Microbiologia em quadrinhos: uma tarde com a Escherichia coli

Microbiology in comics: an afternoon with Escherichia coli

 

João Batista Lopes Coelho Júnior1                 

Lendro Medrado                                     

Douglas Pereira dos Santos2              

Joseli Maria da Rocha Nogueira3

 

1Doutorando. Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz. Manguinhos – RJ, Brasil.

2Graduado. Professor Municipal. São Pedro da Aldeia – RJ, Brasil.

3Doutorado. Chefe do Laboratório de Microbiologia – ENSP – Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz. Manguinhos – RJ, Brasil.

 

Instituição: Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz. Manguinhos – RJ, Brasil.

 

Recebido em 10/08/2020

Aprovado em 22/09/2020

DOI: 10.21877/2448-3877.202002055


 

INTRODUÇÃO

 

Histórias em quadrinhos (HQs) são constituídas de narrativas ou descrições contadas com uma linguagem específica em desenhos dentro de quadros com falas em balões, ou apenas com imagens, ou símbolos. Mcclound(1) cita os quadrinhos como imagens pictóricas ou justapostas que compõem uma narrativa, enquanto que Cabello e Moraes(2) os descrevem como uma arte sequen­cial constituída por imagem e escrita as quais, em geral, apresentam onomatopeias para reproduzir sons e ruídos. Ramos(3) descreve que os balões representam diálogos que podem ser mais ou menos expressivos, representando gritos, cochichos ou pensamentos, entre outros.

Para Abrão e Gomes,(4) as HQs conseguem cruzar a linha que separa a alta cultura e a cultura de massas, permitindo uma leitura ampla em estilos e perspectivas, relacionando-se às mais variadas expressões na literatura, cinema, política, artes em geral, ou na prática pedagógica.

Revistas em quadrinhos, enquanto alternativa de estímulo visual e da racionalidade, podem desempenhar também funções pedagógicas como instrumento facilitador para professor e aluno. Sendo assim, esse formato, que apresenta diferentes gêneros, incorpora uma dimensão formadora própria da arte, que pode se inserir de forma mais sistemática no processo educativo ou informativo.(5)

O Brasil possui uma longa história junto à educação no que se refere a quadrinhos. A partir de 1905 foi publicada a revista Tico-Tico, que, além de HQs, apresentava contos, brinquedos para montar e sessões instrutivas.(6) O formato de HQs ao longo dos anos frequentemente em formatos de tiras que ilustram textos e fornecem questões para interpretações tornaram-se importantes dentro de livros didáticos. No entanto, não é incomum encontrar pais e educadores que observem este recurso com desconfiança, mesmo que esse tipo de narrativa seja um instrumento empolgante e eficiente, rompendo barreiras contra a dificuldade de leitura dos alunos.

Sendo assim, partindo dessa perspectiva, os quadrinhos apresentam vantagens nos meios de comunicação, como ferramenta para inserir pensamentos de questões de saúde.(7) Dentro do processo de ensino-aprendizagem, a imagem é extremamente importante, já que pode tornar visível fatos e detalhes muitas vezes invisíveis. Em biologia, para não especialistas, estruturas microbianas e reações químicas podem ser mais facilmente compreendidas visualmente que por meio de linguagem textual.(8) Além do que, as imagens também auxiliam na construção de outros conceitos, incluindo não só atividades científicas, mas auxiliando na apropriação do discurso científico e ajudando a construir e alterar subjetividades.(9)

Essa forma de expressão, em ciência e arte, constitui duas faces da ação e do pensamento humano que, segundo Massarani e colaboradores,(10) pode gerar o aprimoramento mútuo. Desta forma, apresentamos a história em quadrinhos “Microbiologia em quadrinhos: uma tarde com a E. coli“, por meio de uma narrativa simples de uma jovem em um laboratório, comunicando-se com uma representação cartoonesca da bactéria Escherichia coli, com o objetivo de levar o conhecimento de forma lúdica, contribuindo para o processo de aquisição de conhecimentos ou despertando a curiosidade sobre os conceitos de micro­biologia de forma agradável. Nesta história são apresentadas características desta bactéria e alguns equipamentos e processos laboratoriais relacionados à micro­biologia, como as partes de um microscópio óptico e o método de coloração de Gram.

 

MATERIAL E MÉTODOS

 

Concepção de personagens e brainstorm

Inicialmente, estabelecemos dois personagens para a narrativa. Uma cientista em seu laboratório de análises clínicas e a visão lúdica e cartoonesca de uma bactéria E. coli (Figura 1). O conceito dos personagens foi sendo construído a lápis e discutido até a idealização dos protagonistas, com a elaboração posterior de storyboard no qual pudessem ser apresentados detalhes suficientes para a confecção do enredo, com as respectivas falas entre os dois protagonistas, e de forma a contemplar um conjunto de conhecimentos previamente identificados como significativos para a compreensão microbiológica da E. coli, de sua importância para os processos de saúde e doença, e das práticas laboratoriais mais importantes a ela relacionadas.

