O impacto da COVID-19 na malária

The impact of COVID-19 on malaria

 

Ricardo Luiz Dantas Machado1

1Professor Titular e Livre-Docente em Parasitologia Humana. Centro de Investigação de Microrganismos. Departamento de Microbiologia e Parasitologia – Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

Recebido em 10/03/2021
Aprovado em 29/04/2021
DOI: 10.21877/2448-3877.202100969

 

Prezado Editor,

 

A malária é considerada um importante problema de saúde pública com impactos na economia e na sociedade de países onde a doença é endêmica nas regiões tropicais e subtropicais do mundo. É uma doença infecciosa cuja transmissão ocorre durante a ingestão de sangue dos vetores no hospedeiro vertebrado, quando inoculam formas evolutivas do parasito que, pela via circulatória, invadem os hepatócitos e posteriormente as hemácias. A aquisição das formas infecciosas do vetor advém de indivíduos doentes ou portadores assintomáticos.(1)

O protozoário responsável pela malária é do gênero Plasmodium, pertencente ao filo Apicomplexa e à família Plasmodiidae. Atualmente, são conhecidas cerca de 170 espécies que causam a doença em diferentes hospedeiros vertebrados; destes, apenas cinco parasitam o homem: Plasmodium falciparum, Plasmodium vivax, Plasmodium malariae, Plasmodium ovale e Plasmodium knowlesi. No Brasil, não há registros da transmissão nativa de P. ovale (África e Ásia) ou de P. knowlesi (responsável por casos de zoonoses no Sudeste Asiático). O P. falciparum está associado às maiores taxas de mortalidade e virulência, especialmente na África Subsaariana, no entanto P. vivax é a espécie mais difundida geograficamente, particularmente no Sul e Sudeste Asiático, América Central e América do Sul, sendo responsável por mais de 40% de casos de malária em todo o mundo. O P. malariae teve uma prevalência maior no passado, embora possa ser subnotificada na Amazônia brasileira e colombiana.(2,3)

A gravidade e a evolução clínica na malária dependem da espécie do plasmódio infectante, intensidade da parasitemia, da idade, constituição genética, estado nutricional e sua imunidade específica à malária. A malária por P. falciparum é a que evolui com mais frequência para as formas graves, pois esta espécie pode determinar parasitemia elevada (> 2% de hemácias infectadas), pela capacidade de multiplicar-se em hemácias jovens, maduras e senescentes, por citoaderir ao endotélio vascular da microcirculação e formar rosetas (eritrócitos infectados aderem a eritrócitos não infectados) em áreas nobres, cérebro, pulmões e rins.(4,5) Estes eventos podem levar à malária cerebral, distúrbios respiratórios, anemia, hipoglicemia e raramente na criança à insuficiência renal, edema pulmonar e distúrbios da coagulação. Receptores expressos na superfície do endotélio vascular têm sua expressão aumentada por uma importante citocina pró-inflamatória, a TNF-α, determinando o sequestro de eritrócitos parasitados e formação de rosetas na microcirculação de órgãos vitais, culminando com a obstrução desses pequenos vasos, por exemplo, no cérebro –malária cerebral, evento muito frequente em crianças. Na malária cerebral, observa-se também concentrações aumentadas de angiopoietina 2 que alteram a permeabilidade da barreira hematoencefálica, levando ao extravasamento de proteínas plasmáticas, edema perivascular e injúria neuronal. Os eventos fisiopatológicos que culminam com a malária cerebral não estão associados somente com a obstrução do fluxo vascular na microcirculação, com a ausência de sequestro microvascular em todos os casos fatais e com a rápida resolução do coma e posterior recuperação na maioria dos pacientes, o que faz supor que liberação de citocinas induza a uma encefalopatia metabólica.

