Avaliação da performance do equipamento Sysmex XN em amostras liberadas sem revisão microscópica

Evaluation of Sysmex XN equipment performance on samples released without microscopic review

 

Iuri Vicente Camargos Morkis1, Gabriel Giron Correa1, Fabiana Rodrigues Orso1, Fabiane Kreutz de Oliveira Lemos1, Suzane Dal Bo1, Maria Carla Dania Barbosa1, Mariane Felisberto1, Claudia Rosa Cagliari1, Alexandre Costa Guimarães2, Liz Marina Bueno dos Passos Brum1, Silvio Tasca1, Luciana Scotti1, Carine Ghem2

 

1  Farmacêutico(a)-Bioquímico(a). Serviço de Diagnóstico Laboratorial, Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Porto Alegre, RS, Brasil.

2  Biomédico(a). Serviço de Diagnóstico Laboratorial, Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Porto Alegre, RS, Brasil.

 

Recebido em 08/06/2021

Aprovado em 10/03/2022

DOI: 10.21877/2448-3877.202202152

 

INTRODUÇÃO

 

A contagem de células sanguíneas e a contagem diferencial dos leucócitos são utilizadas para detectar anormalidades hematológicas e monitorar os pacientes em diversas condições clínicas. É um exame de urgência que deve ser rapidamente liberado para a equipe assistencial, mas que pode necessitar de avaliação microscópica quando há suspeita de alterações qualitativas ou quantitativas.(1) Este equilíbrio deve ser mantido pelo laboratório clínico, ao minimizar tanto os casos de falso negativos quanto revisões manuais desnecessárias.(2,3)

A partir da automação em hematologia foi possível aumentar a produtividade laboratorial juntamente com a precisão dos resultados. Tecnologias como citometria de fluxo fluorescente melhoraram a distinção entre os tipos de leucócitos, o que diminuiu ainda mais a necessidade de revisão microscópica de amostras.(4,5) A avaliação manual passou a ser indicada apenas em casos de contagens de células sanguíneas alteradas ou alarmes gerados pelo equipamento, que sinalizam possíveis alterações morfológicas dos tipos celulares.(6)

As orientações para critérios de revisão microscópica propostas pela International Society for Laboratory Hematology (ISLH) em 2004 foram avaliadas em diferentes contextos e as considerações divergiram, pois as taxas de falsos negativos e falsos positivos mostraram-se diferentes do esperado.(3,7,8) Considera-se não aceitável uma taxa de falso negativo acima de 5%, pois amostras alteradas não seriam devidamente avaliadas e levariam a interpretações clínicas incorretas.(3,7) Por outro lado, os critérios de revisão devem considerar também a produtividade laboratorial e o tempo de liberação dos resultados.

O analisador hematológico Sysmex XN (Sysmex, Kobe, Japan) é designado para melhorar a especificidade dos alarmes a partir de algoritmos que indicam a possibilidade de alterações na amostra analisada, além de maior sensibilidade em amostras pancitopênicas.(3,9) A performance do analisador hematológico deve ser avaliada juntamente com os critérios de revisão manual de lâminas para a avaliação de falsos negativos, a fim de verificar quais tipos celulares estão mais sujeitos a erros na liberação dos resultados. O objetivo do presente trabalho foi avaliar o percentual de falsos negativos em hemogramas liberados sem revisão microscópica.

 

MATERIAIS E MÉTODOS

 

Foi realizado um estudo transversal prospectivo no período de 2017 a 2019 na unidade de Bioquímica Clínica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Foram selecionadas 803 amostras processadas em três analisadores hematológicos Sysmex XN (Sysmex, Kobe, Japan), que não possuíam alarmes e estavam dentro dos critérios de liberação automática estabelecidos pelo laboratório (Tabela 1), ou seja, o hemograma foi liberado sem a revisão microscópica da lâmina. Para estes hemogramas foi confeccionado o esfregaço sanguíneo no equipamento Sysmex SP-10 e realizada a revisão microscópica por um profissional, no caso de discrepância nos resultados; um segundo profissional realizou a revisão microscópica para confirmação dos achados.

Os dados foram analisados utilizando o software SPSS 20.0 (Statistical Package for Social Sciences – Professional Statistics™). As variáveis numéricas estão descritas sob a forma de medianas e as variáveis categóricas estão descritas sob a forma de proporções. Os três analisadores hematológicos utilizados na rotina foram comparados utilizando o teste de Kruskal-Wallis; o teste do Qui-Quadrado foi utilizado para avaliar os falsos negativos entre os analisadores. Para todas as análises foi considerado um nível de significância de 5% (p≤0,05). O presente estudo obteve aprovação do CEP (2017-0045).

Tabela 1

Critérios numéricos utilizados para liberação sem revisão microscópica

Parâmetro Valor Absoluto #
Leucócitos Totais 2.000 – 30.000
Hemoglobina >7,0
VCM >70 e <110
CHCM 30,5 – 37,5
Plaquetas 100.000 – 1.000.000
VPM ≤13,4
RDW < 19,0
Neutrófilos 1.000 – 20.000
Monócitos ≤ 3.000
Basófilos ≤ 500
Linfócitos ≤ 5.000

Legenda: VCM: volume corpuscular médio; CHCM: concentração de hemoglobina corpuscular média; VPM: volume plaquetário médio; RDW: amplitude de distribuição dos glóbulos vermelhos.

