Avaliação da relação entre cortisol e perfil lipídico através da Análise de prontuários laboratoriais
Evaluation of the relationship between cortisol and lipid profile through the analysis of laboratory records
Andressa Leite Moraes1, Karina Schreiner Kirsten1
1 Faculdade Especializada na Área da Saúde do Rio Grande do Sul, Curso de Biomedicina – Passo Fundo, RS, Brasil.
Recebido em 11/01/2022
Aprovado em 13/04/2022
DOI: 10.21877/2448-3877.202200010
INTRODUÇÃO
O corpo humano apresenta relações sistêmicas e trabalha de maneira homeostática a fim de manter as funções do organismo estáveis.(1) No entanto, fatores do cotidiano, denominados estressores, provocam a ativação do eixo hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA), alterando o equilíbrio do corpo. A resposta do eixo HPA é iniciada nos neurônios do núcleo paraventricular (PVN) do hipotálamo mediante a liberação do hormônio liberador de corticotrofina (CRH).(2) Em sequência, o CRH age na hipófise anterior, promovendo a liberação de hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) na circulação sanguínea, que estimula a síntese de cortisol pelo córtex da glândula adrenal.(3)
O cortisol, o hormônio do estresse, é um corticosteroide que possui diversos efeitos sobre o organismo, como alterações no metabolismo de colesterol e glicose, balanço de fluidos, além de atuar na resposta imune, com seus efeitos preponderantemente anti-inflamatórios.(1) Em longo prazo, níveis elevados de cortisol estão associados a distúrbios metabólicos agrupados à síndrome metabólica, como resistência à insulina, dislipidemia, hipertensão e ganho de peso.(4)
A dislipidemia consta da alteração nos níveis séricos dos lipídios e é um distúrbio comum na população. Estudos observacionais de base populacional conduzidos no Brasil revelam prevalências de dislipidemia de 43% a 60%.(5) Sabe-se que as dislipidemias favorecem o desenvolvimento de aterosclerose, marcada pela obstrução das artérias e está associada a diversas doenças cardiovasculares, dentre elas a doença arterial coronariana (DAC) e o infarto agudo do miocárdio (IAM).(6)
Segundo a última atualização das Diretrizes Brasileiras de Dislipidemias, considera-se desejável o valor de colesterol total inferior a 190mg/dL e o HDL superior a 40mg/dL com ou sem jejum e, para triglicerídeos, recomenda-se valor inferior a 150mg/dL com jejum ou inferior a 175mg/dL sem jejum. Já para o colesterol LDL e colesterol não-HDL, os valores são divididos por categoria de risco.(7)
O estresse e as alterações no perfil lipídico estão profundamente correlacionados. Em decorrência do aumento dos níveis de cortisol, a grande maioria das pessoas tende a ingerir mais alimentos. Além de aumentar o apetite, a preferência é por “alimentos de conforto”, que são densos em energia, por serem ricos em gordura e açúcar.(4) Sugere-se que perante altos níveis de estresse crônico, a ingestão de comida de conforto provoca o acúmulo de gordura abdominal.(8)
Além disso, a ingestão de “alimentos de conforto” implica reações fisiológicas importantes para o controle da função e atividade do eixo HPA durante o estresse. Os glicocorticoides provocam a reação de feedback negativo no hipotálamo e na hipófise anterior durante uma resposta aguda ao estresse, reduzindo os níveis de CRH e ACTH e, consequentemente, bloqueando a síntese de cortisol. Todavia, se o estressor é de alta intensidade e prevalece por longo período de tempo, caracterizando um estresse crônico, a eficácia do glicocorticoide no feedback negativo é menor, causando um aumento crônico dos níveis séricos de cortisol.(2)
A avaliação dos níveis de cortisol pode ser feita através de uma amostra de sangue, urina ou saliva, além do cabelo, que tem sido uma técnica adequada para avaliar concentrações de cortisol em longo prazo.(9) A análise do cortisol capilar supera os limites da variação do cortisol no decorrer do dia e do estresse agudo e favorece estudos sobre o estresse e a obesidade.(10) Porém, o cortisol sanguíneo ainda é o mais utilizado em razão do custo-benefício e facilidade de técnicas de análise. Devido ao ciclo circadiano a dosagem do cortisol basal sanguíneo é realizada pela manhã, com maiores concentrações das 7 às 9 horas, e apresenta concentrações variáveis, sendo considerados os valores basais de cortisol normal valores inferiores a 20µg/dL.(11)
Conforme o apresentado até aqui, fica clara a correlação fisiológica existente entre os níveis séricos de cortisol e o perfil lipídico, especialmente o colesterol. Então, com este estudo buscamos avaliar, a partir de resultados de exames laboratoriais, a relação entre estes parâmetros em uma população.