A ruptura cíclica de hemácias infectadas com liberação de parasitos, pigmento malárico (hemozoína) e glicosilfostatidilinositol (toxina malárica) são responsáveis pelas manifestações clínicas na malária, pois ativam células mononucleares em sangue periférico que estimulam a liberação de citocinas inflamatórias. Na determinação da gravidade da malária ocorre um desequilíbrio na produção e/ou expressão de citocinas inflamatórias e anti-inflamatórias. Desse modo, o TGF-β e a IL-10, que contrarregulam a resposta pró-inflamatória, estão em baixas concentrações, como por exemplo na anemia grave dessa doença. Entretanto, outros fatores podem concorrer para essa fisiopatogenia, como diseritropoiese induzida por citocinas e participação de mecanismos autoimunes.  Assim, a anemia da malária, usualmente normocítica e normocrômica, incide na sua forma grave (Hemoglobina < 5gdL) em dois grupos de maior risco: gestantes e crianças menores de cinco anos. Entretanto, pode ser microcítica e hipocrômica, pela elevada frequência de hemoglobinopatias e deficiência de ferro nas mesmas áreas em que a malária é endêmica.(5)

A fisiopatologia da anemia da malária, ainda não completamente elucidada, é complexa, multifatorial e envolve, além da desregulação da resposta imune, os seguintes mecanismos: a) destruição de eritrócitos parasitados e não parasitados (porém, com produtos do parasito aderidos à superfície) na circulação periférica, com importante participação do baço, sem relação direta com a intensidade da parasitemia; b) redução ou alteração na produção de precursores eritroides (diseritropoiese), mediada por citocinas, cuja importância na gênese da anemia parece ser maior na doença de longa duração e menor nos casos agudos. A despeito da intensidade da anemia, no sangue periférico, pode haver baixa contagem de reticulócitos, o que indiretamente expressa algum grau de disfunção da medula óssea, observado por um curto período de tempo, mesmo após erradicação do parasito pelo uso de antimaláricos e lâminas com gota espessa sucessivamente negativas. Com frequência, crianças com malária pelo P. falciparum apresentam hipoglicemia, por gliconeogênese hepática insuficiente, que possui relação direta com níveis elevados de parasitemia. Eventos fisiopatológicos responsáveis por malária grave e até óbito também ocorrem na malária por P. vivax.  Semelhante à importância da citoadesão nas formas graves de malária pelo P. falciparum, este fenômeno pode também estar presente nas infecções pelo P. vivax.(4)

As manifestações clínicas na malária são de caráter sistêmico em que a febre constitui o principal sinal ou sintoma, presente em quase todos os pacientes. A febre costuma ser elevada, precedida de calafrio e seguida de sudorese e sem periodicidade (exceto se houver sincronismo na ruptura de eritrócitos parasitados, trazendo como consequência febre a cada 48/48 horas nas infecções por P. vivax, P. falciparum e P. ovale, ou a cada 72/72horas nas infecções por P. malariae). Quando a febre é acompanhada de cefaleia e calafrio, denomina-se de tríade malárica. Anorexia e artralgia podem também ocorrer, ao lado de manifestações respiratórias (tosse e sensação de falta de ar) e gastrointestinais (dor abdominal, náusea, vômitos e diarreia.(5)

Os perfis de transmissão da doença no Brasil são diferentes e observados em três ambientes distintos; na Amazônia e na Mata Atlântica, ambas com predomínio de casos indígenas, e em outras regiões, com casos importados de viagens recentes a áreas endêmicas de malária no país, ou em outras da América Central e do Sul, países africanos ou asiáticos. Sua transmissão em áreas brasileiras é caracterizada como hipoendêmica a mesoendêmica, com transmissão instável com flutuações sazonais anuais. Além disso, nos últimos anos, complicações clínicas associadas a casos fatais de infecção por P. vivax têm sido relatadas no Brasil, sendo motivo de preocupação para pesquisadores brasileiros que trabalham com malária. A malária em viagens tem sido motivo de preocupação, pois toda a região extra-amazônica é receptiva à transmissão da doença por migrantes infectados de outras áreas endêmicas e os serviços de vigilância sanitária em alguns municípios carecem de estrutura adequada para enfrentar o problema.(6)

