Imunomodulação causada por parasitoses oportunistas em casos de COVID-19: um breve estudo
Immunomodulation caused by opportunistic parasites in COVID-19 cases: a brief report
Líllian O. P. Silva1
Joseli M. R. Nogueira2
1Mestranda do PPGSPMA – Escola Nacional de Saúde Pública, FIOCRUZ – Rio de Janeiro-RJ, Brasil.
1Chefe do Laboratório de Microbiologia – DCB – Escola Nacional de Saúde Pública, FIOCRUZ – Rio de Janeiro-RJ, Brasil
Recebido em 10/03/2021
Aprovado em 29/04/2021
DOI: 10.21877/2448-3877.202100962
INTRODUÇÃO
Em dezembro de 2019, a cidade de Wuhan (China) notificou um surto de pneumonias com causa desconhecida. Mais tarde, o coronavírus SARS-Cov-2 foi identificado como causador de uma síndrome respiratória aguda grave, sendo o terceiro vírus da família Coronaviridae conhecido neste século que é responsável por uma pneumonia de extrema letalidade, tendo como antecessores o MERS-Cov e o SARS-Cov. Em março de 2020, essa patologia, denominada COVID-19, foi declarada como uma pandemia pela Organização Mundial de Saúde, devido a sua disseminação extremamente rápida.(1,2,3)
O SARS-Cov-2 é um vírus zoonótico esferoidal, pertencente à família Coronaviridae, constituído de uma fita simples de RNA, apresentando quatro genes principais, responsáveis pela codificação das proteínas de nucleocapsídeo, proteínas de membrana, glicoproteínas de membrana e a proteína Spike, que é a responsável pela capacidade de invasão celular do vírus, uma vez que se trata de uma proteína com duas subunidades, sendo capaz de reconhecer o receptor e se fundir à membrana celular.(4,5)
Até o presente momento, agosto de 2021, já foram mais de 550 mil óbitos causados por essa coronavirose no Brasil e cerca de 3,45 milhões em todo o mundo.(6) Contudo, a OMS acredita que o número de mortes pode ser até três vezes maior do que o divulgado nos dados oficiais, devido à subnotificação dos mesmos e à dificuldade das autoridades sanitárias para apurar todos os casos.(7) A COVID-19 apresenta um grande espectro de manifestações clínicas, que podem ser diretamente relacionadas à “chuva de citocinas” estimulada pelo vírus, também conhecida como inflamassoma, um complexo multiproteico capaz de induzir a liberação de citocinas pró-inflamatórias.(8)
Ao saírem do controle, essas moléculas desencadeiam um processo inflamatório sistêmico em cascata, oriundo da presença de macrófagos e monócitos infectados pelo SARS- Cov-2, o que acarreta a liberação de IL-1, IL-2, IL-6, IL-18, TNF-a e Casp1p20, exacerbando a resposta inflamatória normal de defesa, sendo característico da forma grave da doença em questão, onde, muitas vezes, pode levar o paciente à falência múltipla dos órgãos e até mesmo à morte. Essa alteração da cascata imunológica permite que a COVID-19 avance de formas assintomáticas ou oligossintomáticas para uma doença grave e de péssimo prognóstico. Além disso, o aumento dos níveis de IL-6 no sangue dos pacientes foi diretamente associado ao risco de morte dos indivíduos.(8,9,10,11)
É válido ressaltar que há uma relação direta entre doenças infecciosas e parasitárias, neste caso, entre os parasitas e a COVID-19, pois doenças causadas por vírus, como dito anteriormente, são capazes de interferir no sistema imunológico através do inflamassoma, o que favorece o surgimento de outras infecções, desta vez, causadas por fungos, protozoários e helmintos.(12) Por outro lado, os parasitas são excelentes moduladores da resposta imunológica, uma vez que induzem uma tolerância do organismo ao invasor através do equilíbrio entre as respostas pró-inflamatórias e anti-inflamatórias, cujo potencial vem sendo explorado no tratamento de esclerose múltipla e doenças inflamatórias intestinais, como a colite ulcerativa, por exemplo.(13,14,15)
Fundamentado nestas informações, este artigo teve como objetivo avaliar, com base na literatura, a relação imunomoduladora das infecções parasitárias com a COVID-19 e o seu possível impacto na saúde do paciente.
MATERIAIS E MÉTODOS
As buscas bibliográficas foram realizadas em bases de dados, como o Portal Periódicos CAPES e o PUBMED, disponíveis em https://www-periodicos-capes-gov-br./ e <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/>, respectivamente. Ao finalizar as pesquisas, as referências duplicadas foram excluídas. Foram abarcados artigos publicados nos últimos cinco anos, preferencialmente entre 2020 e 2021, período correspondente ao início da pandemia no Brasil até os dias atuais, em inglês, português ou espanhol. Devido a diferenças nos processos de indexação nas bases de dados bibliográficas, optou-se pela busca por termos livres, sem o uso de vocabulário controlado (descritores).
