Avaliação dos níveis de sICAM-1 em pacientes com doença falciforme
Assessment of sICAM-1 levels in patients with sickle cell disease
Vanessa Regina Galeazzi1
Paulo Roberto Merisio2
1Estudante. Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR – Campus Toledo – Toledo, PR, Brasil..
2Mestre. Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR – Campus Toledo – Toledo, PR, Brasil.
Instituição: Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR – Campus Toledo – Toledo, PR, Brasil.
Artigo recebido em 10/10/2013
Artigo aprovado em 29/01/2016
Resumo
Objetivo: Este estudo teve como objetivo verificar os níveis séricos de ICAM-1 em crianças com doença falciforme com crise e sem crise clínica, comparando com um grupo controle saudável. Métodos: As dosagens de sICAM-1 foram realizadas através da técnica de enzimaimunoensaio (ELISA). Resultados: As análises demonstraram aumentos significativos de sICAM-1 em pacientes com doença falciforme em relação ao grupo controle. No entanto, não houve diferenças estatísticas nos níveis desta molécula entre os pacientes com a doença, embora tenha se mostrado aumentada na maioria dos pacientes. sICAM-1 também apresentou uma correlação positiva com a contagem de leucócitos, o que possibilita sugerir que o aumento de leucócitos esteja associado à lesão endotelial nestes pacientes. Conclusão: Sugere-se também que sICAM-1 esteja envolvida no processo de ativação endotelial e vasoclusão, e que a maioria dos pacientes com doença falciforme apresente lesão endotelial mesmo sem estar em crise clínica.
Palavras-chave
Anemia falciforme; Elisa; sICAM-1
INTRODUÇÃO
A anemia falciforme é a doença hereditária monogênica de maior ocorrência no Brasil, e com predominância em pessoas afrodescendentes.(1) Nesta doença ocorre uma mutação no cromossomo 11, a qual promove a substituição do aminoácido valina pelo ácido glutâmico na posição 6 da cadeia beta de hemoglobina, modificando sua estrutura molecular e dando origem à hemoglobina S (HbS).(2)
A HbS em condições de hipóxia sofre um processo de polimerização assumindo a forma de foice,(3) trazendo rigidez às hemácias, o que prejudica sua passagem pelos pequenos vasos e capilares. Assim, ocorrem fenômenos de vasoclusão, acarretando infartos com lesões de diversos órgãos e episódios de dor.(4)
A doença de origem africana, descrita pela primeira vez pelo Dr. James Herrick,(5) chegou às Américas pela imigração forçada de negros trazidos como escravos. No Brasil tem predominância entre pardos e negros, mas pode estar presente em brancos.(6) No estado do Paraná, de acordo com estudos realizados por Watanabe,(7) há uma prevalência de 2,2 homozigotos SS a cada 100 mil recém-nascidos vivos e um heterozigoto para cada 66 recém-nascidos vivos. Gonçalves et al.(8) afirmam que a doença falciforme ocorre em um a cada quinhentos nascidos afro-americanos e em um a cada mil a 4 mil nascidos hispano-americanos.
O termo doença falciforme não se refere apenas à anemia falciforme, mas engloba todo um grupo de anemias hemolíticas hereditárias que têm em comum a presença de hemoglobina S no interior da hemácia.(9) A anemia falciforme é assim denominada quando os indivíduos apresentam estado homozigótico para hemoglobina S. O gene S é determinante na alteração estrutural da hemoglobina.(10) O gene da HbS pode formar ainda combinações com outras anormalidades hereditárias, como hemoglobina C, D e beta-talassemia, gerando doença SC, doença SD e doença Sb-talassemia, constituídas no grupo das doenças falciformes. Além disso, quando o indivíduo herda de um dos pais o gene da hemoglobina A (HbA) e do outro o gene da HbS, ele é considerado portador do traço falciforme, não apresentando os sintomas da doença.(6) Contudo, a anemia falciforme destaca-se nesse grupo devido à sua morbidade e alto índice de mortalidade, tendo sido apontada como uma questão de saúde pública.(11)
Para que as moléculas de HbS se agreguem, além da ausência de oxigênio é necessário que estas estejam em um alto nível de concentração dentro da célula.(12) Depois de seguidos episódios de falcização, as células tornam-se desidratadas pela perda de potássio e água.(13) Esse processo eleva os níveis de CHCM favorecendo o aumento de polímeros de HbS. A polimerização é intensificada pela falência da bomba de Ca2+/ATPase, causando alteração na permeabilidade da membrana da hemácia, sendo este o principal fator da irreversibilidade do eritrócito falcizado.(14)
