Flexibilização do jejum para dosagem de perfil lipídico: uma revisão sistemática

Fast flexibilization for lipid profile dosage: a systematic review

 

Érica Camille Ribeiro dos Santos1

Jamile Soares Mota Lobo1

Mara Dias Pires1

1Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Salvador-BA, Brasil.

Instituição: Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Salvador-BA, Brasil

Recebido em 18/12/2018
Artigo aprovado em 24/03/2020
DOI: 10.21877/2448-3877.202000811

INTRODUÇÃO

O perfil lipídico, também conhecido como lipidograma, baseia-se na expressão dos níveis plasmáticos de lipídios, que são moléculas de gordura adquiridas por meio da dosagem do colesterol total (CT), triglicérides (TG), lipo­pro­teína de alta densidade (HDL-c), lipoproteína de densidade muito baixa (VLDL) e os cálculos utilizados (fórmula de Friedewald) para a estimativa das lipoproteínas de baixa densidade (LDL-c).(1)

Deve-se considerar que os níveis alterados dos lipídios e/ou lipoproteínas, denominado dislipidemia, provindos da con­sequente avaliação dessas moléculas, estão associados diretamente a fatores que poderão apresentar efeitos citotóxicos ao organismo.

Como exemplo temos a doença coronariana ou outras manifestações de doença ateros­clerótica, sendo esta uma enfermidade inflamatória crônica a qual afeta diretamente a parede das artérias, contribuindo para a formação de placas de gordura (ateromas) podendo assim, não só comprometer o fluxo de sangue como o funcionamento de órgãos vitais como, por exemplo, o coração, cérebro e rins.(2)

Considerado um problema de saúde pública, de acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), as doenças cardiovasculares (DCV) são consideradas as principais causas de morbidade e mortalidade no âmbito mundial, sendo que, em 2015, podem ser destacados 37% de mortalidade devido à DCV.(3) O Brasil, segundo o Ministério da Saúde (MS), vem acompanhando esse perfil epide­miológico em que 300 mil indivíduos sofrem infartos todos os anos e, em 30% do total de acontecimentos, o ataque cardíaco é fatal.(4)

Entre os fatores de risco para que se incida a variação no perfil lipídico, pode-se classificar a dislipidemia em primária e secundária.

A primária possui origem genética, já a secundária está relacionada a fatores sociais em que há mudança crescente no estilo de vida, o que gera hábitos alimentares inadequados e sedentarismo, que induzem a obesidade, além de uso constante de medicamentos, tabagismo e outras doenças de base, como a diabetes mellitus (DM) e hipertensão, que predispõem determinadas patologias relatadas anteriormente.(5)

Sendo assim, existe a relevância da determinação do lipidograma bem como dos fatores de risco que acarretam o surgimento de algumas doenças, pois o conhecimento prévio dessas alterações poderá favorecer no prognóstico, no tratamento, tornando-o eficaz e, assim, diminuir o índice de mortalidade relacionada à dislipi­demia.

Por isso, inúmeras amostras de sangue são cole­tadas, e associados a esta fase fatores pré-analíticos eram anteriormente considerados indispensáveis para a obtenção do perfil lipídico, destacando-se o jejum, o qual poderia sofrer alterações entre 8 a 12 horas no tempo mínimo e máximo a depender do que fora solicitado para a realização do exame, uma vez que, para a dosagem de CT e HDL-c, não é recomentado o jejum, tendo como objetivo que o paciente continue com a mesma rotina alimentar para que haja uma avaliação da verdadeira condição metabólica, sendo que a recomendação já se restringia à análise dos triglicerídeos que podem sofrer alterações a depender do que foi consumido, interferindo consequen­temente no cálculo do LDL-c.(6)

Entretanto, com o avanço tecnológico, estudos foram aprimorados e o Conselho Brasileiro para Norma­tização da Determinação Laboratorial do Perfil Lipídico, em conjunto com as Sociedades Brasileiras: Cardiologia/Departamento de Aterosclerose (SBC/DA), Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML), Análises Clínicas (SBAC), Diabetes (SBD) e Endo­crinologia e Metabologia (SBEM) motivaram, em 2016, a não obrigatoriedade do jejum, estabelecendo novos valores de referência, exercício já realizado por laboratórios em outros países como nos Estados Unidos e Canadá.(7)