MATERIAIS E MÉTODOS
População de estudo
Foram selecionados prontuários de 32 indivíduos, com idade média de 35,9 ±13,6 anos, sendo 23 do sexo feminino e 9 do sexo masculino, que realizaram exames de cortisol e perfil lipídico entre 2018 e 2020. Foram incluídos pacientes que realizaram a punção venosa entre as 7 e 9 horas da manhã, e excluídos pacientes com prontuários incompletos e que não realizaram todos os exames ou que realizaram a punção venosa após as 9 horas da manhã.
Delineamento de estudo
O estudo foi realizado a partir da análise de prontuários de um laboratório de análises clínicas do município de Passo Fundo, RS. Foram coletadas as seguintes informações: sexo, idade e resultados dos exames de cortisol, colesterol total e suas frações HDL, LDL e triglicerídeos. Os dados foram tabelados para posterior análise estatística.
Análise estatística
Os dados foram analisados utilizando o software estatístico GraphPadPrism 7, através do teste t de Student para dados paramétricos e teste de Mann-Whitney para dados não paramétricos.
Primeiramente compararam-se os níveis séricos de cortisol entre homens e mulheres. Em seguida, a população foi dividida em dois grupos: indivíduos com cortisol normal (<20µg/dL) e indivíduos com cortisol aumentado (>20µg/dL), e foi feita então a comparação da idade dos participantes, bem como dos níveis de colesterol total, HDL, LDL e triglicerídeos entre os dois grupos.
Em todas as análises, p<0,05 foi considerado significativo.
ÉTICA
O estudo foi conduzido de acordo com as diretrizes normativas do Conselho Nacional de Saúde [CNS] e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa [CONEP]. Além disso, os procedimentos seguidos estão de acordo com os princípios éticos aceitos pela normativa nacional (Resolução CNS 466/2012) e normativa internacional (Declaração de Helsinque / Associação Médica Mundial).
A coleta de dados de prontuários foi feita após a aprovação do local de estudo e da aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade Especializada na Área da Saúde do Rio Grande do Sul – FASURGS, sob o número 4.409.933.
RESULTADOS
Primeiramente foram comparados os níveis de cortisol entre homens e mulheres, sem diferença estatística (Homens: 15,1µg/dL ± 2,4µg/dL; Mulheres: 19,5µg/dL ± 2,4µg/dL, p=0,3).
Para a análise dos demais resultados, a população do estudo foi dividida, quanto aos níveis de cortisol, em cortisol normal, que constou de 16 indivíduos com níveis de cortisol inferiores a 20µg/dl, e em cortisol alterado, com 16 indivíduos com níveis de cortisol superiores a 20µg/dl.
A idade dos pacientes não variou conforme os níveis de cortisol (cortisol normal: 37,3 ± 2,5 anos, cortisol alterado: 34,4 ± 4,1 anos, p=0,55).
Os valores médios dos parâmetros analisados estavam dentro dos valores de referência nos dois grupos avaliados, exceto para o colesterol total, que no grupo de indivíduos com cortisol aumentado apresentou-se levemente aumentado (192 ± 7,5mg/dL), enquanto nos indivíduos com cortisol normal este valor estava dentro dos limites de referência. Os resultados da análise dos níveis de colesterol total, LDL, HDL e triglicerídeos encontram-se na Figura 1.
Ressalta-se que, de modo geral, a média dos níveis séricos de todos os parâmetros analisados foi maior em indivíduos com cortisol elevado (triglicerídeos p=0,1; LDL p=0,25), porém foi encontrada diferença estatística apenas nos parâmetros colesterol total (p=0,03) e HDL (p=0,03).
Figura 1
Análise dos parâmetros laboratoriais: Comparação dos níveis séricos de colesterol total, HDL, LDL e triglicerídeos em indivíduos com cortisol normal (azul) versus cortisol aumentado (vermelho). Os dados estão representados por média ± desvio padrão e foram analisados por teste t de Student. Diferenças significativas estão indicadas por um asterisco (p* <0,05).
DISCUSSÃO
Observa-se nesta pesquisa que os níveis de colesterol total e HDL são significativamente maiores em indivíduos com cortisol aumentado, enquanto os níveis de colesterol LDL e triglicerídeos não apresentaram diferenças significativas conforme o nível de cortisol dos indivíduos.
O cortisol é um hormônio esteroide produzido pelo córtex adrenal e sua síntese é controlada pelo eixo hipotálamo-pituitária-adrenal. O estímulo inicial ocorre no hipotálamo e consta do impulso fisiológico do ciclo circadiano ou de agentes estressores, trauma ou hipoglicemia.(12)
As relações entre o precursor, colesterol, e o seu produto cortisol são entendidas através das vias da esteroidogênese. Esse processo envolve a bioquímica de enzimas, cofatores e genes que os codificam. Primeiro ocorre a conversão do colesterol em pregnenolona pela enzima P450scc (CYP11A1), na mitocôndria, porém essa etapa envolve mecanismos regulatórios, e após acontecerem hidroxilações, a pregnenolona é convertida no glicocorticoide cortisol.(13)
Desta maneira, uma vez que o colesterol é precursor fundamental para a síntese de cortisol, explica-se por que o aumento dos níveis séricos de cortisol pode se correlacionar com o aumento do colesterol total. Estudos anteriores demonstram esta correlação, como o de Catalina-Romero e colaboradores,(14) em que o estresse foi positivamente correlacionado a distúrbios lipídicos, entre eles destaca-se o aumento do colesterol total, resultado muito semelhante ao encontrado neste estudo.