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                                             Figura 1. Rascunho de personagens principais da narrativa e idealização conceitual do enredo.

                                                     Fonte: Próprios autores

 

Conforme descrito, para que esta HQ alcançasse o objetivo de atuar como instrumento de educação e de informação científica, foi preciso ter, inicialmente, clareza quanto aos seus objetivos, ao seu público-alvo, e sobre as regras e características únicas que a linguagem dos quadrinhos nos oferece, como descritas por Mcclound.(1) Sendo assim, identificou-se um conjunto de conhecimentos como significativos para a compreensão microbiológica da E. coli, de sua importância para os processos de saúde e doença, e das práticas e instrumentos laboratoriais mais importantes a ela relacionadas.

Na construção das imagens e do enredo desta HQ, tivemos o intuito de representar de forma ampla e adequada os principais procedimentos que são realizados nos laboratórios de microbiologia, no que tange à E. coli, utilizando uma linguagem apropriada e atualizada. Além disso, buscamos demonstrar as situações da forma mais similar a como cotidianamente são realizadas nos laboratórios de microbiologia, mas adequando, o quanto possível, às necessidades inerentes à linguagem dos quadrinhos.

 

Modelagem 3D, pintura digital e construção de HQ

Posteriormente à construção do enredo e storyboard, foi realizada a modelagem 3D dos personagens e dos cenários através do software Blender, que é um software de livre acesso e código aberto, que oferece recursos, por exemplo, para a criação de desenhos mais simples em 3D, animações e jogos (Figura 2).

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                                Figura 2. Modelagem de personagens pelo software Blender.

                                       Fonte: os autores

 

As modelagens em 3D dos personagens e do cenário foram criadas, escolhendo-se as poses e ângulos de câmera de acordo com a narrativa e com um storyboard previamente elaborado (Figura 3). O software Blender, foi utilizado também nas renderizações dos desenhos. Ao final, inserimos detalhes com pintura digital pelo software Krita, disponibilizado gratuitamente para execução de pinturas digitais.

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  Figura 3. Modelagem 3D dos personagens e cenários através do software Blender e pintura digital no software Krita.

 

Após a confecção dos desenhos digitais, utilizamos o aplicativo Strip Design para a construção dos quadrinhos, onde inserimos cada figura e balões de falas nos respectivos quadros (Figura 4).

Esse aplicativo, disponível apenas em plataforma IOS para iPhones e iPads, fornece recursos variados para adequar tamanhos de páginas, balões, quadros e fontes na criação de tirinhas e histórias em quadrinhos.

 

RESULTADOS

 

Os resultados obtidos estão ilustrados na Figura 5, onde todas as técnicas empregadas geraram a história em quadrinhos finalizada. Os desenhos foram todos criados pelos autores, com exceção de duas imagens, que foram adaptadas de dois livros clássicos de Microbio­logia.(11,12)

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Figura 4. Enquadramento e inserção de balões.

 

5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17

18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28

 

 

DISCUSSÃO

 

Jay Hosler,(13) em sua criação Optical Allusion, introduz em seus quadrinhos conceitos biológicos complexos e, em seguida, usa o texto imediatamente após a história para abordar essas ideias com mais detalhes. Posteriormente, avalia como histórias em quadrinhos podem afetar o aprendizado e atitudes de alunos sobre biologia através de sua revista Optical Allusion, apresentando dados que sugerem que histórias em quadrinhos podem desempenhar um papel significativo na transmissão de conteúdo.(14)

Em nossa história em quadrinhos, abordamos a bactéria E. coli, as formas clássicas de identificação utilizadas, uso correto do soro caseiro quando necessário, medidas de prevenção e manifestações clínicas decorrentes de infecções pela espécie. Assim, disponibilizamos um material pedagógico para o ensino de microbiologia que pode ser usado de acordo com a proposta do professor ou como uma ferramenta de divulgação científica.

