Inclusões citoplasmáticas semelhantes a bastonetes de Auer em plasmócitos: um achado morfológico pouco frequente
Auer rod-like cytoplasmic inclusions in plasma cells: an infrequent morphological finding
Perla Vicari1, Vitor de Carvalho Queiroz1
1 Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo – IAMSPE, Serviço de Hematologia. São Paulo, SP, Brasil.
Recebido em 10/04/2022
Aprovado em 22/03/2023
DOI: 10.21877/2448-3877.202300112
INTRODUÇÃO
Os plasmócitos são células B linfóides diferenciados terminalmente, localizadas dentro da medula óssea (MO). Sua implicação no processo imunológico se deve à imunoglobulina (Ig) que sintetiza e atua como anticorpo contra antígenos. Em várias circunstâncias, denominadas distúrbios reativos, pode ocorrer expansão limitada de plasmócitos policlonais dentro da MO, levando (ou não) ao aumento da quantidade de Ig no plasma. Em contraste, vários mecanismos genéticos são responsáveis pela expansão clonal plasmocitária, levando à síntese descontrolada de uma Ig monoclonal. Em condições normais, bem como reativas e malignas, a morfologia do plasmócito é fácil de determinar em esfregaços de MO.
O mieloma múltiplo (MM), neoplasia de células plasmáticas (plasmócitos) monoclonais que se acumulam na medula óssea e produzem proteína M (também conhecida como imunoglobulina monoclonal ou paraproteína), representa 1% das doenças neoplásicas e é a segunda malignidade hematológica mais comum em países de alta renda, com uma incidência de 4,5 a 6 por 100.000 por ano. O MM pode evoluir com disfunção orgânica: hipercalcemia, insuficiência renal, anemia e destruição óssea (conhecidos como critérios CRAB).(1)
Assim, a identificação morfológica e a determinação precisa da porcentagem de plasmócitos na medula óssea permanecem critérios auxiliares importantes para o diagnóstico de MM. Inclusões semelhantes a bastonetes de Auer em células plasmáticas são um achado raro no MM e podem ser alvo de confusão na análise do aspirado de medula óssea.(2-4)
OBJETIVOS
O objetivo deste relato é demonstrar essa mudança interessante e incomum na morfologia plasmócito em um paciente com MM.
RELATO DE CASOS
Homem de 74 anos com fraqueza óssea e dor há cerca de 5 meses. Laboratório apresentou: Hb 9,2g/dL, com o esfregaço de sangue periférico demonstrando presença de rouleaux eritrocitário, creatinina 1,4mg/dL, cálcio ionizado 1,14 mmol/L, 2 microglobulinas 5,4mg/L, pico beta monoclonal (5,4g de proteína M), IGG 4.530mg/dL-Kappa e sem lesões líticas. A medula óssea apresentou 74% de plasmócitos pleomórficos, com contornos mal definidos e inclusões citoplasmáticas azurofílicas em forma de agulha, como cristais morfologicamente semelhantes a bastonetes de Auer e células de Faggot (Figura 1). A citometria de fluxo confirmou plasmócitos com imunofenótipo CD56+/CD19-/CD138+/CD45-/ Kappa+.
Figura 1
Esfregaço de medula óssea mostrou plasmócitos pleomórficos com inclusões citoplasmáticas azurófilas em forma de agulha, como bastonetes de Auer com a presença de formas como células de Faggot (setas).
DISCUSSÃO
O conhecimento da morfologia do plasmócito da MO normal é útil para classificar e seguir as várias alterações morfológicas observadas em distúrbios reativos e neoplásicos.
