Teste rápido de sensibilidade aos antimicrobianos EUCAST RAST direto do frasco de hemocultura positiva em um hospital público regional

European Committee on Antimicrobial Susceptibility Testing (EUCAST) rapid antimicrobial susceptibility testing (RAST) directly from positive blood cultures in a Brazilian regional public hospital

 

 

Valéria Martins Soares1, Aléxia Soares Varella2, Diana Manzi Viegas3

 

1,3   Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais/Hospital Júlia Kubitschek, Setor de Microbiologia/Laboratório. Belo Horizonte, MG, Brasil.

2  Universidade Federal de São João del-Rei, Campus Centro-Oeste, Curso de Medicina. Divinópolis, MG, Brasil.

 

Recebido em 26/03/2024

Aprovado em 26/04/2024

DOI: 10.21877/2448-3877.202400175

 

INTRODUÇÃO

 

O laboratório de microbiologia clínica tem grande importância no diagnóstico das infecções de corrente sanguínea (ICS). A decisão definitiva de qual antimicrobiano deverá ser usado, após o início de terapia empírica, é baseada no resultado de testes de sensibilidade in vitro, mediante o crescimento bacteriano nas culturas de rotina.(1) O uso de metodologias mais rápidas tem o potencial de reduzir o tempo de terapia empírica e de início de terapia específica com antimicrobianos sensíveis in vitro, podendo prevenir a emergência e disseminação de cepas resistentes, reduzindo os custos hospitalares e a mortalidade.(2,3)

A metodologia de disco-difusão é uma metodologia clássica muito usada na realização do teste de sensibilidade aos antimicrobianos (TSA).(4) O método é simples, de baixo custo, reproduzível, permitindo a testagem de vários antibióticos ao mesmo tempo.(2) No entanto, o TSA requer um inóculo definido a partir de uma cultura pura e incubação overnight,(5) levando-se pelo menos 2 dias para a obtenção do resultado a partir da sinalização da hemocultura como positiva.(2)

Neste contexto, em novembro de 2018, o EUCAST (European Committee for Antimicrobial Susceptibility Testing) padronizou o teste rápido de sensibilidade aos antimicrobianos (RAST), que pode ser realizado diretamente do frasco de hemocultura positiva com leitura após 4, 6 e 8 horas de incubação.(6) No entanto, o teste estava limitado a laboratórios de microbiologia capazes de identificar a bactéria dentro desse tempo, uma vez que a interpretação do teste é realizada de acordo com a bactéria. A partir de 2022, o EUCAST RAST foi validado também para 16-20 horas de incubação, mediante critérios de leitura e interpretação específicos, em situações em que a leitura após incubação menor não pode ser realizada, de acordo com a logística e limitações do laboratório de microbiologia.(6,7)

O objetivo deste estudo foi avaliar o desempenho do RAST na rotina laboratorial, diretamente em amostras de hemocultura positivas para Escherichia coli e Klebsiella pneumoniae após 16-20 horas de incubação, por meio de comparação com o antibiograma convencional realizado a partir do crescimento bacteriano em meio sólido.

 

MATERIAL E MÉTODOS

 

O estudo foi realizado no setor de microbiologia do laboratório do Hospital Júlia Kubitschek (HJK). HJK é um hospital geral, público, de abrangência regional e que faz parte do complexo de especialidades da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG).

Trata-se de um trabalho descritivo e comparativo para avaliar o desempenho do RAST em comparação com o método de disco-difusão padrão (método padrão) utilizado na rotina. Foram incluídas amostras de hemocultura positivas para E. coli e K. pneumoniae. O trabalho foi aprovado no comitê de ética e pesquisa da FHEMIG, CAAE 74524523.6.0000.5119.

Os frascos de hemocultura (Bactec Plus aeróbico, Bactec Plus anaeróbico e Bactec Plus pediátrico, Beckton-Dickinson, USA) foram incubados no equipamento BD BACTEC FX a 35ºC (Beckton-Dickinson, USA). Os frascos positivos foram removidos e corados pela metodologia de Gram. A positividade da cultura e o resultado da coloração de Gram foram comunicados aos clínicos pelo setor de microbiologia, conforme protocolo já estabelecido na instituição.

