Resultados do eritrograma em crianças com anemias do município de Tupanciretã, RS, Brasil

Results of eritrogram in children with anemia in the municipality of Tupanciretã, RS, Brasil

 

Geovane Barbosa da Silva1

Mariana Migliorini Parisi2

 

1Biomédico. Universidade de Cruz Alta – Cruz Alta, RS, Brasil.

2Mestre, Professor Assistente. Universidade de Cruz Alta – Cruz Alta, RS, Brasil.

 

Instituição: Universidade de Cruz Alta – Cruz Alta, RS, Brasil.

 

Artigo recebido em 05/01/2017

Artigo aprovado em 07/03/2017

DOI: 10.21877/2448-3877.201700558

 

Resumo

Objetivo: Descrever o perfil do eritrograma das anemias diagnosticadas em crianças de 0 a 10 anos em um laboratório de análises clínicas do município de Tupanciretã, RS. Métodos: A coleta dos dados foi realizada de forma retrospectiva por meio da seleção dos exames laboratoriais das crianças e obedeceu aos seguintes critérios de inclusão: exames de crianças de 0 a 10 anos com hemoglobina <11 g/dL e realizados nos anos de 2014 e 2015. Resultados: Do total de 730 exames realizados pelo laboratório em crianças de 0 a 10 anos, 16,7% apresentaram hemoglobina <11 g/dL, com idade média de 1,75 ± 1,13 anos, sendo 46,7 % do sexo masculino. Observou-se maior prevalência de anemias microcíticas hipocrômicas com anisocitose, sugestivas de anemia ferropênica. Não houve diferença estatística significativa nos valores do eritrograma quando estes foram estratificados por diferentes valores de ferritina. Conclusão: Neste trabalho foi demonstrado um significativo percentual de crianças com anemia no laboratório estudado. Assim, uma melhor identificação da anemia e de seus fatores relacionados contribui para o planejamento de prevenção, controle e manejo das crianças que são acometidas por esta síndrome.

 

Palavras-chave

Anemia; Hemoglobina; Criança

 

 

INTRODUÇÃO

 

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a anemia é caracterizada pela diminuição dos níveis de hemoglobina abaixo de 12 g/dL em adultos e 11 g/dL em crianças.(1) A principal consequência clínica da anemia é um quadro de hipóxia decorrente da redução da concentração de hemoglobina na circulação sanguínea.(2)

A anemia é um dos distúrbios mais frequentes na infância. Apesar de ser encontrada com maior frequência em países em desenvolvimento, países desenvolvidos também apresentam prevalência significativa em crianças. Vários fatores podem estar envolvidos na patogênese da anemia na infância, como doenças genéticas, infecções e deficiências nutricionais.(3)

A anemia ferropênica é a principal anemia carencial da infância. Dados epidemiológicos estimam que 20% a 25% das crianças no mundo sejam portadoras de anemia por deficiência de ferro.(4,5) Atualmente, sabe-se que o desenvolvimento de anemia ferropênica pode estar relacionado às condições socioeconômicas da família da criança, como baixa renda, muitas pessoas dividindo o mesmo lar e baixa escolaridade dos pais.(6) A patogênese da anemia ferropênica acontece em três estágios, que contemplam o esgotamento das reservas de ferro armazenadas na ferritina, diminuição da saturação de transferrina, e, finalmente, a anemia refletida por uma redução na hemoglobina com aporte restrito de ferro a eritropoiese.(7)

 

O fator determinante do desenvolvimento de anemia ferropênica em crianças é a necessidade aumentada de ferro para o desenvolvimento corporal aliado a uma ingestão insuficiente deste mineral. Assim, o período do desmame representa um momento crítico para o desenvolvimento e instalação de anemia ferropênica, pois neste período as crianças deixam o aleitamento materno, rico em ferro, para iniciar uma dieta que nem sempre é adequada nos níveis nutricionais do ferro.(6)

Além disso, apenas a ingestão de ferro não é um bom indicador da sua adequação nutricional, pois vários fatores dietéticos e sistêmicos podem influenciar sua biodis­ponibilidade e absorção.(8) Esse fato representa um grave problema na saúde infantil, pois longos períodos de balanço negativo de ferro podem resultar na instalação da anemia ferropênica.(5)