A Organização Mundial de Saúde considera o diagnóstico rápido e preciso como o primeiro elemento básico da estratégia de controle da malária, contribuindo para a redução de sua morbidade/mortalidade. Parâmetros como alta sensibilidade e especificidade, custo reduzido, execução oportuna e acurácia dos exames laboratoriais são essenciais para estabelecer satisfatoriamente a realização de exames laboratoriais para o diagnóstico do agente responsável pela malária. Em abril de 2017, o Programa Nacional de Controle da Malária do Ministério da Saúde estabeleceu estratégias para diminuir a morbidade/mortalidade da doença, reduzir a gravidade dos casos e interromper a transmissão quando possível e manter a doença eliminada onde esse objetivo foi alcançado. Além disso, essas estratégias visam o diagnóstico de qualidade, por meio do tratamento, controle eficaz do vetor, educação para a promoção da saúde, prevenção e contenção dos surtos como atividades fundamentais para interromper a transmissão e controlar a doença.(1,7) Deve-se considerar que o diagnóstico laboratorial da malária é necessário, tendo em vista que as características clínicas da malária são inespecíficas e se sobrepõem às características de outras doenças febris, bem como à hepatoesplenomegalia, icterícia e colúria; principalmente com arboviroses, leptospirose, febre tifoide, septicemias e recentemente a COVID-19. Além disso, esses procedimentos específicos são essenciais, uma vez que o tratamento com antimaláricos é baseado em estágio específico da espécie.(8)

No Brasil, a gota espessa (GE) corada por Giemsa, segundo o método de Walker, é o método de escolha (padrão ouro) para o diagnóstico da malária, a fim de identificar a espécie do parasito causador da infecção. A GE é realizada por punção digital sem a necessidade do paciente estar febril no momento da coleta. Possui sensibilidade maior que 80% e especificidade de 100%; é satisfatório no diagnóstico e permite a quantificação da forma parasitária, essencial para o acompanhamento da terapia aplicada, e relativamente barato. O limite de detecção é de 5 a 10 parasitos por microlitro de sangue. (1) Considere, no entanto, que a GE negativa nem sempre exclui a malária, pois alguns antibióticos têm certa ação antiplasmódica, reduzindo a parasitemia e dificultando a localização do protozoário. Nesse caso, se houver forte suspeita diagnóstica, o teste deve ser repetido. Podemos destacar como desvantagem da GE a limitação do diagnóstico na baixa parasitemia e na detecção da infecção mista; além disso, o atraso no processamento pode resultar em alterações na morfologia e prejudicar a detecção segura. Embora a GE seja barata, torna-se um desafio treinar microscopistas, capacitando-os a desempenhar e manter o nível de competência.(3)

Assim como o esfregaço sanguíneo, também permite que tanto o parasito seja visualizado, quanto   a espécie de plasmódio seja detectada mais facilmente, mas tem a desvantagem de a lâmina conter apenas uma camada de sangue em oposição à gota espessa que possui várias camadas, que facilita a localização do parasito e também a identificação da espécie pela experiência do microscopista.(7)

Assim, foram criados métodos alternativos de diagnóstico, como os testes imunocromatográficos (também conhecidos como teste de diagnóstico rápido – TDR) usados, especialmente, se o diagnóstico microscópico não estiver disponível ou não for confiável. Esses testes disponíveis comercialmente são baseados em quatro proteínas plasmódicas diferentes: Histidina (HRP2 – específico para P. falciparum), Lactato desidrogenase (LDH), Pan-LDH e aldolase. Os TDRs não requerem equipamentos e eletricidade, e requerem apenas um treinamento mínimo e, portanto, são indicados em áreas remotas onde não há laboratórios para realização de GE. Nos últimos anos, com o advento das tecnologias moleculares, novos métodos diagnósticos baseados na reação em cadeia da polimerase tradicional (PCR) ou quantitativa em tempo real (qPCR) foram introduzidos, utilizando a subunidade menor do RNA ribossômico e o DNA mitocondrial como alvos. Essas técnicas são reconhecidas como os métodos mais sensíveis e específicos de diagnóstico, detectando parasitemia submicroscópica e com redução do volume sanguíneo. Além disso, a PCR deve ser a técnica escolhida fora da área endêmica, pois nessas regiões as apresentações clínicas do paciente sintomático induzem o médico a um diagnóstico de dengue.(1,2) As técnicas moleculares ainda apresentam limitações de uso prático, principalmente pelo alto custo envolvido. Nas diferentes etapas do processamento, incluem equipamentos e reagentes caros, além de depender de uma estrutura organizacional para coleta, transporte e processamento das amostras, o que resulta em um longo tempo para a obtenção dos resultados. Um método alternativo ao PCR, ainda em avaliação para o diagnóstico da malária, é o RealLamp, que se baseia na amplificação isotérmica de ácidos nucléicos. Sua vantagem está na facilidade de uso em campo, pois não requer uma infraestrutura laboratorial sofisticada e utiliza um simples aparelho portátil capaz de realizar a amplificação e a detecção do produto em uma única plataforma.

