A história do exame de urina: Idade moderna

The history of urine examination: Modern age

 

Paulo Murillo Neufeld, PhD  |  Editor-Chefe da RBAC

 

Recebido em 12/07/2022

Aprovado em 28/08/2022

DOI: 10.21877/2448-3877.202200092

 

A uroscopia chegou à Idade Moderna completamente desacreditada, em decorrência da atuação de médicos e leigos mal-intencionados que visavam apenas o ganho financeiro e não mediam esforços para enganar e ludibriar pacientes incautos. Já no final da Idade Média, diversos textos foram escritos com o intuito de alertar a comunidade médica acerca dos excessos cometidos por parte dos uroscopistas chalatães. No entanto, na Idade Moderna, sob a influência do Iluminismo e da ciência nascente, o diagnóstico por adivinhação da uroscopia foi dando lugar a uma abordagem mais sistemática com os avanços da química orgânica/ alquimia e a introdução do microscópio óptico.

O exame microscópico da urina, metodologia que se seguiu à uroscopia, só foi possível com a conjuminância de dois eventos técnico-científicos de extrema importância que alteraram completamente não apenas a análise de urina em si, mas também a própria medicina laboratorial: o desenvolvimento de corantes e a invenção do microscópio [1590-91]. Particularmente em relação ao microscópio, os créditos pela invenção têm sido dados aos holandeses Hans Janssen [?-1590] e Zacharias Janssen [1580-1638], pai e filho que trabalhavam na fabricação de óculos e lentes na região de Middleburgh. Hans Janssen, inicialmente, e seu filho Zacharias, posteriormente, fizeram experimentos colocando duas lentes de vidro [objetiva e ocular] nas extremidades de um tubo, e desse modo, conseguiram ampliar imagens [30x] e observar objetos de tamanho muito reduzido.  Com o tempo, na medida em que a técnica de fabricação de lentes melhorava, o instrumento por eles inventado [microscópio composto] foi sendo aperfeiçoado e seu poder de ampliação e discriminação foi também sendo melhorado. Inclusive, muito rapidamente, microscópios [e telescópios] tornaram-se disponíveis em toda a Europa.

Ainda sobre a história dos microscópios, Robert Hooke [1635-1703], importante pesquisador inglês, desenvolveu microscópios compostos com potência superior à daqueles inventados pela família Janssen, confeccionados em tubo de metal e formado por partes móveis e constituído de uma lente objetiva, que se localizava perto do objeto a ser visualizado, e uma lente ocular, com a qual se faziam as observações. O foco era ajustado por meio de um parafuso que deslocava o ângulo de observação.  Em 1665, Hooke publicou seu livro Micrographia que, com grande riqueza de detalhes, descrevia com textos e ilustrações seu microscópio e as diversas estruturas visualizadas por ele. A partir da visualização microscópica da cortiça, Hooke cunhou o nome “célula”. Posteriormente, ao entrar em contato com o livro de Hooke, o holandês Antonie van Leeuwenhoek [1632-1723], em 1668, passou a construir microscópios simples de apenas uma única lente pequena e esférica entre duas placas de cobre. Uma ponta afiada de um dispositivo no microscópio segurava o espécime para observação, um parafuso movia a amostra para a posição em frente à lente e outro parafuso movia para cima ou para baixo para o ajuste do foco.  Leeuwenhoek construiu os microscópios com a maior capacidade de ampliação da época, alcançando aumentos acima de 200x. Esse instrumento permitiu a observação de hemácias, espermatozoides, embriões de plantas e microrganismos.  A partir de 1673, Leeuwenhoek passou a escrever cartas para a Royal Society, em Londres, detalhando suas descobertas baseadas nos seus microscópios simples.

Com relação à microscopia da urina, observações ocasionais e elementares podem ser rastreadas até a primeira metade do século XVII, ou seja, a apenas algumas décadas depois que os microscópios começaram a circular na Europa. No entanto, foi o astrônomo e naturalista francês Nicolas-Claude Fabri de Peiresc [1580-1637] o primeiro a observar, em 1630, cristais e fragmentos de cálculos renais, empregando um microscópio primitivo. Peiresc, trabalhando com uma “urina de aspecto arenoso”, observou uma grande quantidade de estruturas microscópicas que se assemelhavam a “tijolos de arranjo romboidal”. Provavelmente, cristais de ácido úrico ou oxalato de cálcio foram, efetivamente, as estruturas visualizadas por ele naquele tempo. Em seu livro Micrographia, Hooke também ilustrou com grande rigor descritivo os cristais urinários observados. Em sua “Carta 61” da revista Arcana Naturae Detecta, Leeuwenhoek relatou, igualmente, a visualização de cristais em uma gota de urina. Da mesma forma, o médico dinamarquês Georg Hann [1647-1699] publicou suas observações acerca dos cristais urinários na revista alemã Micellunea Curiosa.