A metodologia RAST foi realizada de acordo com o protocolo do EUCAST,(6) com a modificação no volume utilizado,(2) em que 250µl do meio líquido da hemocultura positiva foram semeados por estriamento em placa de ágar Mueller-Hinton 150mm (Plastlabor®, Rio de Janeiro, Brasil), assegurando-se a distribuição uniforme do inóculo. Os seguintes discos de antimicrobianos foram colocados: amicacina 30 µg, gentamicina 10µg, imipeném 10µg, meropeném 10µg, sulfametoxazol-trimetoprima 23,75-1,25µg, ciprofloxacina 5µg, piperacilina-tazobactam 30/6µg  e cefotaxima 5µg. As placas foram incubadas a 35±1ºC.

Como a identificação bacteriana deve ser realizada antes da leitura do RAST, uma vez que a interpretação é específica para cada espécie, o meio líquido da hemocultura positiva foi semeado também em ágar cromogênico CHROmagar Orientation (Plastlabor®, Rio de Janeiro, Brasil).

Após 16-20 horas de incubação, caso o meio cromogênico indicasse crescimento de E. coli ou de K. pneumoniae, a leitura da placa do RAST era realizada visualmente pelos microbiologistas, por meio da medição dos halos. A placa de meio cromogênico foi também utilizada como meio primário para a realização das provas bioquímicas tradicionais de identificação bacteriana e do antibiograma pelo método padrão (MP), segundo o documento anual do BrCAST (Brazilian Committee on Antimicrobial susceptibility Testing).(8)

O nível de concordância foi avaliado por meio de coeficiente kappa (κ), utilizando-se o software epitools.ausvet.com.au/comparetwotests. Os erros encontrados foram classificados da seguinte forma: muito importante (método padrão resistente e RAST sensível), importante (método padrão sensível e RAST resistente) e menor (reportado como sensível aumentando a exposição por um método e sensível ou resistente por outro). Alguns diâmetros foram também classificados como “área de incerteza técnica (AIT)” e foram excluídos da análise.

As recomendações do U.S Food and Drug Adminstration (FDA) foram usadas na aprovação do teste: concordância ≥90%, erro muito importante ≤1,5%, erro importante 3,0% e erro menor <10%).(2)

O controle de qualidade (CQ) dos discos de antimicrobianos e dos meios de cultura foi realizado de acordo com a padronização anual do BrCAST (Suspensão 0,5 McFarland com 16-20 horas de incubação a 35±1°C).(8)

Para calibrar e validar o protocolo RAST, o CQ foi realizado em dias consecutivos, inoculando-se 1mL de suspensão bacteriana contendo 100-200 UFC (0,5 McFarland diluída a 1:1.000.000) da cepa de E. coli ATCC 25922 em um frasco de hemocultura com 5mL de sangue estéril. Os frascos inoculados foram incubados no equipamento e processadas pelo RAST, quando sinalizados como positivos.(6,9)

 

RESULTADOS

 

De agosto de 2023 a janeiro de 2024, foram 47 amostras de hemoculturas positivas com bastonetes Gram-negativos. Foram excluídas da análise 14 amostras nas quais houve o isolamento de outras Enterobacterales (6/14), bastonetes Gram-negativos não fermentadores (6/14) e cultura mista (2/14). Foi incluído um total de 33 amostras, das quais 22 (66,7%) foram identificadas como E. coli e 11 (33,3%) como K. pneumoniae.

Quando comparada ao método padrão, a amicacina e a piperacilina-tazobactam foram os antimicrobianos que apresentaram menor concordância kappa e maior porcentagem de erros muito importantes, 6,1 e 6,2%, respectivamente. Outro erro importante foi encontrado para a gentamicina (3%).  Para o meropeném, houve apenas 1 erro menor, relacionado a uma cepa categorizada como sensível, aumentando a exposição no método padrão, com resistência no RAST. Para os demais antimicrobianos testados não foram encontrados erros, de acordo com Tabela 1.

 

Comparação entre o RAST com leitura em 16-20 horas e o método padrão (MP)