Em dezembro de 2019, um novo Coronavírus foi identificado ser responsável por muitos casos de pneumonia em Wuhan, uma cidade na província de Hubei, na China. O número de casos aumentou, excessivamente, na China e, em seguida, em todo o mundo causando uma pandemia. O vírus é agora denominado coronavírus de síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2).(8) A doença foi inicialmente relatada à OMS em 31 de dezembro de 2019, e a epidemia de COVID-19 foi declarada uma emergência de saúde global em janeiro de 2020, então uma pandemia global em 11 de março de 2020. Embora a malária e a COVID-19 possam ter uma apresentação semelhante, os sintomas comuns que compartilham incluem, mas não são limitados a: febre, dificuldade em respirar, cansaço e cefaleia de início agudo, que pode levar a um diagnóstico incorreto de malária para COVID-19 e vice-versa, especialmente quando o clínico confia principalmente nos sintomas.(4) Sintomas comuns de infecção com SARS-CoV-2 incluem febre, tosse, falta de ar, calafrios, mialgia, dor de cabeça, dor de garganta e nova perda do paladar ou cheiro; o início dos sintomas geralmente ocorre 4 a 5 dias após a infecção, embora possa ser até 14 dias, e nem todas as pessoas infectadas desenvolvem sintomas. Aproximadamente uma semana após o desenvolvimento dos sintomas, alguns dos pacientes experimentam uma piora aguda, com um pronunciado aumento sistêmico de mediadores inflamatórios e citocinas. A resposta inflamatória sistêmica severa, referida como uma “Tempestade de citocinas”, é caracterizada por um aumento acentuado dos níveis de interleucinas e TNF-α, e está associada ao desenvolvimento da síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA). Hipertensão, diabetes, doença cardiovascular, doença respiratória preexistente e obesidade foram comorbidades comuns; em uma meta-análise de 1.576 pacientes na China, todas, exceto diabetes e obesidade, foram associadas ao aumento do risco de doença grave.(8.9)

Das cinco espécies de parasitos que causam malária em humanos, o P. falciparum é responsável pela maior parte da morbidade e mortalidade, seguida por P.vivax. Os eritrócitos infectados se lisam e liberam merozoítos na circulação, causando ativação do sistema imunológico e levando à liberação de citocinas pró-inflamatórias, incluindo TNF-α, INF-g, IL-6 e IL-12.(5) Esta cascata de citocinas leva a sintomas de malária, e tal como acontece com a COVID-19, a resposta imune celular na malária deve ser cuidadosamente regulada para alcançar uma resposta protetora sem causar impacto adverso no hospedeiro. As manifestações graves da malária são frequentemente devidas a respostas pró-inflamatórias excessivas. O mesmo parece ser verdadeiro em pelo menos alguns casos de COVID-19, sugerindo que uma coinfecção que também leva a respostas pró-inflamatórias excessivas pode resultar em manifestações mais graves e prognóstico desfavorável.(4)