A anemia hemolítica geralmente aparece como um dos primeiros sintomas em pacientes com essa doença, estando diretamente relacionada com o declínio dos níveis de hemoglobina fetal (HbF).(15) A hemólise promove a liberação de hemoglobina no plasma, convertendo o óxido nítrico (NO) em nitrato inativo. A diminuição nas concentrações de NO causa uma alteração na homeostasia vascular, aumentando a ativação de plaquetas e a adesão de moléculas ao endotélio, promovendo vasoconstrição e consequente vasoclusão.(16) Este evento leva o paciente a ter crises de dor, infartos e necrose de órgãos como ossos e articulações, baço, pulmões e outros.(17)
Clinicamente, os pacientes com anemia falciforme não apresentam os sintomas da doença até os 6 meses de vida, pois nessa fase ainda há um alto nível de HbF,(18) que exerce um fator protetor contra a falcização, pois possui maior afinidade pelo oxigênio e não se incorpora ao polímero de HbS.(6,19,20,21)
As manifestações clínicas na doença falciforme podem se apresentar de forma aguda ou crônica.(22) Os fenômenos vasoclusivos acometem principalmente ossos, fígado, pulmões, cérebro, baço e pênis. Em crianças, as dores ósseas costumam ser confundidas com osteomielite aguda e a hipóxia cerebral pode levar a convulsões ou acidente vascular cerebral. Podem ocorrer crises aplásticas muitas vezes causadas por infecção das células eritroides pelo parvovírus B19. Além disso, em crianças com esplenomegalia pode ocorrer crise por sequestro, a qual pode ser convertida por transfusões.(23)
A hipóxia tecidual causada pela vasoclusão na doença falciforme desencadeia fenômenos inflamatórios que variam sua intensidade de acordo com o grau de necrose tecidual. A inflamação gerada promove a liberação de citocinas inflamatórias no local da lesão, promovendo a expressão de moléculas de adesão. Essas moléculas estimulam a quimiotaxia de leucócitos, que liberam peróxido de hidrogênio acentuando a lesão vascular.(24-26) A vasoclusão nesta doença é causada devido à interação que ocorre entre a hemácia falciforme e o endotélio vascular. Assim, quanto maior for essa interação, maior será a gravidade da doença,(27) e esta aderência é diretamente proporcional à densidade da célula. Após a adesão, as células endoteliais tornam-se ativadas(28) e, além de promover alterações no processo de coagulação, desencadeiam fenômenos inflamatórios com a mobilização de granulócitos e monócitos.(12) As células endoteliais também são responsáveis pela liberação de endotelina-1, que aumenta as concentrações plasmáticas de Molécula de Adesão Celular Vascular-1 (VCAM-1) e Molécula de Adesão Intercelular-1 (ICAM-1), e estimula a secreção de citocinas inflamatórias por monócitos.(29)
A ICAM-1 é uma glicoproteína transmembrana utilizada como um indicador da inflamação.(30) Sua expressão é evidente na superfície de células endoteliais,(31) e, em condições normais, essa molécula está presente em baixos níveis, tendo sua expressão estimulada drasticamente após a ativação das células endoteliais por fator de necrose tumoral-a (TNF-a), interleucina-1 (IL-1), interferon-g, endotoxina ou lipopolissacarídeos.(31-34) Quando expressas, as moléculas de adesão apresentam uma superfície adesiva que permite a ligação de leucócitos recrutados durante a resposta inflamatória.(35) Em estudo realizado por Solovey et al.,(36) maiores concentrações de sICAM-1 foram encontradas em pacientes com anemia falciforme quando em comparação a um grupo controle.
Deste modo, sICAM-1 parece estar envolvida nos processos de ativação endotelial e de vasoclusão, porém a existência destes estudos em crianças é pouco comum.(37) Apesar de ser uma molécula estrutural, ICAM-1 pode ser mensurada in vivo por meio de sua forma solúvel (sICAM-1).(38) Devido aos raros estudos relacionados à concentração de sICAM-1 em crianças com doença falciforme, este trabalho tem como objetivo a dosagem sérica dessa molécula nesses pacientes, tanto em crise clínica como na ausência de crise, de modo a comparar os valores obtidos com as dosagens encontradas em pacientes não portadores da doença.