 

 

RESULTADOS

 

Foram avaliadas 803 amostras, das quais 62 (7,7%) apresentaram resultados falsos negativos por apresentarem alguma alteração na série vermelha, branca ou plaquetária. Observou-se maior número de falsos negativos nos pacientes internados (Tabela 2).

Quando os falsos negativos são avaliados de forma isolada quanto a sua alteração, podemos verificar que a maior parte dos achados de falsos negativos se refere à série vermelha (4,1%), sendo em sua maioria do achado de policromatofilia. Para a série leucocitária observamos um percentual de falso negativo de 2,1%, com predomínio do achado de presença de mielócitos no esfregaço sanguíneo. A série plaquetária correspondeu a 1,36% dos falsos negativos, com predomínio do achado de macroplaquetas (Tabela 3).

Não foram observadas diferenças significativas entre leucócitos totais, hemoglobina e porcentagem de neutrófilos segmentados e o número de falsos negativos entre os três analisadores, como pode ser observado na Tabela 4.

Na Tabela 5 foi avaliado cada analisador e as suas ocorrências de falso negativo, e apesar de não haver diferença significativa entre os analisadores quanto aos falsos negativos, podemos observar um pior desempenho do analisador 2 na série branca, o que pode ser melhorado com um ajuste dos alarmes do equipamento em questão.

 

Tabela 2

Proporção de falsos negativos na amostra estudada.

Alterações de série branca, vermelha e plaquetária n=803
Verdadeiro Negativo Falso Negativo
n (%) 741 (92,3%) 62 (7,7%)
n (%) internados/ambulatório 392 (53%)/ 349(47%) 48 (77%)/14 (23%)

Tabela 3

Proporção de falsos negativos e achados na série vermelha, leucocitária e plaquetária.

Verdadeiro Negativo Falso Negativo
Série Vermelha
n (%) 770 (95,59%) 33 (4,1%)
Policromatofilia 23 (69,69%)
Pecilocitose 7 (21,21%)
Hemácias fragmentadas 2 (6,06%)
Hemácias em alvo 6 (18,18%)
Drepanócitos 1 (3,03%)
Roleaux 2 (6,06%)
Série Leucocitária
n (%) 786 (97,8%) 17 (2,1%)
Neutrófilo bastonado 4 (23,525%)
Mielócito 9 (52,94%)
Plasmócito 1 (5,88%)
Eosinófilo de 7% 1 (5,88%)
Linfócito com atipia nuclear 1 (5,88%)
Neutrófilo hipersegmentado 1 (5,88%)
Série Plaquetária
n (%) 792 (98,64%) 11 (1,36%)
Macroplaquetas 9 (81,81%)
Agregação plaquetária 2 (18,18%)

Tabela 4

Avaliação dos falsos negativos entre os analisadores hematológicos.

Analisador 1

n=267

Analisador 2

n=265

Analisador 3

n=271

P
Leucócitos Totais 7,1 (5,6-10.8) 7,8 (5,9-11,5) 7,7(6,1-11,8) *0,074
Hemoglobina 12,6(11,1-13,8) 12,1(10,7-13,3) 12,7(10,7-13,7) *0,146
Neutrófilo Segmentado (%) 62,3(54-71) 64,8(55-74,8) 62,9 (55-73,5) *0,137
Falso Negativo n (%) 19 (7,1%) 25 (9,4%) 19 (7,0%) **0,501

Legenda: *Kruskal-Wallis, **Qui-quadrado

Tabela 5

Alterações encontradas nas séries vermelha, branca e plaquetária e o número de falsos negativos correspondentes por equipamento avaliado.

Série Vermelha Série Branca Série Plaquetária
Analisador 1
n=20 n= 1 n=3
Policromatofilia

Pecilocitose

Fragmentação

Plasmócito Agregação
Analisador 2
n=8 n=13 n=6
Policromatofilia

Eritrócitos em alvo

Pecilocitose

Drepanócitos

Fragmentação

Bastões >10%

1% de mielócito

7% de eosinófilo

Linfócito com atipia nuclear

Neutrófilo hipersegmentado

Macroplaquetas

Agregação

Analisador 3
n=9 n=3 n=3
Policromatofilia

Eritrócitos em alvo

Roleaux

Bastões > 10%

1% de Mielócito

Macroplaquetas

 

DISCUSSÃO

 

A análise do esfregaço sanguíneo ainda se faz necessária para avaliar os achados que os algoritmos dos analisadores hematológicos não conseguem identificar, bem como para confirmar a morfologia celular quando anormalidades são detectadas, porém existe um grande interesse em reduzir o número de revisões dos esfregaços sanguíneos, sem comprometer a qualidade dos laudos liberados. A taxa de revisão manual de lâminas afeta os custos do laboratório, a produtividade e o tempo de liberação dos laudos, e nesse contexto a detecção da taxa de falsos negativos é importante para avaliar a eficiência e segurança dos laudos liberados.(6)