A imunossupressão induzida por malária também foi observada em muitas coinfecções, inibindo significativamente respostas a outra infecção. No entanto, a imunomodulação induzida pela malária tem sido apresentada como protetora contra as manifestações graves de alguns vírus respiratórios. No Quênia, crianças hospitalizadas diagnosticadas com influenza e malária eram menos propensas a sofrer problemas respiratórios do que aqueles com influenza isoladamente.(1,5) No entanto, em um modelo murino, o controle viral também foi prejudicado, levando a aumento da disseminação viral. Dinâmicas semelhantes podem ocorrer durante a coinfecção Plasmódio e SARS-CoV-2; induzida por malária, a imunossupressão pode levar a manifestações mais leves de COVID-19, mas simultaneamente diminui o controle viral, potencialmente aumentando ou sustentando as cargas virais, o que poderia aumentar o potencial para transmissão viral.

Desconforto respiratório, observado em até 25% dos adultos e 40% das crianças com malária P. falciparum grave, tem várias causas, incluindo anemia grave, acidose metabólica, citoaderência de eritrócitos infectados nos vasos pulmonares e coinfecções com patógenos causadores de pneumonia.(1) O espectro clínico varia de sintomas respiratórios superiores leves a lesão pulmonar aguda e síndrome respiratória aguda (SARS) fatal. A síndrome do desconforto respiratório agudo é rara em crianças pequenas com malária, mas ocorre em 5% a 25% dos adultos e 29% das mulheres grávidas com infecções graves por P. falciparum, e menos comumente com malária P. vivax. Na malária e COVID-19, a SARS está ligada a citocinas inflamatórias mediadas pelo aumento da permeabilidade capilar ou dano endotelial, que resulta em grande dano alveolar. Dada esta situação, as coinfecções por Plasmodium spp. e SARS-CoV-2 podem resultar em deterioração particularmente rápida, com um mau prognóstico. No dano alveolar mediado por inflamação e induzido por malária, a SARS progride mesmo após o tratamento e a eliminação do parasito. Indivíduos coinfectados podem ser propensos a COVID-19 grave, porque tanto a malária quanto a COVID-19 podem levar a manifestações clínicas semelhantes, incluindo febre e sintomas respiratórios, um ou o outro pode ser esquecido em um diagnóstico diferencial de dificuldade respiratória, levando a um aumento do número de mortes. À medida que a transmissão do SARS-CoV-2 aumenta, particularmente na África e na Índia, os médicos devem ter isso em mente. Além disso, documentar a frequência, a distribuição e os resultados destas coinfecções é de suma importância.(8-10)

Considerando que as sequelas hematológicas de COVID-19 ainda estão sendo elucidadas, uma meta-análise que descreve 1.210 pacientes COVID-19 de quatro estudos descobriu que os valores de hemoglobina eram 0,71 g/dL (95% CI: 0,59-0,83 g/dL) menor em indivíduos com doença grave versus doença mais branda.(5) Se hemoglobina mais baixa é um fator de risco ou uma sequela da COVID-19 grave é desconhecido. No entanto, devido às reservas limitadas, mesmo pequenas perturbações na capacidade de transporte de oxigênio em indivíduos com a anemia malárica podem resultar em oxigenação tecidual insuficiente em meio a insuficiência respiratória induzida por COVID-19.(4)