Antimicrobiano Método Perfil de sensibilidade AIT Kappa Número (%) de:
S I R EMI EI EM
Amicacina

n=33

RAST

MP

28

26

0

0

8

7

0

0

0,798 2(6,1%) 0 0
Imipeném

n=33

RAST

MP

29

29

0

0

4

4

0

0

1 0 0 0
Meropeném

n=33

RAST

MP

29

29

0

1

4

3

0

0

0,86 0 0 1(3%)
Sulfazotrem

n=33

RAST

MP

17

17

0

0

16

16

0

0

1 0 0 0
Ciprofloxacino

n=28

RAST

MP

18

18

0

0

10

10

5

0

1 0 0 0
Cefotaxima

n=32

RAST

MP

18

18

0

0

14

14

1

0

1 0 0 0
PIP-TAZ

n=32

RAST

MP

27

25

0

0

5

7

1

0

0,796 2(6,2%) 0 0
Gentamicina

n=33

RAST

MP

27

26

0

0

6

7

0

0

0,904 1(3%) 0 0

Legenda: AIT, área de incerteza técnica; EMI, erro muito importante; EI, erro importante; EM, erro menor; PIP-TAZ, Piperacilina-Tazobactam; S, sensível; I, sensível aumentando a exposição; R, resistente.

 

 

DISCUSSÃO

 

O antibiograma convencional pela técnica de disco-difusão requer 2 dias de trabalho após a sinalização de uma hemocultura positiva. Nas infecções de corrente sanguínea por bactérias Gram-negativas, novos testes são necessários para diminuir o tempo de obtenção de resultados microbiológicos confiáveis. O escalonamento rápido é necessário em infecções por bactérias resistentes. Por outro lado, o descalonamento pode permitir o uso de um antimicrobiano de menor espectro, evitando a potencial promoção de resistência ocasionada pela pressão seletiva na microbiota.(1)

A metodologia EUCAST RAST realizada diretamente do frasco de hemocultura positiva tem o potencial de diminuir o tempo para a obtenção do resultado do teste de sensibilidade. A padronização do tempo de leitura estendido para 16-20 horas de incubação permitiu a utilização de um meio cromogênico para identificar presuntivamente E. coli e K. pneumoniae, realizando-se a leitura do RAST com os valores de halos de inibição para cada bactéria.

Com relação ao imipeném, os resultados foram similares aos encontrados por outros autores,(7) com concordância absoluta  em 38 amostras,  após 16-20 horas de incubação. Para o meropeném foi encontrado apenas 1 erro menor, em que o RAST classificou como resistente e o MP como sensível aumentando a exposição, em uma cepa de K. pneumoniae produtora de carbapenemase do tipo KPC (Klebsiella pneumoniae carbapenemase). A detecção de resistência ao imipeném e ao meropeném pelo RAST também permitiu que a pesquisa da produção de carbapenemases fosse realizada no mesmo momento, utilizando-se método cromatográfico NG CARBA 5 (NG-Biotech®, França) a partir do crescimento no meio Mueller-Hinton ou do meio cromogênico.

Nas outras 3 cepas com concordância foram detectadas 2 cepas produtoras de KPC e 1 co-produtora de KPC e NDM (Nova Delhi metalobetalactamase). Tais resultados mostram que o RAST pode ser uma ferramenta útil no escalonamento de antimicrobianos.(5)

Alguns autores relataram erros importantes em 16 de 31 amostras para a PIP-TAZO, porém para tempos de incubação menores.(10) Bianco et al. sugerem que, com tempo de leitura estendido para 16-20 horas, há um aumento da performance do teste, com maior grau de concordância, redução de erros muito importantes e redução da porcentagem de resultados dentro da AIT.  Porém, para a PIP-TAZO, o presente estudo encontrou 2 erros muito importantes (6,2%) e o teste para este antimicrobiano não foi validado de acordo com os critérios utilizados.

Para a amicacina, também foram encontrados 2 erros muito importantes (6,1%).  Outros autores não encontraram EMI ou EI para o antimicrobiano quando o tempo de leitura foi estendido para 16-20 horas.(7) Para a gentamicina, apesar de grau de concordância kappa muito bom (0,904), foi encontrado 1 EMI (3%). Não foram observados erros para os outros antimicrobianos avaliados, entretanto o RAST não pôde ser interpretado para o ciprofloxacino em 5 cepas por estar dentro da AIT.

Um dos fatores que pode levar a resultados discordantes é a falta de um inóculo controlado no frasco de hemocultura positiva, diferentemente do TSA tradicional, no qual é padronizado um inóculo bacteriano de 0,5 na escala de MacFarland.(2) Outros fatores como a qualidade do meio de cultura e problemas técnicos na realização da metodologia também podem contribuir. No entanto, os resultados obtidos neste estudo indicam que o RAST é comparável ao método padrão para testar a sensibilidade ao imipeném, meropeném, sulfametoxazol-trimetoprima, ciprofloxacino e cefotaxima.