Plasmócitos possuem pequeno núcleo de aparência madura e grande citoplasma, este último geralmente azul profundo após coloração com Giemsa. O citoplasma é preenchido por longos filamentos de retículo endoplasmático rugoso e um grande aparelho de Golgi, demonstrando que os plasmócitos estão associados à síntese e excreção de proteínas (imunoglobulinas). A desregulação do genoma pode induzir expansão clonal que levará à superprodução de imunoglobulinas e, eventualmente, a uma das chamadas neoplasias plasmocitárias.(5)
As alterações morfológicas dos plasmócitos podem ser divididas em duas categorias: 1) alterações relacionadas ao núcleo, correspondendo a rede de cromatina anormal, um nucléolo evidente ou contorno nuclear irregular, e estão relacionadas, na maioria das vezes, à malignidade; 2) alterações do citoplasma, incluindo coloração e inclusões de origens diversas, embora observadas tanto em distúrbios reativos quanto em neoplásicos, correspondem principalmente à Ig anormal sintetizada pelo plasmócito.(5,6)
No MM, o diagnóstico requer ≥10% de células plasmáticas clonais da medula óssea ou um plasmocitoma comprovado por biópsia mais evidência de um ou mais eventos definidores de mieloma múltiplo, ou seja, CRAB (hipercalcemia, insuficiência renal, anemia ou lesões ósseas líticas). As alterações na morfologia dos plasmócitos no MM podem ser imperceptíveis em comparação com plasmócitos normais (30% a 50% dos pacientes) ou apresentar alterações morfológicas, tais como: alta relação núcleo-citoplasma; assincronia núcleo-citoplasmática com presença de nucléolo; cromatina finamente dispersa e/ou contorno nuclear irregular com citoplasma ainda grande e basofílico (maduro); presença de formas imaturas (plasmablastos); coloração citoplasmática acidofílica (células flamejantes); aumento dos corpúsculos de Russell (aspecto de cacho de uva: célula de Mott) e inclusões cristalinas.(5,6)
Os bastonetes de Auer são compostos de inclusões de peroxidase lisossomal fundidas que são comumente observadas em leucemias mieloides agudas. Possuem coloração azurófila, em formato de agulha ou bastão e podem ser visualizados como inclusão única ou múltiplas formando feixes. Por outro lado, inclusões semelhantes a bastonetes de Auer (Auer-like ou Auer simile) em células plasmáticas, como descrito no presente relato, são um achado raro no MM e podem estar presentes, também, na gamopatia monoclonal de significado indeterminado e às vezes em distúrbios reativos. Além disso, a ocorrência de inclusões cristalinas nos plasmócitos pode ser a primeira alteração que leva ao diagnóstico de síndrome de Fanconi no adulto.(2-4)
A natureza destas inclusões nos plasmócitos ainda não é totalmente esclarecida, entretanto acredita-se que são formados por depósitos de enzimas lisossômicas cristalizadas (fosfatase ácida, α-N-esterase ou β-glucuronidase). É particularmente observada em MM com paraproteínas kappa-like, mas não é patognomônica.(2-4)
Atualmente, a morfologia isoladamente não deve ser usada como informação prognóstica. Juntamente com a percentagem de plasmócitos encontrados, algumas alterações morfológicas peculiares, como a descrita neste relato, podem auxiliar no raciocínio clínico e estarem relacionadas ao diagnóstico de destas doenças raras. Entretanto, estes achados nunca devem ser analisados isoladamente, evitando erros de interpretação e diagnóstico.
Apesar dos avanços no diagnóstico de doenças hematológicas, reconhecer as diferentes características morfológicas e peculiaridades dessas células ainda pode ser um desafio. No entanto, devido à raridade deste achado, seu real prognóstico ainda é incerto.
REFERÊNCIAS
- Rajkumar SV. Multiple myeloma: 2022 update on diagnosis, risk stratification, and management. Am J Hematol. 2022 Aug;97(8):1086-1107.
- Dass J, Kotwal J. Plasma cells with Auer rod-like inclusions in a patient with myeloma. Blood Res. 2018 Mar;53(1):7.
- Sharma P, Sachdeva MUS, Ahluwalia J, Malhotra P. Plasma cells with hairy projections and Auer rod-like inclusions in a patient with multiple myeloma. BMJ Case Rep. 2017 Aug 3;2017:bcr2017221315.
- Mansukhani D, Padate B, Bapat K, Desai N, Khodaiji S. Auer Rod-Like Inclusions in Light Chain Myeloma: A Rare Morphological Feature. Indian J Hematol Blood Transfus. 2020 Jan;36(1):225-226.
- Ribourtout B, Zandecki M. Plasma cell morphology in multiple myeloma and related disorders. Morphologie. 2015 Jun;99(325):38-62.
6. El Hussein S, Medeiros LJ, Hu S, Lin P, Wang W. The many faces of plasma cell neoplasms: morphological and immunophenotypical variants of the great imitator. Pathology. 2022 Feb;54(1):32-4
Correspondência
Perla Vicari
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