Com essa estratégia, houve uma recuperação de um número maior de referências, garantindo a detecção da maioria dos trabalhos publicados dentro dos critérios preestabelecidos. Os termos “Parasitoses oportunistas”, “COVID-19”, “Pandemia”, “SARS-Cov-2”, “Infecções parasitárias”, “Parasitoses” e suas respectivas traduções para o inglês foram combinados com as associações e desfechos de interesse nas três primeiras páginas de cada portal.
A seleção dos artigos foi baseada na leitura dos títulos seguida dos resumos e os trabalhos que apresentavam o enfoque correspondente foram lidos na íntegra, dando origem aos resultados deste artigo.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os helmintos estão entre as principais infecções parasitárias. Casos de esquistossomose e outras doenças causadas por helmintos transmitidos pelo solo (HTS), como tricuríases, ancilostomíases e ascaridíase, são extremamente comuns em todo o mundo, principalmente em países subdesenvolvidos. Tais parasitos são capazes de regular a resposta imunológica do paciente, através da ativação de células T reguladoras, células do tipo TH2 ou ambas. Sendo assim, os helmintos acabam modulando a supressão da resposta imune do tipo 1, responsável pela atividade inflamatória, a principal resposta em casos de infecções virais.(16)
Doenças como Diabetes mellitus do tipo 2, bem como a obesidade e a síndrome metabólica estão amplamente relacionadas aos processos inflamatórios do sistema imunológico do paciente, o que torna tais indivíduos mais susceptíveis às formas mais graves da COVID-19, haja vista que se trata de uma doença capaz de ativar uma liberação intensa de citocinas pró-inflamatórias, culminando em uma falência sistêmica.(9) Hays e sua equipe acreditam que a coinfecção helmíntica seja uma alternativa para evitar formas mais severas da COVID-19, dado o histórico destes parasitas quanto à modulação da resposta inflamatória. De acordo com os autores, tal resposta pode até mesmo ser capaz de modular a inflamação pulmonar causada pelo SARS-Cov-2.(17)
Ssebambulidde e sua equipe (2020) também afirmam que a presença de parasitas pode favorecer a modulação do sistema imunológico do paciente para combater a COVID-19. De acordo com os autores, estudos mostram uma redução no número de casos de infecções causadas pelo SARS-Cov-2 em regiões assoladas por parasitoses como malária, esquistossomose e diversas helmintíases oriundas do solo. Essa resposta imunomoduladora tem sido utilizada para embasar a lentidão do crescimento da curva da COVID-19 na África em 2020, haja vista que se trata de uma região assolada por parasitoses.(18,19)
O estudo realizado por Gebrecherkos e colaboradores, em fevereiro de 2021, corrobora com tal afirmação, uma vez que a pesquisa recente mostra que a COVID-19 se mostrou mais severa em casos de pacientes que não apresentavam uma coinfecção parasitária. Os resultados obtidos por esses autores demonstram que, possivelmente, os parasitas intestinais avaliados, helmintos e protozoários, sejam responsáveis por modular a resposta imune do paciente, reduzindo a hiperinflamação causada pela virose em questão. Além disso, os autores também afirmam que pacientes com comorbidade que possuíam infecções parasitárias concomitantes apresentaram menor probabilidade de desenvolver a forma severa da COVID-19.(20)
De acordo com os dados destacados no levantamento clínico da equipe de Wolday, dos 751 pacientes infectados com o vírus SARS-Cov-2, cerca de 37,8% apresentavam infecções parasitárias simultâneas. Tais indivíduos que possuíam coinfecções de parasitas como Entamoeba spp., Hymenolopis nana e Schistosoma mansoni apresentaram menores chances de desenvolver a versão mais grave da COVID-19, onde apenas 10,6% evoluíram para a forma severa da virose em questão. Ao longo do estudo, os autores relataram 11 mortes, sendo todas do grupo de pacientes que não apresentaram a coinfecção.(21)
Em contrapartida, Bradbury e sua equipe reforçam a ideia de que infecções causadas por helmintos podem ativar as respostas do tipo 1 e 2, o que pode acarretar a redução da resistência imunológica dos pacientes ao SARS-Cov-2 e, consequentemente, agravar o estado dos pacientes em casos de coinfecção. Os autores sugerem ainda que a comunidade cientifica deve investigar a possibilidade de tais parasitoses favorecerem a disseminação da COVID-19 em regiões endêmicas de helmintos.(22) Por outro lado, Rollot e colaboradores afirmaram que a coinfecção esquistossomótica interferiu positivamente em uma infecção respiratória por Herpes vírus, reduzindo a gravidade da doença a partir do aumento da ativação de linfócitos TCD8+, específicos para o vírus, através da liberação de IL-4,(23) sugerindo uma ideia contrária ao estudo de Bradbury e colaboradores (2020) quanto à modulação dos helmintos em casos de infecções virais, como a COVID-19.