Independentemente da causa, a ocorrência de anemia em crianças determina grandes prejuízos para seu desenvolvimento motor e cognitivo e para seu aproveitamento escolar.(9) Além disso, há uma maior susceptibilidade a infecções e redução da força muscular, bem como aumento do esforço cardíaco e redução da capacidade física. Desta forma, a detecção dos fatores de risco é essencial para a implementação de programas para erradicar a anemia na infância, especialmente nos grupos onde a prevalência é maior, como tentativa de diminuir o impacto negativo desta condição patológica na infância.(10-12)

Considerando a importância do impacto da anemia em crianças, o objetivo deste trabalho foi avaliar o perfil do eritrograma dos casos de anemia em crianças de 0 a 10 anos que foram atendidas em um laboratório de análises clínicas no município de Tupanciretã, noroeste do estado do Rio Grande do Sul, Brasil, nos anos de 2014 e 2015.

 

Material e Métodos

 

A coleta dos dados foi realizada pot meio da seleção dos exames laboratoriais de crianças em um laboratório de análises clínicas no município de Tupanciretã, noroeste do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. A coleta de dados obedeceu aos seguintes critérios de inclusão: exames de crianças de 0 a 10 anos, hemoglobina <11 g/dL, exames realizados nos anos de 2014 e 2015. Dos exames que contemplaram os critérios de inclusão citadas, foram coletados os seguintes dados: idade, sexo, hemoglobina sérica, hematócrito, contagem de eritrócitos, volume corpuscular médio (VCM), hemoglobina corpuscular média (HCM), concentração da hemoglobina corpuscular média (CHCM), amplitude da distribuição dos eritrócitos (RDW) e concentração de ferritina, quando estes dados estavam disponíveis no exame e cadastro do paciente.

A análise dos dados foi realizada no software estatístico GraphPad Prism 5. As variáveis categóricas foram expressas em frequência (n) e percentual (%) e variáveis não categóricas foram expressas por média e desvio padrão. A análise de distribuição dos dados foi realizada pelo teste de Kolmogorov-Smirnov. Comparação entre variáveis quantitativas foram avaliadas pelo Teste T ou por Anova de uma via e as correlações foram avaliadas pelo Teste de Correlação de Pearson. Para todos testes foi considerado um intervalo de confiança de 95% (p<0,05).

Todos os procedimentos referentes a este trabalho foram realizados de acordo com as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos (Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde). A execução do estudo foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo seres humanos da Universidade de Cruz Alta sob o CAAE 54929716.5.0000.5322 e o número de parecer 1.536.703. O sigilo em torno da identidade dos pacientes foi resguardado.

 

Resultados

 

Durante os anos de 2014 e 2015, o laboratório de análises clínicas em questão realizou 730 exames em crianças de 0 a 10 anos. Deste total, 122 (16,7%) apresentaram eritrograma com concentração de hemoglobina inferior a 11 g/dL, sendo consideradas com anemia. Na Tabela 1 pode-se observar as características relativas a idade, sexo, tipo de atendimento e concentração média de hemoglobina, contagem de eritrócitos, hematócrito, HCM, VCM, CHCM e RDW nas crianças com anemia. Na Tabela 2, pode-se observar que não houve variação da concentração de hemo­globina diante das variáveis de idade, sexo e tipo de atendimento das crianças no laboratório.

 

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558-b

 

Na Tabela 3, pode-se observar a classificação labo­ratorial das anemias. Das crianças com anemia analisadas, o tipo de anemia mais frequente foi a microcítica e hipo­crômica, sendo que estas crianças apresentaram simultaneamente elevado nível de anisocitose. As anemias micro­cíticas juntas corresponderam a 69,5% dos casos. Apenas uma criança apresentou anemia macrocítica.

 

558-c

 

Na Figura 1A observa-se que existe uma correlação positiva significativa (r2= 0,4108; p<0,0001) entre a concentração de hemoglobina e os valores de VCM quando analisados apenas os casos de anemias microcíticas. Além disso, na Figura 1B, observa-se uma correlação negativa significativa (r²=0,5547, p<0,001) entre os valores de RDW e os valores de VCM.

