanen,(23) as principais alterações relatadas em pacientes internados com Covid-19 são nos marcadores renais, justificando a avaliação destes marcadores no monitoramento e prognóstico dos pacientes internados com Covid-19.
Os rins são extremamente importantes para a homeostase do organismo, possuindo funções fundamentais: eliminação de toxinas do sangue por seu sistema de filtração; regulação da produção sanguínea e dos ossos; regulação da pressão sanguínea; manutenção do equilíbrio ácido base e de líquidos do corpo.(11,24)
A reabsorção tubular da ureia está ligada ao estado volêmico do paciente e na maioria dos laboratórios o valor normal de ureia varia de 20-40mg/dL. Já a creatinina deriva principalmente da creatina muscular e a produção ligada proporcionalmente à massa muscular, sendo que o valor de referência reportado pelos laboratórios é de 0,6mg/dL a 1,3mg/dL. A taxa de filtração glomerular (TFG) é a medida da depuração de uma substância que é filtrada livremente pelos glomérulos e não sofre reabsorção e secreção tubular, por isso é comumente utilizada como medida de avaliação e funcionamento da função renal onde o valor de referência utilizado pelos laboratórios é maior ou igual a 60mL/min/1,73m².(20)
Nesta pesquisa os marcadores renais ganham protagonismo por possibilitarem um efetivo diagnóstico da disfunção renal no momento da internação permitindo, desta forma, intervenções terapêuticas e melhora na qualidade de vida dos indivíduos acometidos pela Covid-19 antes da evolução da doença renal.
CONCLUSÃO
Após análise dos dados dos 104 pacientes, constatou-se que indivíduos internados no hospital com Covid-19, com níveis elevados de creatinina e de ureia e diminuição da TFG, têm maior propensão ao óbito. Percebe-se, também, que o agravamento destes parâmetros renais estão diretamente relacionados com a piora da doença e, consequentemente, a um mau prognóstico.
REFERÊNCIAS
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Correspondência
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