MATERIAL E MÉTODOS
O presente estudo foi realizado buscando a comparação entre as dosagens de sICAM-1 em três populações: pacientes com doença falciforme sem crise clínica, pacientes com doença falciforme com crise clinica e pacientes sem doença falciforme (grupo controle). Todos constituídos por indivíduos de sexo feminino e masculino, com idade entre 0 e 21 anos.
Foram analisadas 45 amostras do soro de pacientes doentes, sendo 17 em crise e 28 sem crise, atendidos no serviço de hematologia pediátrica do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR. Nesses grupos incluíram-se os genótipos SS, SC, SD e Sb. O material coletado para pesquisa já realizada anteriormente foi fornecido a este estudo. Simultaneamente, foram disponibilizados os prontuários com as demais informações desses pacientes. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Hospital de Clínicas da UFPR em 20 de maio de 2010.
O grupo controle foi constituído de 17 amostras fornecidas por um Laboratório de Análises Clínicas situado na cidade de Toledo, PR, após assinatura de Termo de Responsabilidade e Sigilo.
As amostras de sangue foram colhidas para realização de exames de rotina. O hemograma dos pacientes foi realizado pelo laboratório e os resultados fornecidos a este estudo.
A determinação das concentrações séricas de ICAM-1 foi realizada no laboratório de Hematologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) campus Toledo, através da técnica de enzimaimunoensaio (Elisa), seguindo os critérios exigidos na bula do kit da InvitrogenTM e utilizando leitor de Elisa da marca Biotek (modelo ELX800) para leitura das absorbâncias. Foram excluídas as amostras visualmente hemolisadas ou lipêmicas.
As análises estatísticas foram realizadas por meio da Análise da Variância (Anova), com critérios de significância adotados para p < 0,05, seguido do teste de Tukey. Foi utilizado o Coeficiente de Correlação de Pearson para verificar a relação entre variáveis.
RESULTADOS
Os pacientes foram divididos em três grupos: controle, falciforme sem crise e falciforme com crise, os quais apresentaram as seguintes concentrações de sICAM-1: 262,9 ng/mL, 406,8 ng/ mL e 465,7 ng/ mL, respectivamente (p=0,0001). As análises demonstraram aumentos estatisticamente significativos de sICAM-1 em pacientes com doença falciforme, tanto em crise clínica como na ausência de crise, em relação ao grupo controle (Figura1).
Em relação à comparação das concentrações séricas de ICAM-1 com a variável leucócitos, essa molécula apresentou uma correlação positiva fraca quando comparados todos os pacientes (r=0,419) (Figura 2).
Figura 1. Concentrações de sICAM-1
Figura 2. sICAM-1 vs Leucócitos
DISCUSSÃO
Os níveis séricos de ICAM-1 encontrados nos três grupos analisados apresentaram diferença estatisticamente significativa quando comparando o grupo controle àqueles representados pelos pacientes com doença falciforme, tanto estáveis como em crise clínica (Figura 1). No entanto, não houve diferença estatística considerável nos níveis de sICAM-1 na comparação entre os dois grupos com doença falciforme, sugerindo um estado de ativação endotelial em ambos os grupos de pacientes com doença falciforme,(35,39,40) pois as concentrações de sICAM-1 apresentaram-se aumentadas na maioria dos indivíduos.
De acordo com Vichinsky,(41) na anemia falciforme há um aumento na produção de moléculas de adesão ocasionado pela redução da biodisponibilidade de NO. Devido à hemólise que ocorre nesses pacientes, a hemoglobina é liberada no plasma onde degrada o NO promovendo a inibição da vasodilatação(42) e disfunção endotelial,(43) que acarreta aumento na produção de moléculas de adesão(41) contribuindo para o fenômeno vasoclusivo.(44) É provável que isso justifique os níveis elevados de sICAM-1 em pacientes com essa doença, mesmo na ausência de crise vasoclusiva. Apesar de nossos estudos demonstrarem um aumento nos níveis séricos de ICAM-1 em pacientes com doença falciforme, essa molécula não aumentou de forma considerável em pacientes em estado de crise vasoclusiva, possivelmente justificado pelo estado de inflamação crônica existente.(12)
Um estudo realizado em 2009 mostrou que indivíduos hipercolesterolêmicos apresentam maiores níveis de sICAM-1 e, como consequência, maior risco de lesão endotelial.(45) Glowinska et al.,(46) encontraram maiores níveis de sICAM-1 em crianças magras hipertensas. Assim como em nosso trabalho, Benkerrou et al.,(47) Blum et al.(40) e Kanavaki et al.(48) também verificaram níveis séricos de ICAM-1 relativamente maiores em pacientes com doença falciforme quando compararam a um grupo controle representado por indivíduos saudáveis, confirmando um grau de ativação endotelial importante em pacientes com essa doença, mesmo sem crise clínica. Isso provavelmente seja explicado pela adesão de eritrócitos ao endotélio vascular, a qual desencadeia fenômenos inflamatórios.(12)
Outra possível explicação para os níveis elevados de sICAM-1 nos indivíduos doentes é o aumento na produção de moléculas de adesão induzido por citocinas pró-inflamatórias, como TNF-a e interleucina-8 (IL-8), as quais têm sido descritas no plasma de pacientes com anemia falciforme sem crise. Essas alterações podem estar relacionadas ao aumento da expressão de moléculas de adesão no endotélio vascular.(49) Klimiuk et al.(50) afirmam que a produção de sICAM-1 é induzida por citocinas na disfunção endotelial, tendo seu envolvimento no processo inicial da inflamação. As citocinas também estão envolvidas no crescimento e na produção de leucócitos.(51) Assim, sugere-se que os mesmos fatores que aumentam a contagem de leucócitos também podem induzir um aumento nos níveis de sICAM-1.