Tendo como justificativa que o consumo de alimentos realizado anteriormente à coleta causa baixa ou nenhuma interferência no diagnóstico, pode-se, como consequência, destacar que os indivíduos, especialmente idosos, gestantes, crianças e portadores de diabetes não se sujeitem aos transtornos ocasionados pelo tempo de jejum determinado e que haja maior comodidade em relação à marcação e praticidade para a realização dos exames e consequentes resultados satisfatórios.(8)

Desta maneira, o presente artigo tem como objetivo estudar a flexibilização do jejum relacionado à avaliação do perfil lipídico e analisar de forma crítica as implicações clínicas dos novos valores de referência em populações que fazem ou não o uso o jejum nesse exame.

 

MATERIAL E MÉTODOS

 

Este trabalho trata-se de uma revisão sistemática elaborada com base nas recomendações metodológicas da declaração PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Metanalyses) para trabalhos de revisão sistemática.(9)

A pergunta investigativa foi formulada, tomando-se como base a descrição da doença, ou condição de interesse, a população, o contexto, a intervenção e o desfecho descritos na Tabela abaixo em concordância com o anagrama PICOS.(10)

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A localização dos estudos, ou busca das evidências, teve início com a definição das palavras-chave, seguida da estratégia de busca e definição das bases de dados a serem pesquisadas. A pesquisa das palavras-chave foi realizada nos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS), do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme). Os termos localizados foram combinados utilizando-se os operadores booleanos “AND”, “OR” ou “NOT”, para compor equação de busca: (“Reference values”) AND (“fasting” OR “Nonfasting”) AND (“dyslipidemia” OR “Lipid Profiling”) Filters: Publication date from 2008/01/01 to 2018/10/01.

Foi realizada a busca na seguinte base de dados, considerada fonte de informação primária: PubMed. A avaliação crítica, bem como a elegibilidade dos estudos foi realizada obedecendo rigorosamente aos critérios de inclusão e exclusão definidos com base na pergunta que norteia esta revisão sistemática. Foram adotados como critérios de inclusão: artigos em inglês e português, dentro do período de estudo, somado àqueles contidos no anagrama PICOS.

Os critérios de exclusão foram artigos em duplicatas, não originais, fora do período de estudo, outras revisões sistemáticas com temas correlatos a este. A Figura 1 traz um diagrama de fluxo metodológico, prima, utilizado na seleção dos artigos.

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                 Figura 1. Metodologia adotada para seleção dos artigos.

 

Ética

Por se tratar de uma revisão sistemática, este estudo não será submetido à avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa de acordo com a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Contudo, todos os preceitos éticos serão respeitados no que se refere a zelar pela legitimidade das informações e direitos autorais, quando necessários, tornando público os resultados desta pesquisa.

 

RESULTADOS

 

A Tabela 2 apresenta um resumo do que foi encontrado em cada um dos seis artigos incluídos nesta revisão sistemática, sendo os mesmos subdivididos identificando os autores e ano das publicações, desenho de estudo, número de participantes e principais achados.

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DISCUSSÃO

Após a revisão sistemática foi possível verificar que os seis estudos dedicam-se à identificação da dosagem do perfil lipídico comparando-o quanto à utilização ou não do jejum, identificando os fatores de risco que podem contribuir para o aparecimento da doença cardiovascular (DCV), tendo como referência a aterosclerose, que apresenta um grande índice de mortalidade mundial.

O trabalho de Steiner e colaboradores(11) traz para discussão o fato de que o estado de jejum talvez seja o menos importante a ser considerado não somente ao correlacionar os achados dos exames à pesquisa clínica, como também no diagnóstico de doenças cardiovasculares na população estudada, mesmo considerando o fato de que os autores não fizeram uma análise individualizada para cada indivíduo incluído neste estudo.

Estabelecendo semelhança com o estudo anterior, Nielsen e colaboradores(12) concordam com a informação citada anteriormente, tendo em vista que a dislipidemia tem como fator considerado de risco o grau de peso e obesidade, sendo que este contribuiu novamente para um prognóstico ruim, descartando as implicações provindas do não jejum. O artigo traz o fato de que existe uma variabilidade nos valores de TG com o passar da idade e no sexo masculino, sendo que não foi encontrada na literatura qualquer fundamentação teórica que explicasse esse fato.

