Alterações hematológicas na dengue grave – uma revisão sistemática

Hematological changes in serious dengue – a systematic review

 

Moyra Machado Portilho1, Nerêda Vitoria Santos Cazaes Lima2, Paula Silva Menezes Caires2

 

1  Doutorado em Medicina Tropical/Laboratório de Patologia e Biologia Molecular (LPBM), Centro de Pesquisas Gonçalo Moniz/FIOCRUZ-BA. Salvador, BA, Brasil.

2  Especialista em Análises Clínicas e Gestão Laboratorial/ Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Salvador, BA, Brasil.

 

Recebido em 24/02/2021

Aprovado em 27/09/2021

DOI: 10.21877/2448-3877.202102116

 

Introdução

 

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), a dengue causa impactos em pelo menos 128 países, com quase 400 milhões de novos casos registrados a cada ano, sendo considerada um problema de saúde pública em todo o mundo, especialmente nos países tropicais. No Brasil, o crescimento global da população, a urbanização e as condições socioambientais contribuíram para a proliferação do vetor e uma consequente disseminação desordenada da doença.(1-3)

A dengue é uma doença sistêmica, infectocontagiosa, classificada como arbovirose e tem como principal vetor o mosquito Aedes Aegypti. Atualmente existem quatro sorotipos virais: DENV-1, DENV-2, DENV-3 e DENV-4. Com base nos sinais e sintomas apresentados pelo paciente, a dengue pode ser classificada de três formas: dengue, dengue com sinais de alarme e dengue grave. Dentre as manifestações clínicas, podemos citar como principais a febre aguda, cefaleia frontal, dor retro-ocular, dor muscular e dor nas articulações.(4-6)

Alterações hemorrágicas como hemoconcentração, leucopenia e plaquetopenia direcionam intervenções terapêuticas e estão relacionadas com a gravidade da doença, fazendo com que parâmetros hematológicos atuem de forma importante no diagnóstico, na evolução e no tratamento da dengue.(7)

A gravidade da doença, seu forte caráter reemergente e a ausência de um tratamento específico apontam a necessidade de estudos voltados para a compreensão do seu comportamento clínico, visto que a fisiopatologia da doença ainda não está completamente esclarecida e a evolução dos estudos são fundamentais para estabelecer uma base consistente para que sejam criadas medidas eficazes na progressão da cura.(8,9).

O objetivo do presente estudo consiste em reunir, sintetizar e avaliar os resultados de estudos primários, buscando enfatizar características hematológicas nos casos de dengue grave para a construção de um artigo de revisão literária.

 

Metodologia

 

Estratégia de busca

Usando os guias PRISMA,(10) foram utilizadas as bases de dados LILACS (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde), PubMed e Periódicos CAPES para identificar artigos relacionados a essa revisão publicados no período de janeiro de 2014 a de janeiro de 2021. A metodologia empregada foi a revisão sistemática em estudos primários, utilizando métodos previamente estabelecidos para identificar e avaliar criticamente pesquisas consideradas relevantes.

Como critério de inclusão, foram avaliados estudos publicados no período de 01 janeiro de 2014 a 01 janeiro de 2021, através da opção de busca avançada das plataformas utilizadas. Para que fossem incluídos, os trabalhos deveriam abordar sobre a dengue em sua forma grave e conter dados sobre alterações hematológicas. Os descritores utilizados foram “Severe dengue” e “hematological”, sendo o primeiro procurado no título dos estudos e o segundo descrito na opção Outros; a busca foi processada da mesma forma em todas as plataformas. A pesquisa foi realizada em língua inglesa e o período da busca foi entre 01 de novembro de 2020 e 01 de janeiro de 2021.

Foram excluídos trabalhos de revisões literárias, manuscritos com texto completo indisponível e artigos que não traziam informações relacionadas a alterações hematológicas. A busca foi feita por dois revisores, os quais examinaram a elegibilidade de cada manuscrito independentemente.

 

Obtenção dos dados

Os artigos elegíveis tiveram suas informações detalhadas no questionário PRISMA. No total, foram encontrados 39 artigos; e destes, 24 foram excluídos por não preencherem os critérios de elegibilidade. Foram adotados 15 artigos para a composição deste estudo de revisão (Figura 1).

 

Síntese dos dados e análises

Após a análise dos artigos, os dados foram organizados em tabela por ordem cronológica da data de publicação, contendo informações referentes aos dados dos artigos como população do estudo, autor, ano de publicação, descrição das alterações hematológicas. Posteriormente, os dados encontrados foram discutidos resumidamente.

 

Resultados

 

Foram realizadas buscas na literatura de artigos relacionados ao tema nas plataformas CAPES, LILACS e PubMed publicados entre 01 janeiro de 2014 e 01 janeiro de 2021. Um total de 39 estudos foram identificados, no entanto 15 artigos com uma ampla gama de objetivos atenderam aos critérios de elegibilidade e foram incluídos na análise, os quais são estudos observacionais.