 

558-d

 

Figura 1. (A) Correlação entre os níveis de hemoglobina e o VCM em crianças com anemia microcítica (n=100) atendidas. (B) Correlação entre os valores de RDW e os valores de VCM em crianças com anemia microcítica (n=100). VCM: Volume corpuscular médio, RDW: amplitude de distribuição dos eritrócitos. fL: fentolitros, g/dL: gramas/decilitro

 

De todos os eritrogramas analisados, apenas 42 possuíam solicitação do exame complementar ferritina. Na Tabela 4, pode-se observar o perfil do eritrograma de crianças com anemia atendidas ambulatoriamente no laboratório de análises clínicas (n=42) de acordo com três faixas de valores séricos de ferritina: valores menores que 7 ng/dL, grupo considerado como abaixo dos valores de referência de ferritina para crianças, valores de ferritina entre 7 e 50 ng/dL e maiores que 50 ng/dL, os quais são considerados valores normais de ferritina para crianças. Apenas 16,2% das crianças tiveram dosagem diminuída de ferritina, ou seja, estavam com depleção de estoque de ferro instalada. Ainda, não houve diferença estatística nos valores do eritrograma entre os três grupos de valores de ferritina.

 

558-e

 

 

Discussão

 

Neste trabalho foi avaliado o perfil do eritrograma de anemias em crianças de 0 a 10 anos atendidas em um laboratório de análises clínicas do município de Tupanciretã, do noroeste do estado do Rio Grande do Sul. Foi encontrada uma frequência de 16,7% de anemia nas crianças analisadas, utilizando-se como parâmetro para diagnóstico de anemia a concentração de hemoglobina <11 g/dL. Um estudo conduzido em Brasília com crianças estudantes da 1ª série do ensino fundamental encontrou prevalência de anemia semelhante a este trabalho, 12,5%.(13) Por outro lado, em um estudo conduzido em crianças de 0 a 5 anos hospitalizadas em Tubarão, a prevalência de anemia encontrada foi de 31,2%.(14)

Apesar deste estudo ter considerado crianças de 0 a 10 anos, a média de idade das crianças com anemia foi de 1,75 ±1,13 anos, ou seja, a idade em que as crianças fazem a transição entre o aleitamento materno e a alimentação convencional e estão com um alto índice de proliferação celular e de utilização de ferro para as funções metabólicas. Neste sentido, após o nascimento, a criança utiliza o ferro recebido da mãe durante a gestação para suprir suas necessidades corporais. Subsequentemente, o aleitamento materno possui papel fundamental na manutenção das reservas de ferro do organismo infantil, pois possui capacidade de absorção em torno de 50%, enquanto que o leite de vaca, muitas vezes utilizado para substituir o leite materno, possui absorção de apenas 10% a 20% do ferro, favorecendo a instalação da anemia. A substituição do leite materno por alimentos carentes em ferro também é um fator determinante para o desenvolvimento da anemia.(1-6-8)

Corroborando estes dados, recente estudo que analisou a ocorrência de anemia em crianças americanas, mostrou a maior prevalência (13,5%) de anemia em crianças de 1 a 2 anos.(11) Ainda, uma revisão de estudos conduzidos no Brasil entre 1996 e 2007 reportou uma prevalência de 53% de anemia em crianças com 6 a 59 meses de idade, sendo a prevalência mais alta entre crianças de 24 meses.(15,16)

A distribuição dos casos de anemia foi semelhante entre crianças do sexo masculino e feminino, no entanto, houve maior frequência de anemia em crianças atendidas ambulatoriamente. Este resultado pode representar um viés encontrado devido à maior parte dos exames realizados no laboratório ser de origem ambulatorial. Apesar da diferença na frequência de anemia entre os pacientes ambulatoriais e aqueles em internação hospitalar, não houve diferença na média da concentração de hemoglobina entre os dois grupos.

