Personagem da História da Saúde IX: Ignaz Phillip Semmelweis
“O mais alto dever da medicina é salvar a vida humana ameaçada,
e é na especialidade da obstetrícia onde este dever é mais óbvio”
Semmelweis
Ignaz Phillip Semmelweis nasceu em 01 de julho de 1818, em Tabán, uma área de subúrbio à margem direita do rio Danúbio na antiga cidade de Buda (atualmente Budapeste) na Hungria. Nessa época, a Hungria fazia parte do Império Austríaco cuja capital era Viena. Ignaz Semmelweis era o quinto de sete filhos que tiveram Teréz Müller e József Semmelweis. József Semmelweis era um respeitável comerciante que vivia do comércio atacadista de alimentos, especiarias, bebidas e bens de consumo em geral no bairro de Tabán. Ignaz Semmelweis cresceu numa movimentada região de comerciantes de origem germânica onde realizou seus estudos regulares no ginásio católico da cidade.
Entre 1835 e 1837, Semmelweis continuou seus estudos, agora com um viés mais científico, na cidade de Peste, localizada na outra margem do rio Danúbio, realizando o curso de formação erudita e de tradição escolástica conhecido como “Das Sete Artes Liberais” (Septem Artes liberales), composto por disciplinas que versavam sobre ciências naturais e humanidades – lógica, gramática, retórica, aritmética, música, geometria e astronomia, concluído com sua aprovação no exame de proficiência denominado Examen Philosophicum ou Artisterium.
Após seus estudos de formação científica, em Peste, Semmelweis transferiu-se, ainda em 1837, para a Áustria, onde se matriculou no curso de direito da Universidade de Viena, atendendo ao desejo de seu pai, que gostaria de vê-lo formado em advocacia. No ambiente universitário, por razões desconhecidas, ele começou a se aproximar dos alunos do curso de medicina, interagindo com esses estudantes, que o incentivaram a assistir, informalmente, algumas aulas ministradas nas disciplinas de anatomia e patologia. Esse contato fez com que Semmelweis reconhecesse sua verdadeira vocação, mudando, por isso, em 1838, para o curso médico da mesma universidade.
Na Áustria, ele ficou até 1839, quando resolveu voltar para a Hungria e continuar seus estudos na Universidade de Peste. Entretanto, considerando que o curso não tinha a mesma qualidade daquele da universidade austríaca e a impossibilidade de clinicar em todas as regiões do Império, se sua formação fosse concluída fora da Áustria, Semmelweis retornou à Universidade de Viena, em 1841.
Em Viena, Semmelweis teve como preceptores grandes nomes da medicina da época, tais como Joseph Skoda (1805-1881), na clínica médica e semiologia, Ferdinand Karl Franz Ritter von Hebra (1816-1880), na dermatopatologia, e Carl Freiherr von Rokitansky (1804-1878), na anatomia patológica e cirúrgica. Skoda e von Rokitansky, inclusive, foram os fundadores da chamada Moderna Escola Médica de Viena.
Com uma dissertação de conclusão de curso intitulada Tractatus de Vita Plantarum, totalmente escrita em latim moderno, e mostrando grande talento linguístico e estilístico e amplo conhecimento em história natural, Semmelweis formou-se em medicina, em Viena, em 1844. No entanto, em decorrência de seu retorno à Hungria, pelo falecimento de sua mãe, ele não foi diplomado junto com sua turma, vindo a fazê-lo cerca de um mês e meio após a data prevista. Além da morte de sua mãe, Semmelweis perderia também o pai cerca de dois anos depois.
Após sua formatura, interessado em pesquisas na área da anatomia patológica e patologia forense, Semmelweis solicitou ingresso no laboratório de Jakob Kolletschka (1803-1847), um dos discípulos de von Rokitansky. Contudo, seu pedido não foi aceito e maiores explicações não foram dadas. Apesar da negação de Kolletschka, Semmelweis continuou estudando assuntos médicos de seu interesse, candidatando-se, em seguida, para o cargo de médico assistente no serviço de Skoda, que trabalhava, na época, com semiologia e semiotécnica do aparelho respiratório, buscando estabelecer correlações clínicas. Entretanto, como o cargo já havia sido preenchido, seu pedido também foi negado. Com essas duas negativas e uma grande decepção, ele então optou pela área de ginecologia e obstetrícia, consideradas especialidades médicas pouco prestigiosas no século XIX, pelo fato de a maioria das parturientes terem seus filhos em casa e com o auxílio de parteiras.