Embora o SARS-CoV-2 tenha se espalhado globalmente, nossa compreensão da epidemiologia e do curso clínico da COVID-19 em países com cargas substanciais de malária e doenças tropicais negligenciadas (DTNs) está apenas começando. Provavelmente, porque a transmissão começou mais tarde nesses países endêmicos de malária e porque os testes para SARS-CoV-2 são limitados na maioria dos países de baixa ou média renda (PBMRs). Se uma mudança para uma resposta Th2 é mais comum, e se essa mudança fornece alguma proteção contra doenças graves, enquanto reduz a imunidade a longo prazo ou aumenta o período de eliminação viral, a epidemiologia de COVID-19 em PBMRs pode ser substancialmente diferente do que foi visto em outros lugares.(2,4) Plataformas de vigilância em desenvolvimento rápido para monitorar sinais de coinfecção SARS-CoV-2 com malária ou outras doenças tropicais negligenciadas será de extrema necessidade. Esforços para caracterizar casos de COVID-19 em PBMRs, como a adição do teste de SARS-CoV-2 e a vigilância epidemiológica, poderiam ser expandidos, com base na localidade, prevalência de malária e DTNs, para incluir testes de malária. Esses testes adicionais podem ajudar a determinar as taxas de coinfecção e comparar a gravidade dos resultados por status de infecção. Esforços adicionais para descrever mais cuidadosamente os impactos da clínica de coinfecções devem continuar a ser investigados e, assim, entender o impacto potencial do COVID-19 nos PBMRs e mitigar os piores resultados.(8,10)

Estudos revelaram que o SARS-CoV-2 usa o receptor da enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2) para entrar nas células hospedeiras. O ANG II é o substrato para ACE2 e quando acumulado pode então aumentar a agregação de neutrófilos e intensificar permeabilidade vascular, ocorrendo uma exacerbação do edema pulmonar. Por outro lado, estudos demonstram que algumas mutações nesse gene podem oferecer proteção na malária e também na COVID-19.(4,10)

A cloroquina (CQ) e a hidroxicloroquina (HCQ) são 4-aminoquinolinas com rápida atividade esquizonticida. Não tem ação contra as formas hepáticas do parasito (hipnozoítos) de malária pelo P. vivax e P. ovale. Além de seu efeito antimalárico, a cloroquina tem também ação antipirética e anti-inflamatória.(7) A principal teoria do mecanismo antimalárico está relacionada ao bloqueio do processo de desintoxicação dos parasitos, e se concentra nos vacúolos alimentares dos plasmódios sensíveis, onde aumenta o pH. Desta forma, inibem a atividade peroxidativado heme e interrompem sua polimeração não enzimática em hemozoína. A incapacidade de ativar o heme destrói os parasitos por meio de lesões oxidativas e das membranas proteases digestivas.(3) Os efeitos colaterais comuns entre CQ/HCQ incluem distúrbios gastrointestinais (vômito, náusea, diarreia, dor no estômago, anorexia e perda de peso) e reações na pele (rash cutâneo, prurido e perda de cabelo). São observados raros casos de falha renal e reações alérgicas. CQ/HCQ podem também causar reações adversas fatais ou sérias no coração e retina, epilepsia, hipoglicemia, bem como envenenamento causado por overdose. Retinopatia irreversível ocorre em 1% dos casos por uso contínuo – 5 a 7 anos. Apesar de CQ e HCQ poderem bloquear a infecção por SARS-CoV-2 em células epiteliais renais Vero E3, este efeito parece ser específico do tipo celular. Estudos relataram que CQ e HCQ não inibiram a entrada de SARS-CoV-2 em células pulmonares in vitro, uma vez que CQ e HCQ não têm como alvo uma protease transmembrana, independente do pH, que é uma chave da molécula para infecção viral em células epiteliais das vias aéreas. Infelizmente, nem todos os estudos in vitro encorajadores para o SARS-COV-2 podem ser traduzidos em configurações in vivo.(2, 9)

Finalmente, os programas de controle de malária estão sendo afetados de várias maneiras pela COVID-19. Para a prevenção da malária, os mosquiteiros tratados com inseticida precisam ser renovados regularmente, mas as campanhas de distribuição foram adiadas ou canceladas. Para a detecção e tratamento da malária, os indivíduos podem parar de frequentar as unidades de saúde por medo de exposição à COVID-19 ou porque não podem pagar pelo transporte, e os profissionais de saúde precisam de recursos adicionais para a proteção contra a COVID-19. Ainda, o fornecimento de insumos para diagnóstico e medicamentos está sendo interrompido em alguns países, o que é agravado pela produção de medicamentos e diagnósticos abaixo do padrão e falsificados.

 

REFERÊNCIAS

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Correspondência

Ricardo Luiz Dantas Machado

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