Em relação ao perfil lipídico da população estudada, os níveis de triglicerídeos, HDL e LDL estavam dentro dos valores considerados ideais para a população.(7) Já os níveis de colesterol total estavam dentro dos valores de referência em indivíduos com o cortisol normal e levemente aumentados em indivíduos com cortisol elevado.
Avaliando as frações do colesterol total, foi encontrado aumento dos níveis de HDL em indivíduos com cortisol aumentado. O HDL é popularmente conhecido como colesterol bom, pois realiza o transporte reverso de colesterol, evitando o acúmulo de colesterol na camada íntima das artérias. Por outro lado, os níveis de LDL não apresentaram aumento significativo. Esse achado confronta alguns estudos anteriores, os quais tiveram um aumento significativo de colesterol LDL e valores reduzidos de HDL.(15)
Tanto as lipoproteínas de baixa densidade quanto as de alta densidade estão envolvidas no processo de síntese de cortisol e, sendo assim, o colesterol HDL desempenha um papel importante no fornecimento de colesterol para a esteroidogênese,(16) fato que explicaria o aumento dos níveis de HDL evidenciados neste estudo.
Os triglicerídeos não participam diretamente da síntese de cortisol. Todavia, como durante o estresse, o organismo necessita de mais energia, ocorre o aumento da hidrólise dos triglicerídeos, mediante a ação da lipase, aumentando a produção de adenosina trifosfato (ATP).(17) Além disso, o estresse ocasiona o aumento da ingestão de “alimentos de conforto”, que são ricos em lipídios e glicose.(4) Estudos anteriores identificaram o aumento dos níveis de triglicerídeos em indivíduos com o cortisol aumentado,(18) porém neste estudo, embora os níveis de triglicerídeos estivessem maiores em indivíduos com altos níveis de cortisol, este resultado não apresentou diferença estatística (p=0,1).
Em relação aos indivíduos participantes da pesquisa, foi notável que a grande maioria deles é do sexo feminino, não sendo possível avaliar a relação concreta entre os níveis lipídicos e de cortisol no quesito referente ao sexo. Observa-se que a procura por cuidados à saúde e a realização de exames é maior no público feminino.(19)
Uma limitação deste estudo é que foi avaliada a concentração sérica de cortisol, um marcador que reflete inadequadamente os níveis de cortisol em longo prazo e seus efeitos a nível celular, devido ao ritmo circadiano, secreção pulsátil e as mudanças de estresse diárias.(4) Uma alternativa de método plausível é a mensuração do cortisol capilar, em que é possível avaliar os níveis de cortisol a longo prazo em uma única dosagem.(20) Estudo anterior já demonstrou isso, encontrando significância positiva ao avaliar as concentrações de cortisol no cabelo relacionadas à elevação da adiposidade em indivíduos adultos expostos por um longo período a níveis elevados de cortisol.(9) Porém, como em nossa região o método de mensuração de cortisol capilar ainda não é amplamente utilizado, o que implicaria uma redução significativa da população do estudo, optamos pela avaliação do cortisol sérico neste estudo.
Outra limitação é que este estudo foi realizado a partir da análise de prontuários, e portanto não é possível saber a que tipo de estresse os indivíduos com cortisol aumentado estão expostos. O estresse pode ser agudo, de curto prazo ou de baixa intensidade, ou crônico, de longo prazo ou alta intensidade, e os efeitos metabólicos do estresse agudo e crônico diferem muito, sendo que o estresse crônico é o responsável por causar alterações metabólicas.(21)
A avaliação do cortisol juntamente com o perfil lipídico tem grande importância na prática clínica no diagnóstico e avaliação de risco de diversas patologias. Conforme o estudo demonstrou, ocorre o aumento dos níveis de colesterol total em indivíduos com o cortisol elevado. Todavia, o aumento significativo das frações de colesterol, nesse estudo, foi do HDL.
Faz-se necessário, assim, importantes novos estudos com maior número de indivíduos e que sejam relativamente proporcionais quanto ao sexo, já que nesse estudo houve predomínio de indivíduos do sexo feminino.
CONCLUSÕES
No presente estudo, evidenciou-se a relação entre os níveis aumentados de cortisol e de perfil lipídico, especialmente o colesterol. Assim, reforçamos a importância da mensuração rotineira destes parâmetros, visto que o excesso de cortisol contribui para a ocorrência de dislipidemias.
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Correspondência
Karina Schreiner Kirsten
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