Para se candidatar ao Serviço de Obstetrícia da Maternidade do Hospital Geral de Viena, era necessário, primeiramente, obter o título de mestre em obstetrícia. Desse modo, Semmelweis submeteu-se ao treinamento e ao exame de proficiência, sendo aprovado e obtendo seu título em 1844. Com essa certificação, ele poderia candidatar-se à vaga de assistente de Johann Klein (1788-1856), chefe do Serviço de Obstetrícia da Maternidade. Em 1846, Semmelweis foi nomeado e tomou posse como médico assistente de obstetrícia. No entanto, no período compreendido entre 1844 e 1846, enquanto aguardava a nomeação, recebeu a permissão de von Rokitansky para frequentar seu laboratório e dissecar cadáveres de mulheres que haviam morrido de doenças ginecológicas ou durante as cirurgias. Nesse tempo, Semmelweis ganhou grande experiência nas técnicas de dissecação e nos métodos de observação e análise de diferentes patologias.
Importa mencionar que o Hospital Geral de Viena (Wiener Allgemeine Krankenhaus) teve sua criação determinada pela imperatriz Maria Teresa e seu projeto previa a construção de um enorme hospital na capital com prédios e alas de grandes dimensões. Nesse hospital, entre outras unidades, estava prevista a construção da maior maternidade da Europa. Com muito empenho e dedicação, a construção do hospital foi levada a cabo pela família imperial e, em 1784, dois anos após a morte da imperatriz, o hospital foi inaugurado. O staff do novo hospital foi cuidadosamente selecionado com a incorporação dos mais importantes nomes da medicina não só austríaca com europeia. Muitos médicos foram mandados ao exterior para estudo e formação em novos procedimentos e metodologias. O Hospital Geral de Viena se tornou, assim, o que havia de melhor em termos de tecnologia médica disponível no final do século XVIII e no século XIX.
Relativamente à maternidade, nesse período de inauguração e nos anos seguintes, as taxas de incidência de febre puerperal, um grande problema médico da época, eram extremamente baixas, oscilando entre 0,84% e 1%. Esses baixos percentuais eram fundamentalmente decorrentes da precisa e boa gestão de seu primeiro diretor, Johann Boër (1751-1835), que se manteve à frente do serviço por mais de trinta anos. Em 1823, contudo, com a entrada de Johann Klein na chefia do serviço, uma profunda mudança na forma de aplicação dos protocolos médicos foi procedida, o que levou ao imediato aumento dos percentuais de infecção puerperal, que atingiram taxas de 7,45% e que se mantiveram sempre elevadas por todo o período em que Klein esteve na chefia. Nessa maternidade, havia dois diferentes serviços obstétricos, a chamada primeira enfermaria e a segunda enfermaria, criada por Klein, em 1834. Na primeira enfermaria trabalhavam os médicos obstetras e eram treinados os estudantes de medicina da Universidade de Viena e de outras instituições europeias. Na segunda enfermaria trabalhavam as parteiras que, além de auxiliarem as parturientes a darem à luz, ensinavam e treinavam aquelas mulheres que desejavam aprender esse ofício. Interessante notar que as taxas de febre puerperal da segunda enfermaria eram histórica e consistentemente bem mais baixas do que aquelas observadas na primeira enfermaria.
Em 1846, quando Semmelweis finalmente assumiu suas funções na primeira enfermaria, ele se deparou com taxas de infecção puerperal que variavam de 10% a 18%, o que contrastava com aquelas observadas na segunda enfermaria, as quais oscilavam entre 1,5% e 4%. Esses elevados percentuais da primeira enfermaria perturbaram enormemente o jovem médico, que passou a se interessar e a estudar cada vez mais o assunto. Contudo, seu trabalho e seus estudos iniciais tiveram que ser suspensos porque o médico assistente que o precedera na vaga para a qual ele havia feito a seleção, decidiu permanecer na maternidade. Então, depois de quatro meses, Semmelweis teve que abdicar do cargo. Apesar de ausente da maternidade, ele continuou a investigar criteriosamente o problema da febre puerperal e de outras patologias femininas, buscando construir um entendimento mais sólido sobre a etiologia e a fisiopatologia dessas enfermidades. Em 1847, com a saída inesperada do médico que o precedera na vaga de assistente, Semmelweis pôde reassumir suas atividades na primeira enfermaria e retomar seu trabalho e pesquisas sobre a febre puerperal nas enfermarias da maternidade.