Ao se tratar da interferência existente a partir do estado metabólico do paciente, Steiner e outros colaboradores(11) afirmam que o aumento do TG após a análise na condição do indivíduo alimentado é pouco relevante, enquanto que Scartezini e demais pesquisadores(13) ressaltam que o aumento nas determinações do TG, quando o indivíduo encontra-se em estado pós-prandial, pode ser ajustado a partir dos valores de referência.

Seguindo essa temática, em que outros fatores influenciam na avaliação do lipidograma, torna-se evidente a forma errônea que vem relacionando a alimentação rotineira dos pacientes e as alterações nos resultados dos exames deste perfil. Ainda que no estudo realizado por Langsted e Nordestgaard,(14) em que apontam que o TG ainda é, dentro do lipidograma, o analito que sofre interferências após o consumo de alimentos, Sidhu e Naugler(15) consideram que a não utilização do jejum representa o estado metabólico fidedigno, visto que esse fato caracteriza a rotina alimentar do paciente. Porém, existem algumas ressalvas quanto a esse aspecto, recomendando assim a obrigatoriedade do jejum quando o TG estiver acima de 400 mg/dL, alegando-se que essa situação irá influenciar diretamente nos valores do LDL-c quando for utilizada a fórmula de Friedewald.

Steiner e outros pesquisadores(11) divergem do artigo anterior quando afirmam que o aumento do TG pós-prandial é pouco relevante. As sugestões dos autores favorecem os pacientes, principalmente diabéticos, que possuem dificuldade de realizar um longo período em jejum. Além disso, quando o jejum é solicitado e posto como pré-requisito essencial, nem sempre a maioria das pessoas adere a esse preparo, podendo assim ocorrer a desistência na realização do exame.

Langsted e Nordestgaard(14) comparam em seu estudo o emprego do jejum em dois grupos distintos. Os resultados corroboram o fato de não existirem diferenças significativas quanto à utilização ou não do jejum, assegurando que os resultados poderão predizer a DCV independente da variável jejum em que os TG permaneceram aumentados, enquanto que as reduções pós-prandiais no LDL-c foram causadas pela hemodiluição devido à ingestão de líquidos e, assim como essa pesquisa, Langsted e demais colaboradores(16) já haviam descrito esse fato. Porém, os autores diferem do estudo anterior alegando que os resultados referentes ao lipidograma sem o jejum poderão antecipar o risco de eventos cardiovasculares, sendo que essa questão ainda hoje é sustentada pela SBPC,(7) constatando que o encerramento da necessidade de jejum influenciaria na dosagem de TG, pois sua elevação, nessa situação, tem a DCV como consequência importante.

Embora Mora e colaboradores(17) demonstrem que em relação a esses riscos e levando em consideração a flexi­bilização ou não do jejum, podem-se separar os componentes em dois grupos distintos, sendo que o primeiro grupo será útil para a identificação desses fatores quando medido sem jejum, e o segundo apresentará informações menos úteis quando medidos sem o jejum ainda que existam pequenas variações.

Driver e os demais autores(18) reiteram esse fato, explicando que existem casos em que é preferível dosar o perfil lipídico com o jejum e exemplificam destacando algumas doenças como a hipercolesterolemia familiar, outras dislipidemias de origem hereditária, identificação de risco de SM e pancreatite. Para avaliar TG em quadros de hiper­trigliceridemia, o jejum só deverá ser adotado em indivíduos com valores maiores que 200 mg/dL. Aqueles que apresentarem valores mais baixos que o citado anteriormente poderão fazer uma alimentação leve. Já o CT e HDL-c não são influenciados pelo jejum.

Enquanto isso, Sidhu e Naugler(15) afirmam que o jejum não interfere de modo significativo no perfil lipídico dosado rotineiramente, apesar do TG apresentar uma variação no intervalo de tempo estudado por eles quando comparado a outros lipídeos como o CT, HDL e LDL.