Uma das limitações deste estudo foi o número pequeno de cepas resistentes, especialmente para os carbapenêmicos (4/33). No entanto, a partir da validação do teste para uso em rotina, novas amostras serão incluídas e estudos para avaliar o impacto clínico com a realização do RAST poderão ser realizados.

 

CONCLUSÃO

 

O estudo demonstrou que o RAST pode ser útil na rotina de um laboratório de microbiologia com pouco acesso à automação, diminuindo em 1 dia o tempo para obtenção do resultado de um teste de sensibilidade para E. coli e K. pneumoniae a antimicrobianos utilizados na prática clínica, em um hospital de grande porte. Para os antimicrobianos que apresentaram EMI, novos estudos deverão ser realizados com um maior número de amostras.

 

SUPORTE FINANCEIRO

 

A pesquisa não recebeu financiamento para a sua realização.

O presente trabalho foi realizado com o apoio dos funcionários do setor de Microbiologia do Laboratório do HJK e da FHEMIG.

 

REFERÊNCIAS

 

  1. Anton-Vazquez V, Suarez C, Planche T. Impact of rapid susceptibility testing on antimicrobial therapy and clinical outcomes in Gram-negative bloodstream infections. J Antimicrob Chemother. 2022 Feb 23;77(3):771-781. Disponível em: http://doi: 10.1093/jac/dkab449. PMID: 34928343.
  2. Martins A, Wink P, Pereira D, Souza A, Aquino V, Barth A. Rapid antimicrobial susceptibility of Enterobacteriaceae by disk diffusion directly from blood culture bottles using the EUCAST RAST breakpoints. J Glob Antimicrob Resist. 2020;22:637-642. doi: 10.1016/j.jgar.2020.05.015.
  3. Shan Y, Hu B, Guo W, Wang B, Zhou C, Huang S, Li N. 2022. Evaluation of the EUCAST Rapid Antimicrobial Susceptibility Test for Enterobacterales-Containing Blood Cultures in China. J Clin Microbiol 60:e02559-21. Disponível em: http://doi.org/10.1128/jcm.02559-21.
  4. Song D, Lei Y. Mini-review: Recent advances in imaging-based rapid antibiotic susceptibility testing. Sensors and Actuators Reports 2021;3:100053. doi: 10.1016/j.snr.2021.100053
  5. Berinson B, Olearo F, Both A, Brossmann N, Christner M, Aepfelbacher M, Rohde H. EUCAST rapid antimicrobial susceptibility testing (RAST): analytical performance and impact on patient management. J Antimicrob Chemother. 2021;76(5):1332-1338. doi: 10.1093/jac/dkab026
  6. Methodology – EUCAST rapid antimicrobial susceptibility testing (RAST) directly from positive blood culture bottles. Version 4.0, April 2023. Disponível em: http://www.eucast.org.
  7. Bianco G, Lombardo D, Ricciardelli G, Boattini M, Comini S, Cavallo R, Costa C, Ambretti S. Multicentre Evaluation of the EUCAST Rapid Antimicrobial Susceptibility Testing (RAST) Extending Analysis to 16–20 Hours Reading Time. Antibiotics. 2022; 11(10):1404. Disponível em: https://doi.org/10.3390/antibiotics11101404.
  8. Brazilian Committee on Antimicrobial Susceptibility Testing. Tabelas de pontos de corte para interpretação de CIMs e diâmetros de halos [Internet]. Rio de Janeiro: Brazilian Committee on Antimicrobial Susceptibility Testing; 2024 Apr 13 [citado 2024 02 01 Disponível em: https://brcast.org.br/wp-content/uploads/2022/09/Tabela-pontos-de-corte-BrCAST-13-04-2024.pdf.
  9. The European Committee on Antimicrobial Susceptibility Testing.Quality control criteria for the implementation of the RAST method. Version 5.0, 2022 Apr 12 [citado 2024 02 01. Disponível em: https://www.eucast.org/fileadmin/src/media/PDFs/EUCAST_files/RAST/2022/EUCAST_RAST_QC_v_5.0_final.pdf.
  10. Strubbe G, Messiaen A, Vandendriessche S, Verhasselt B, Boelens J. EUCAST rapid antimicrobial susceptibility testing (RAST) compared to conventional susceptibility testing: implementation and potential added value in a tertiary hospital in Belgium. Acta Clin Belg. 2023;78(5):385-391. doi: 10.1080/17843286.2023.2197314.

 

Correspondência

Valéria Martins Soares

E-mail: [email protected]