Após avaliação dos estudos, os principais dados foram incluídos na Tabela 1 e posteriormente foi criada uma segunda tabela com as alterações hematológicas encontradas e suas respectivas frequências (Tabela 2). Entre as alterações hematológicas encontradas em casos de dengue grave, as principais evidenciadas foram: diminuição da contagem de plaquetas, variação dos índices de hematócrito, aumento do tempo de protrombina e tempo de tromboplastina parcial ativada e leucopenia.

 

 Figura1

Figura 1

Diagrama do fluxo de seleção dos artigos elegíveis para o estudo segundo o modelo PRISMA 2009.

 

Tabela 1

Sumário dos estudos que preencheram todos os critérios de elegibilidade pré-definidos e principais alterações hematológicas descritas em casos de dengue grave.

População de estudo Autores País Ano Alterações encontradas
Crianças com dengue grave Kamolwish Laoprasopwattana, Wanwipa Chaimongkol et al. Tailândia 2014 Tempo de tromboplastina parcial aumentado, hematócrito baixo e tempo de protrombina aumentado.
Pacientes com diagnóstico confirmado de dengue Ahmad, Mohd Hanief Ibrahim et al. Malásia 2014 Trombocitopenia, aumento de hematócrito.
Indivíduos com idade entre 5 e 15 anos Edelwisa Segubre-Mercado, Fe Esperanza Espino et al. Filipinas 2015 Trombocitopenia e aumento do hematócrito.
Pacientes adultos com sintomas de dengue Yung, Chee Fu Lee et al. Singapura 2015 Trombocitopenia.
Pacientes com dengue grave na UTI. Chin-Ming Chen, Khee-Siang Chan et al. Taiwan 2016 Tempo de tromboplastina parcial aumentado, hematócrito baixo e tempo de protrombina aumentado.
Homem, cursou com anemia hemolítica após resolução da dengue grave Mra Aye, Jason Cabot, Lee Wei Kiat William Malásia 2016 Hematócrito baixo, leucopenia, monocitose, Coombs indireto positivo e tempo de tromboplastina parcial aumentado.
Gestante com dengue grave Hori Hariyanto, Corry Quando Yahya et al. Indonésia 2016 Trombocitopenia, tempo de tromboplastina parcial aumentado, dímero D ligeiramente elevado
Homem com dengue grave, infectado por dois sorotipos de dengue concomitantemente Soroy Lardo, Yaldiera Utami et al. Indonésia 2016 Trombocitopenia, leucopenia
Pacientes adultos com dengue grave e prolongada Anil Kumar Hema S. Índia 2016 Trombocitopenia
Crianças com sintomas de dengue Minh Tuan Nguyen, Thi Nhan Ho et al. Vietnã 2018 Trombocitopenia
Pacientes adultos com suspeita clínica de dengue Ponsuge Chathurani Sigera, Ranmalee Amarasekara et al. Sri Lanka 2019 Leucopenia
Pacientes pediátricos com dengue de 5 a 12 anos Abhay PSRathore, Manouri Senanayake et al. EUA 2020 Trombocitopenia e aumento do hematócrito
Pacientes adolescentes e adultos com diagnóstico sorológico confirmado de dengue Tongluk Teerasarntipan, Roongruedee Chaiteerakij et al. Tailândia 2020 Trombocitopenia, alto grau de hemoconcentração, leucopenia e linfocitose atípica.
Paciente hemofílico com dengue grave Dilushi Wijayaratne, Priyanga Ranasinghe et al. Sri Lanka 2020 Manifestações hemorrágicas em hemofílicos com níveis de plaquetas elevados, comparados a pacientes não hemofílicos.
Pacientes internados com suspeita de dengue Goutam Patra, Bibhuti Saha e Sumi Mukhopadhyay Índia 2021 Trombocitopenia e aumento de hematócrito.

 

Tabela 2

Frequência das alterações hematológicas encontradas nos estudos avaliados.

Alterações Hematológicas Frequência (%)
Trombocitopenia 66,7
Leucopenia 26,6
Hematócrito aumentado 26,6
Tempo de tromboplastina parcial aumentado 26,6
Hematócrito baixo 20,0
Tempo de protrombina aumentado 13,3
Alto grau de hemoconcentração 6,6
Linfocitose atípica 6,6
Monocitose 6,6
Coombs indireto positivo 6,6
Dímero D ligeiramente elevado 6,6
Contagem normal de plaquetas com manifestações hemorrágicas 6,6

 

 

DISCUSSÃO

 

No presente estudo, foram revisados artigos publicados com informações referentes a alterações hematológicas encontradas no perfil grave da infecção causada pelo vírus da dengue, com a finalidade de catalogá-las em um trabalho secundário. A infecção da dengue grave usualmente tem como base fisiopatológica uma reação imune atípica que envolve imunocomplexos, citocinas e leucócitos cursando com aumento da permeabilidade e manifestações hemorrágicas associadas à trombocitopenia. (11)

A trombocitopenia concomitante ao aumento do hematócrito foi a alteração hematológica mais relatada nos trabalhos analisados nessa revisão. Esses achados podem ser relacionados ao processo fisiopatogênico da dengue grave, em que ocorre aumento da permeabilidade capilar e extravasamento de líquido para o ambiente extravascular. (12)