Interessante notar, contudo, que poucos indivíduos, nesse período, olharam microscopicamente para a urina e quando o fizeram, descreveram apenas cristais, talvez por sua aparência marcante ou pelas limitações técnicas dos microscópios. Achados urinários, todavia, não foram mencionados por importantes microscopistas como Henry Power [1623-1668], Marcello Malpighi [1628-1694], Jan Swammerdam [1637-1680] e nem por Lorenzo Bellini [1643-1704], em seu livro De Urinis et Pulsibus, publicado em 1683.

Outros exemplos de ausência de observações microscópicas sobre a urina podem ser encontrados nos trabalhos do pediatra sueco Rosén von Rosenstein [1706-1773], que estudou a nefrite decorrente de escarlatina e que, embora tenha descrito a presença de hematúria, não fez referência à visualização microscópica de hemácias em seus textos. Hemácias também não foram vistas pelo médico italiano Domenico Cotugno [1736-1780], que descreveu e nomeou a “albuminúria”, em 1770. Os médicos ingleses John Bostock [1773-1846] e Richard Bright [1789-1858], que desenvolveram estudos sobre a composição da urina, também não relataram a visualização microscópica de hemácias.

Essas omissões acerca da microscopia da urina indicam, de forma bastante clara, que o uso do microscópio com fins diagnósticos não era compreendido ou valorizado, sendo o emprego desse instrumento apenas uma curiosidade ocasional.

Contribuindo para a pouca importância dada à microscopia, as imagens produzidas nesse período apresentavam baixa resolução, com graves desvios e aberrações esféricas e cromáticas. Além disso, essas imagens eram invariavelmente muito difusas, multicoloridas e sobrepostas. Para uma efetiva microscopia diagnóstica da urina, na verdade, haveria a necessidade de instrumentos ópticos de qualidade superior que ainda não existiam naquele momento histórico, o que limitou o uso dos microscópicos na medicina, durante todo o período compreendido entre os séculos XV e XVIII.

Apesar desse quadro adverso, a microscopia de urina para a investigação de mecanismos e manifestações de doença foi proposta por alguns poucos pesquisadores. Nesse sentido, ao observar, em 1630, aquelas estruturas semelhantes a “tijolos romboidais” mencionadas anteriormente, Peiresc procurou correlacionar a sensação dolorosa informada por alguns pacientes durante o ato de micção com a presença desses elementos na urina. Herman Boerhaave [1668-1738], médico e naturalista holandês, hipocrático e fundador da “medicina da beira do leito”, utilizou o microscópio para também avaliar se a urina de indivíduos saudáveis e com histórico negativo de urolitíase continha precursores de cálculos urinários. Para tanto, ele avaliou amostras em diferentes intervalos de tempo, lançando mão de diferentes tipos de microscópios. À microscopia, Boerhaave observou a presença de elementos descritos como corpúsculos semelhantes a flocos de lã, estruturas fibrinosas ou estriadas e fragmentos farináceos. Após 24 horas de repouso, cristais surgiram no fundo do frasco. Essa observação cuidadosa e detalhada levou o médico holandês a concluir que a urina normal continha, de fato, precursores de cálculos renais [Nascitur enim calculus ex omini urina sana].

Uma abordagem clínica foi também tentada por Domenico Gusmano Galeazzi [1686-1775], médico anatomista italiano que, tratando uma paciente que apresentava pele, suor e urina enegrecidos, ao proceder a microscopia urinária buscou correlacionar os achados microscópicos, representados por glóbulos extremamente diminutos misturados a cristais aciculares, à sintomatologia observada. No entanto, esses achados microscópicos não permitiram que Galeazzi chegasse a uma conclusão plausível pela falta de conhecimento sobre fisiopatologia e pela ausência de efetiva conexão com a clínica.

Por fim, Henry Baker [1698-1774], naturalista inglês, e Martin Frobenius Ledemüller [1719-1769], naturalista alemão, foram autores de inúmeros livros ilustrados baseados em análises microscópicas de amostras biológicas. Ledemüller, inclusive, ao analisar a urina, observou que os sais pareciam variar de acordo com o que o indivíduo ingeria e que diferentes estruturas microscópicas poderiam ser observadas em períodos de tempos diferentes no mesmo indivíduo. Esses estudos foram publicados entre os anos de 1760 e 1762, em seu livro Mikroskopischer Gemüts und Augen Ergötzung, composto por 3 volumes, sob o título Ein Tropfen Urin.

Na verdade, a análise microscópica da urina só chamaria mais atenção da comunidade médica internacional e ganharia uma perspectiva mais científica e de apoio diagnóstico cerca de duzentos anos após a invenção do microscópio, quando os primeiros estudos sobre o tecido renal surgiram.

 

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Correspondência

Joseli Maria da Rocha Nogueira

E-mail: [email protected]