Em relação à classificação laboratorial das anemias, a anemia mais frequente foi a microcítica hipocrômica. A anemia microcítica hipocrômica é uma consequência da deficiência de hemoglobina para formação adequada dos eritrócitos, gerando células de tamanho menor. A deficiência de hemoglobina ocorre principalmente por carências nutricionais (anemia ferropênica) ou por defeitos genéticos associados à produção das cadeias globínicas. Além disso, eventualmente, a anemia da doença crônica pode causar microcitose por prejudicar a disponibilidade de ferro à eritropoiese.(17,18)

Juntamente com microcitose e hipocromia, foi observado um aumento da anisocitose, características típicas da anemia ferropênica.(12-14) Estudo conduzido em crianças de 0 a 5 anos em um hospital de Tubarão também revelou uma maior prevalência de anemias micro­cíticas (55,9%).(14) Em relação às anemias macrocíticas, tanto nosso estudo como o de Carvalho (2010) encontraram uma baxia preva­lência, 0,8% e 0,6%, respectivamente. Este dado sugere que, embora a deficiência nutricional do ferro seja deter­minante na anemia em crianças, a deficiência nutricional da vitamina B12 e ácido fólico não parece ter um papel importante na anemia infantil, visto que a macrocitose não é um achado comum nesta faixa etária.

Além do hemograma, outros exames podem ser realizados na triagem laboratorial das anemias. A dosagem de ferritina é um importante marcador para detecção da queda dos níveis de ferro no organismo, pois é a proteína responsável pelo seu armazenamento e estoque, sendo indispensável em momentos de carência do mineral.(19) Embora seja o exame mais sensível para detectar a depleção dos níveis de ferro no organismo, sendo o primeiro marcador a diminuir na anemia ferropênica, a ferritina pode estar com níveis elevados durante um processo inflamatório ou infeccioso, principalmente sob o estímulo de interleucinas 1 e 6. Desta forma, sugere-se que o metabolismo do ferro seja avaliado através da saturação de ferro.(20)

Quando foi analisado o perfil do eritrograma estrati­ficado por diferentes valores de ferritina, observou-se que apenas sete (16,2%) das crianças tiveram a dosagem de ferritina abaixo do valores de referência. Além disso, não houve diferença nos parâmetros do eritrograma entre os grupos com diferentes concentrações de ferritina. Apesar de nenhuma destas crianças com solicitação de ferritina estar hospitalizada, é possível que possam estar com algum mecanismo inflamatório que esteja influenciando a dosagem de ferritina. Vários estudos têm sugerido que a ferritina, isoladamente, não é um marcador ideal do metabolismo do ferro, devido às interferências analíticas que pode sofrer. Assim, sugere-se a utilização da ferritina concomitante de outros marcadores, como saturação de ferro, capacidade total de ligação ao ferro, receptores de transferrina, entre outros.(20)

Conclusão

 

Neste trabalho, houve um predomínio de anemias com classificação laboratorial compatível com anemia ferro­pênica, ou seja, apresentando microcitose, hipocromia e anisocitose. No entanto, poucas crianças mostraram valores de ferritina diminuídos, evidenciando a necessidade de exames como saturação de ferro para avaliar de maneira mais eficaz o perfil férrico. Além disso, a identificação eficiente das anemias e de seus fatores relacionados pode contribuir de maneira efetiva para o planejamento de prevenção, controle e manejo das crianças que são acometidas por esta síndrome. Além disso, a prevenção da anemia ferropênica e da deficiência de ferro deve ser planejada priorizando-se a educação nutricional e condições ambi­entais satisfatórias.

 

 

Abstract

Objective: Describe the erythrogram profile of anemia diagnosed in children aged 0 to 10 years in a clinical laboratory from Tupanciretã, RS. Methods: Data collection was carried out retrospectively through the selection of laboratory tests of children followed the inclusion criteria: tests of children aged 0 to 10 years with hemoglobin <11 g/dL and performed in the 2014 and 2015 years. Results: Of the 730 tests carried out by the laboratory in children aged 0 to 10 years, 16.7% had hemoglobin <11 g / dL, with an average age of 1.75 ± 1.13 years and 46.7% was male. There was a higher prevalence of hypochromic microcytic anemia with anisocytosis, suggestive of iron deficiency anemia. There was no significant difference in erythrocyte values when they were stratified by different ferritin levels. Conclusion: In this work, a significant percentage of children with anemia was demonstrated in the studied laboratory. Thus, a better identification of anemia and its related factors contribute to the planning of prevention, control and management of children who are affected by this syndrome.

 

Keywords

Anemia; Hemoglobin; Child

 

 

REFERÊNCIAS

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Correspondência

Mariana Migliorini Parisi

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