De acordo com Organização Mundial de Saúde, a redução das plaquetas é um achado freqüente em todas as apresentações da dengue, já a queda acentuada dos trombócitos combinada com a elevação dos valores de hematócritos são características da forma grave da doença. Na variação de contagem total dos glóbulos brancos, tanto a leucopenia quanto a leucocitose foram pontuadas, esta última se apresentando de forma moderada no início da infecção, e acompanhada de linfocitose com células atípicas. Tais achados também foram observados em estudo sobre alterações do hemograma no diagnóstico da dengue realizado por Oliveira et al. A leucopenia, assim como a queda das plaquetas, são observadas nos casos brandos como também nos mais críticos, no entanto na plaquetopenia valores abaixo de 50.000 acompanhados da prova do laço positiva já caracteriza indicador de infecção na sua forma grave. O aumento do hematócrito é observado basicamente na fase grave da doença como consequência do extravasamento de plasma. (13)

A diminuição das plaquetas na infecção da dengue pode estar associada à deficiência genética, ação de agentes infecciosos ou indução farmacológica; podendo ocasionar inibição da proliferação dos megacariócitos com consequente redução da produção ou destruição plaquetária. Dos artigos analisados, 66,7% mencionaram a redução da série plaquetária. Estudos associam esse achado com a supressão medular induzida pelo vírus da dengue, relacionando a plaquetopenia com reações cruzadas entre anticorpos, principalmente anti-NS1, e proteínas de superfície com a formação de imunocomplexos e ativação do sistema complemento ocasionando a destruição plaquetária.(14)

Juntamente às alterações leucocitárias anteriormente citadas, também foram relatados o aumento do tempo de protrombina e o prolongamento do tempo de tromboplastina parcial ativada no coagulograma. Os dados citados anteriormente apareceram em 40% dos artigos utilizados. Os resultados encontrados podem ser considerados esperados quando relacionados ao comportamento fisiopatológico da infeção. Essas alterações também foram observadas no estudo feito por Fantinatti, sobre alterações hematológicas e fisiológicas provocadas pela infecção do vírus da dengue. (15)

Outros achados foram observados de forma menos frequente, como: hemoconcentração devido ao extravasamento de líquidos, neutropenia, monocitose, Coombs indireto positivo, dímero D aumentado e contagem de plaquetas normais com manifestações hemorrágicas em pacientes hemofílicos. Esses registros, além de estarem associados à resposta imune do vírus, foram observados em populações com características específicas, como paciente hemofílico e indivíduo diagnosticado com doença autoimune e infecção pela dengue simultaneamente.

A infecção da dengue caracteriza-se por apresentar variabilidade na sua apresentação clínica. O sorotipo do vírus, o estado imunitário do paciente, a concomitância com outras doenças e uma infecção adquirida anteriormente são fatores de risco para casos graves. (16)

Os estudos trouxeram valiosas informações, em diferentes situações da dengue em sua forma grave. Aos analistas clínicos, a observação dessas alterações pode guiar suspeitas iniciais de infecção da dengue e evolução para forma grave aliadas aos achados clínicos indicativos.

Contudo, algumas limitações foram percebidas, como ausência de estudos contendo informações de distensões de lâminas sanguíneas. Também se observou um número limitado de estudos sobre a dengue grave de forma mais específica, uma vez que a maioria dos estudos encontrados nas buscas das bases literárias aborda sobre a dengue de forma mais generalista. A possível causa para o baixo número de estudos em sua forma mais ínsita, apesar dos grandes casos de infecções por dengue no mundo e no Brasil, deve-se ao fato de ser considerada uma das doenças tropicais negligenciadas em razão da gestão e do pouco investimento governamental, dificultando um manejo mais adequado e um diagnóstico mais acurado e precoce. (17)

Sendo assim, os casos descritos apresentam significativa relevância no estudo das alterações hematológicas na dengue grave, agregando informações de indivíduos com características distintas e sintetizando diferentes formas de apresentação do vírus em situações peculiares relacionadas a gestantes, hemofílicos, crianças, pacientes em unidade de terapia intensiva e pacientes infectados por dois sorotipos concomitantemente, algo que ocorre com mais frequência em regiões endêmicas. Considerando-se que no ano de 2020 o Brasil representou 65% dos casos de dengue nas Américas,(16) esse trabalho reúne dados que podem colaborar para melhor entendimento sobre o ritmo e manejo da doença em populações específicas.

Com a presente revisão literária, foi possível reunir dados apresentados em 15 publicações sobre as principais alterações hematológicas observadas em indivíduos que apresentam a forma grave da infecção causada pelo vírus da dengue. Sendo assim, podemos destacar a importância de se ter mais investimentos que possibilitem a implementação e/ou continuação de pesquisas existentes na área, de forma a facilitar o diagnóstico e manejo clínico do paciente com dengue grave.

 

REFERÊNCIAS

 

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Correspondência

Paula Silva Menezes Caires

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