A fim de se obterem resultados satisfatórios é essencial que haja orientação adequada quanto à realização do tempo de jejum, sendo indicado que o perfil lipídico seja dosado de acordo com a condição metabólica, e segundo Driver e colaboradores(18) o quadro clínico deverá ser também referência para que se empregue ou não o jejum, avaliando-se assim cada caso, divergindo do que era visto anteriormente, onde o jejum estabelecido baseava-se em 8 a 12 horas para que fosse realizada a dosagem do lipido­grama.(7)

Portanto, assim como Driver e colaboradores,(18) outros autores afirmam que o médico deverá intervir diretamente se irá adotar o jejum ou não, dependendo do quadro clínico do paciente, onde aspectos importantes serão relatados. Observa-se que a SBPC(7) reitera o fato de que o laboratório é responsável por deixar evidente no laudo o método utilizado de preparo pré-coleta que foi informado pelo paciente e os devidos valores de referências que foram modificados a partir desse novo perfil utilizado, que varia com o tipo de exame, o estado de jejum ou não, e grupos distintos e específicos (adultos >20 anos e crianças) e, a partir dessas informações, Scartezini e demais autores(13) puderam destacar a importância da utilização de um modelo padrão para o laudo laboratorial.

Reforçando os critérios de inclusão e exclusão do presente artigo, pode-se afirmar que o ano estabelecido para a obtenção dos resultados teve influência direta na composição da discussão, uma vez que a não obrigatoriedade do jejum é tema recente em setor nacional e, dentre as limitações estabelecidas, pode-se citar a ausência de informações sobre o sexo dos indivíduos em alguns estudos, podendo interferir nos resultados apresentados.

Sendo assim, o presente artigo discute esse assunto, comparando estudos e auxiliando o entendimento de profissionais e pacientes sobre o suposto benefício do tema citado.

 

CONCLUSÕES

 

A partir dos resultados apresentados e discutidos, tendo em vista que a flexibilização do jejum no cenário laboratorial ainda hoje proporciona dúvidas recorrentes, a retirada do tempo de jejum para a coleta do perfil lipídico deverá suscitar segurança e conforto tanto para os pacientes, assegurando seus hábitos alimentares, quanto para o laboratório, posto que, anteriormente, a obrigatoriedade de jejum influenciava na rotina laboratorial quanto à desistências de exames. Os estudos demonstraram que o perfil lipídico, dosado com ou sem jejum, não demonstrou alteração significativa, podendo assim ser ainda mais útil para a identificação de doenças dislipidêmicas e cardiovasculares de maneira precoce a partir dos valores de referências atualizados para a condição de coleta sem jejum.

Desta forma, a unificação de laudos e a relação clínico/laboratorial torna-se a cada dia uma realidade na imple­mentação de evidências que possam conferir um melhor entendimento do diagnóstico ao prognóstico das doenças metabólicas, como é o caso das dislipidemias. Espera-se que sejam realizados mais estudos, inclusive no âmbito nacional, para que haja adaptação a partir da cultura local, dos referidos valores de referência e, posteriormente, que treinamentos para os profissionais sejam efetivados a fim de se padronizar o preparo dos indivíduos quanto ao jejum e ter essa referência na maioria dos laboratórios do país.

 

 

Abstract

Introduction: The lipid profile was expressed through plasma lipid levels, in which fasting was mandatory, in which the relationship between the postprandial state and variations in the test results was suspected, resulting in a poor prognosis. With the technological advance, researchers motivated the non-obligatory fasting, establishing new reference values and benefiting some specific groups, justifying that the consumption of food performed prior to collection, cause low or no interference in diagnosis. Objective: To study the flexibilization of fasting related to the evaluation of the lipid profile, and to critically analyze the clinical implications of the new reference values in populations that do or do not use fasting in these tests. Method: It was used as a search phrase: AND (“fasting” OR “Nonfasting”) AND (“dyslipidemia” OR “Lipid Profiling”), Filters: Publication date from 2008/01/01 to 2018 / 10/01 in the PubMed databases. Results: Six original articles were included in the review of this review. Conclusions: The studies demonstrated that the lipid profile, dosed with or without fasting, did not show a significant alteration and could be even more useful for the identification of diseases early from the updated reference values for the non-fasting condition.

 

Keywords

Fasting; dyslipidemias; reference values

 

 

REFERÊNCIAS

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Correspondência

Érica Camille Ribeiro dos Santos

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