Diferentemente de estudos já discutidos, Merísio(37) encontrou concentrações menores de sICAM-1 em pacientes em estado de crise vasoclusiva em comparação a pacientes estáveis quando dosou essa molécula em crianças com doença falciforme, sugerindo que possivelmente sICAM-1 apresente sua velocidade de depuração mais rápida na crise vasoclusiva.
Em relação à contagem de leucócitos, essas células demonstraram uma correlação positiva fraca com as concentrações de sICAM-1. Esse resultado indica que o aumento dessas células sanguíneas pode estar diretamente relacionado à elevação nos níveis séricos dessa molécula. Alguns autores afirmam que a leucocitose é considerada fator independente de risco para morte precoce em pacientes com doença falciforme na ausência de crise, além de estar associada a complicações dessa doença, como acidente vascular cerebral e priaprismo.(25,52) Também há indicadores que estabelecem uma correlação entre o grau de leucocitose e a morbidade nesses pacientes.(25,53) Isso provavelmente seja justificado pelo fato da anemia falciforme ser caracterizada pela ocorrência de um estado pró-inflamatório apresentando aumento na contagem de leucócitos.(54)
Ataga et al.(55) verificaram contagens elevadas de leucócitos em pacientes adultos com anemia falciforme sem crise comparando a um grupo controle representado por adultos saudáveis. Concordando com nossos resultados, Benkerrou et al.(47) encontraram maior contagem de leucócitos totais em seu estudo envolvendo crianças africanas com doença falciforme.
Em conclusão, verificou-se que há um aumento significativo nas concentrações séricas da molécula ICAM-1 em crianças com doença falciforme, a qual possivelmente esteja envolvida na ativação endotelial nesses pacientes, mesmo na ausência de crise vasoclusiva. No entanto, em estado de crise, as concentrações dessa molécula não apresentaram um aumento considerável em comparação com o grupo sem crise, sugerindo que sICAM-1 não pode ser considerada um marcador de crise clínica na doença falciforme.
Devido à correlação positiva apresentada com sICAM-1, um aumento na contagem de leucócitos pode também ser sugestivo de lesão endotelial. Entretanto, tornam-se necessários mais estudos em relação às dosagens dessa molécula em portadores de doença falciforme, inclusive em crianças, a fim de buscar melhorias na qualidade de vida desses pacientes.
Abstract
Objective: This study aimed to determine the serum levels of ICAM-1 in children with sickle cell disease with and without clinical crisis, compared with a healthy control group. Methods: Dosages of sICAM-1 were performed by enzyme immunoassay technique (ELISA). Results: The analyzes showed significant increases in sICAM-1 in patients with sickle cell disease in the controlled group, However, there were no statistical differences in the levels of this molecule among patients with the disease, although it has been shown to be elevated in most patients. sICAM-1 also showed a positive correlation with the leukocyte count, which allows to suggest that the increase in leukocytes is associated with endothelial injury in these patients. Conclusion: It is also suggested that sICAM-1 is involved in endothelial activation process vaso-occlusion and that most patients with sickle cell disease present endothelial injury without even being in clinical crisis.
Keywords
Sickle cell disease; Elisa; sICAM-1
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Correspondência
Paulo Roberto Merisio
Avenida de União, 500 – Jardim Coopagro
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