Não obstante, deve-se levar em consideração o fato de que a COVID-19 também pode causar sintomas semelhantes a algumas parasitoses de ciclo pulmonar, como é o caso dos helmintos transmitidos pelo solo. A pneumonia parasitária é decorrente da migração da larva, fazendo com que o indivíduo acometido apresente manifestações como tosse, febre, falta de ar e até mesmo a chamada síndrome de Löffler, oriunda da reação antigênica. Sendo assim, o risco de diagnósticos errados em casos de parasitoses em meio à pandemia é elevado, favorecendo o tratamento inadequado e o agravamento da situação do paciente.(24)
Diferentes pesquisas afirmam que as coinfecções helmínticas são responsáveis por um aumento considerável na morbimortalidade de doenças graves, como AIDS, malária e tuberculose. Partindo desse pressuposto, Abdoli afirma que os helmintos também podem ser responsáveis por um agravo na COVID-19. Além disso, segundo ele, a imunomodulação destes parasitas pode causar uma ineficácia das vacinas, principalmente em pacientes imunocomprometidos, ou seja, que apresentam idade avançada, comorbidades e/ou gestantes, prejudicando, assim, a imunização da população.(25) Corroborando com essa proposta, Hartmann e sua equipe relataram a redução da eficácia da vacina contra H1N1, com presença concomitante ou prévia da infecção helmíntica, observando a redução da quantidade e da qualidade dos anticorpos produzidos por indução vacinal.(26)
É válido ressaltar que, até o presente momento, por ser um assunto extremamente novo, alguns dos trabalhos citados estão na modalidade preprint, o que pode comprometer a fidedignidade de alguns dos resultados. Sendo assim, ainda que alguns autores sugiram a possibilidade da helmintíase experimental como uma alternativa para modulação imunológica, trata-se de uma ideia muito controversa e que exige maiores estudos, controlados e aprofundados, para avaliar sua viabilidade.
CONCLUSÃO
Apesar da importância do tema alvo deste trabalho, observa-se que a quantidade de artigos abordando essa associação COVID x Parasitoses ainda é bastante escassa. A imunomodulação é também um assunto intricado e muitos estudos ainda devem ser realizados para embasar melhor todas as perguntas lançadas. Apesar de alguns artigos afirmarem que a coinfecção pode levar a um prognóstico positivo, outros, em contrapartida, indicam o inverso. Muitas variáveis existem e todas elas devem ser consideradas antes de qualquer julgamento ou decisão. É opinião das autoras que somente o investimento maciço em estudos nesse segmento pode elucidar a complexa relação entre o sistema imune, as parasitoses e a COVID-19.
Abstract
Until now, more than 550,000 deaths caused by COVID-19 have been reported in Brazil. Stimulated by Sars-Cov-2, the formation of an inflammasome causes a systemic inflammatory process, responsible for the progression of the disease, and favors the emergence of opportunistic diseases, such as parasitosis, which are excellent modulators of the immune system, inducing a tolerance of the organism through the balance between pro-inflammatory and anti-inflammatory responses. From this, a bibliographical survey was carried out with the aim of evaluating the possible immunomodulatory relationship of parasitic infections in COVID-19. There is an extensive discussion regarding the presence of parasitic diseases concomitant to this coronavirus, due to the possibility of modulation of the immune system, which may be able to curb or intensify the progression of COVID-19, as well as interfere with the post-vaccine seroconversion of affected individuals, a since diseases directly related to inflammatory processes, such as type 2 diabetes mellitus, make these individuals more susceptible to the more severe forms of this pandemic. Thus, although some authors suggest the possibility of experimental helminthiasis as an alternative to immunomodulation. This is a controversial idea, which needs further studies to assess whether such a procedure would be safe and viable to apply or not.
Keywords
COVID-19; Immunomodulation; Opportunistic parasitosis
REFERÊNCIAS
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Correspondência
Joseli Maria da Rocha Nogueira
Laboratório de Microbiologia
Departamento e Ciências Biológicas
Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP)
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – Manguinhos
Rio de Janeiro-RJ, Brasil
E-mail: [email protected]