Nossos dados demonstraram um total de falsos negativos de 7,7%, devido a achados na série vermelha, branca e/ou plaquetária, valor acima do recomendado por Barnes et al.,(6) que indica que o percentual de falsos negativos deve ser menor do que 5%. Uma taxa de falso negativo de 3% foi encontrada por Cui et al.(10) e de 1,79% por Wang et al.,(11) porém essas taxas de falso negativo foram obtidas utilizando critérios de liberação e equipamentos diferentes dos utilizados em nosso estudo. Quando nossos resultados de falsos negativos são avaliados separadamente quanto às alterações encontradas, nosso estudo consegue atender a recomendação do percentual de falsos negativos inferior a 5% proposto por Barnes et al.(6) Podemos verificar que a maioria dos achados de falsos negativos são referentes a série vermelha (4,1%), sendo em sua maioria o achado de policromatofilia. Uma revisão dos nossos critérios de liberação sem revisão microscópica da série vermelha poderia melhorar essa taxa de falsos negativos.

Na série leucocitária observamos um percentual de falso negativo de 2,1%, com predomínio do achado de presença de mielócitos no esfregaço sanguíneo. A série plaquetária apresentou 1,36% de falsos negativos, com predomínio do achado de macroplaquetas, estando de acordo com o recomendado por Barnes et al.,(6) que indica que o percentual de falsos negativos deve ser inferior a 5%.

As limitações presentes neste estudo foram: não ser um estudo blindado, pois os profissionais tinham acesso aos dados dos analisadores, a revisão do esfregaço foi realizada somente por um profissional, no entanto todos os profissionais participantes têm extensa experiência em revisões de esfregaço sanguíneo, o que nos garante resultados consistentes.

 

CONCLUSÃO

 

O presente estudo avaliou o desempenho de três analisadores hematológicos utilizados na rotina laboratorial buscando encontrar alguma discrepância entre eles quanto ao número de falsos negativos, o que poderia sugerir um possível ajuste em cada equipamento. Esses analisadores foram comparados frente ao número de leucócitos totais, hemoglobina e percentual de neutrófilos segmentados, não havendo diferença significativa entre eles para as dosagens e contagem e também quanto ao número de falsos negativos. Nosso percentual de falsos negativos encontra-se de acordo com demais estudos publicados, quando as alterações de série branca, vermelha e plaquetária são avaliadas de forma isolada, demonstrando desta forma o bom desempenho dos três analisadores hematológicos.


REFERÊNCIAS

 

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  2. Novis DA, Walsh M, Wilkinson D, St Louis M, Ben-Ezra J. Laboratory productivity and the rate of manual peripheral blood smear review: a College of American Pathologists Q-Probes study of 95,141 complete blood count determinations performed in 263 institutions. Arch Pathol Lab Med. 2006;130(5):596-601.
  3. Comar SR, Malvezzi M, Pasquini R. Evaluation of criteria of manual blood smear review following automated complete blood counts in a large university hospital. Rev Bras Hematol Hemoter. 2017;39(4):306-17.
  4. Arneth BM, Menschikowki M. Technology and new fluorescence flow cytometry parameters in hematological analyzers. J Clin Lab Anal. 2015;29(3):175-83.
  5. Kweon OJ, Lee MK, Kim HR. Evaluation of the Flagging Performance of the Hematology Analyzer Sysmex XN Series on the Basis of “Q Values”. Arch Pathol Lab Med. 2018;142(1):83-8.
  6. Barnes PW, McFadden SL, Machin SJ, Simson E, hematology icgf. The international consensus group for hematology review: suggested criteria for action following automated CBC and WBC differential analysis. Lab Hematol. 2005;11(2):83-90.
  7. Pipitone S, Germagnoli L, Da Rin G, Di Fabio A, Fanelli A, Fiorini F, et al. Comparing the performance of three panels rules of blood smear review criteria on an Italian multicenter evaluation. Int J Lab Hematol. 2017;39(6):645-52.
  8. Gulati G, Song J, Florea AD, Gong J. Purpose and criteria for blood smear scan, blood smear examination, and blood smear review. Ann Lab Med. 2013;33(1):1-7.
  9. Furundarena JR, Sainz M, Uranga A, Cuevas L, Lopez I, Zubicaray J, et al. Comparison of abnormal cell flagging of the hematology analyzers Sysmex XN and Sysmex XE-5000 in oncohematologic patients. Int J Lab Hematol. 2017;39(1):58-67.
  10. Cui W, Wu W, Wang X, Wang G, Hao YY, Chen Y, et al. Development of the personalized criteria for microscopic review following four different series of hematology analyzer in a Chinese large scale hospital. Chin Med J (Engl). 2010;123(22):3231-7.
  11. Wang X, Ge P, Zhao X, Chen C, Hu S, Ren L. Establishment of improved review criteria for hematology analyzers in cancer hospitals. J Clin Lab Anal. 2021;35(2):e23638.

 

 

 

Correspondência

Carine Ghem

E-mail:  [email protected]