Em geral, a abordagem pedagógica de quadrinhos é descrita em relatos de experiências sobre sua utilização. São desde construções pelos próprios autores,(14,15) co­criações com estudantes,(16) ou mesmo, a utilização de narrativas de edições famosas para o ensino.(17,18)

Assim, da mesma forma que a análise e o relato de experiência contribuem consideravelmente dentro do cenário educacional, propostas pedagógicas podem gerar reflexões e contribuir para o aprimoramento profissional de educadores no processo de ensino e aprendizagem, provendo ferramentas de interação entre professor e aluno com o objetivo de ensinar, ou gerar reflexões sobre determinada habilidade ou conhecimento específico.(19- 22)

Para os professores, segundo Mendonça,(23) propostas lúdicas promovem junto com os alunos a possibilidade de estímulo à exploração criativa, fornecendo elementos de construção de conhecimento e desenvolvimento da imaginação. Veem e Vrakking(24) narram ainda a dificuldade que professores encontram em elaborar estratégias pedagógicas diferenciadas que estimulem a participação de seus alunos. Sendo assim, esperamos que o material aqui apresentado possa auxiliar educadores na condução de aulas eficientes e dinâmicas não só para este tema, mas proporcionando a troca de experiências e de ideias entre professores e educandos para criação de novos projetos de HQs sobre assuntos diversos.

 

 

CONCLUSÕES

 

Em geral, histórias em quadrinhos costumam causar interesse em leitores jovens e em muitos adultos. Em uma era de informações rápidas e estímulos diversos, a utilização de uma história em quadrinhos, entre outros recursos que envolvem a arte e o lúdico, podem e devem ser explorados não só no letramento científico, ou como forma de atrair o interesse tanto de crianças quanto de jovens no campo de ciências, como também atuar como instrumento de divulgação científica.

Conforme apresentamos nos tópicos anteriores, consideramos que produção do material apresentado é edu­cativo e informativo, englobando diversos aspectos importantes sobre a E. coli e as atividades técnicas relativas a um laboratório de microbiologia. Contamos com os recursos visuais únicos das HQs e com sua linguagem característica como aliados nos processos de memorização e ressignificação do tema, promovendo a desmistificação do discurso científico e da sua correlação prática com a nossa vida cotidiana.

Consideramos que a HQ é apenas mais um elo de demonstração do potencial transformador, afetivo e cativante da relação ainda pouco explorada entre a ciência e a arte e sua aplicação nos campos da Educação, da Informação Científica, e da Promoção da Saúde.

 

 

Abstract

Objective: Comics (comics) are made up of narratives or descriptions told through a specific language in drawings within frames with speech in balloons, or only with images, or symbols. Within the teaching-learning process, the image is extremely important, as it can make facts and details often invisible, visible. In biology, for non-specialists, microbial structures and chemical reactions can be more easily understood visually than through textual language. In this way, we present the comic book “Microbiology in comics: an afternoon with Escherichia coli”, through a simple narrative of a young woman in a laboratory, communicating with the playful representation of the bacterium Escherichia coli. This history presents characteristics of this bacterium and some equipment and laboratory processes related to microbiology, such as the parts of an optical microscope and the Gram staining method. Methods: The HQ was created through the 3D modeling of the characters and the scenarios using the Blender software, digital painting by the Krita software and the Strip Design application for the construction of the comics, where we insert each figure and speech bubbles in the respective frames. Results: The result generated an easy-to-read and pleasant visualization within the microbiology content. Conclusion: This type of playful tool can facilitate the understanding of complex subjects related to the bacteria Escherichia coli by the readers.

 

Keywords

Microbiology; comic strips; Escherichia coli; health education

 

REFERÊNCIAS

  1. Mcclound S. Desvendando os quadrinhos. 1a Ed. São Paulo: Makron Books; 1995.
  2. Cabello KS, Moraes MO. Educação e divulgação científica de hanseníase: história em quadrinhos para o ensino da doença. In: Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências; 2005; Bauru, Brasil: Atas. Associação Brasileira em Pesquisa em Educação em Ciências; 2005. p.1-11.
  3. Ramos P. A leitura dos quadrinhos. 2a ed. São Paulo: Contexto; 2010.
  4. Abrão D, Gomes NS. Quadrinhos: arte contemporânea? Cadernos Cespuc. 2014. 25:213-225.
  5. Andraus G. A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional. Visualidades. 2012. 7(1):43-67. doi: https://doi:10.5216/vis.v7i1.26613.
  6. Cabello KAS, Rocque LL, Sousa ICF. Uma história em quadrinhos para o ensino e divulgação da hanseníase. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias. 2010. 9(1): 225-241.
  7. Prado C, De Sousa Junior C, Pires M. Histórias em quadrinhos: uma ferramenta para a educação e promoção da saúde. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde. 2017. 11(2):1-12. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v11i2.1238.
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  9. Vidal FLK, Rezende Filho LAC. Escolhendo Gêneros Audiovisuais para Exibições em Aulas de Ciências e Biologia: como os professores entendem a referencialidade da imagem. Alexandria. 2010. 3(3): 47-65.
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  13. Hosler J. Optical Allusions. 1aed. Ohio: Active Synapse; 2000.
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Correspondência

João Batista Lopes Coelho Júnior

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