Para Semmelweis, as teorias que eram utilizadas para explicar as causas da febre puerperal pareciam desconectadas com a realidade dos fatos e careciam muitas vezes de lógica conceitual. Dentre essas, havia as que afirmavam que a origem da doença se devia a fatores emocionais como o medo que as parturientes sentiam dos sacerdotes que vinham ministrar os sacramentos a mulheres moribundas ou a vergonha que as parturientes sentiam pela presença masculina dos médicos e estudantes nas enfermarias. Além disso, a posição – decúbito dorsal ou lateral – tomada pelas parturientes no momento de dar à luz, uso de fórceps, dietas inadequadas, acometimento por gripe ou retorno precoce da sala de parto para o leito nas enfermarias eram também propostas de etiologias. Outras causas incluíam, ainda, o distúrbio de humores associado a alterações das condições gastrobiliosas, alteração do sangue produzida pelo esperma durante a concepção, a supressão da hemorragia pós-parto ou o lóquio interrompido que causaria apodrecimento do útero e invasão da infecção para a corrente sanguínea e para os tecidos e órgãos internos e o acúmulo de “leite” no organismo das mulheres lactantes, observado em seus abdômens quando necropsias eram procedidas, mas que, na verdade, eram decorrentes de supurações originadas pela doença.
Um outro ponto de vista amplamente aceito, que tentava explicar a origem da febre puerperal, considerava que havia influências epidêmicas associadas com miasmas e alterações atmosférico-cósmico-telúricas que disseminariam a doença. Outra ideia vigente era a do contágio, que ocorreria devido às más condições de higiene das salas de parto. A superlotação e a estagnação do ar, com consequente contágio por via aerógena, também eram causas pensadas. A proposição de que os médicos e enfermeiras obstetras transportavam a doença para as parturientes, porque estavam carregados de uma “atmosfera de infecção” adquirida por contato prévio com pacientes enfermas, era também compartilhada.
A despeito das várias hipóteses, uma realidade era incontestável: a primeira enfermaria apresentava taxas de mortalidade inaceitáveis e algo necessitava ser feito. Semmelweis, então, mesmo não fazendo ideia do que causava a febre puerperal, deu início a um meticuloso estudo, compilando informações, comparando frequências, quantificando e tabelando dados de séries históricas, na tentativa de provar a veracidade das diferentes teorias. Desse modo, cada uma dessas teorias, muitas delas já relatadas na literatura “científica” da época, tiveram suas evidências analisadas, sendo excluídas aquelas que não se sustentavam, de fato, “cientificamente”.
Assim, alterações emocionais das parturientes, posições tomadas na hora do parto, influências climáticas e sazonalidade, clínica prévia das pacientes, alimentação e dieta, traslados intra-hospitalares, lotação excessiva e má ventilação das enfermarias não se mostraram suficientemente robustos nos estudos levados a cabo por Semmelweis. No entanto, uma situação específica, observada em suas pesquisas, chamou a sua atenção: o fato de que mulheres que tinham seus filhos em casa ou na rua raramente apresentavam sintomas de febre puerperal. Isso o fez pensar que as causas da doença, efetivamente, pertenciam ao ambiente hospitalar e, mais precisamente, à primeira enfermaria da maternidade, já que as taxas da enfermaria onde trabalhavam as parteiras eram desconcertantemente reduzidas. Com isso em mente, Semmelweis limitou suas buscas e descartou, definitivamente, as hipóteses que não pudessem ser aplicadas à enfermaria dos médicos.
Para tentar elucidar, então, a origem da febre puerperal, Semmelweis valeu-se de um conjunto de observações por ele sistematizadas que, diferentemente daquelas feitas por outros pesquisadores, caracterizavam-se por serem verificáveis por qualquer investigador que avaliasse, de forma atenta e objetiva, as particularidades e condições existentes na primeira e na segunda enfermarias. A partir das publicações de Semmelweis sobre a etiologia e a profilaxia da febre puerperal, essas observações podem ser assim sumarizadas e revisitadas:
Observação 01: Na maternidade de Viena existiam lado-a-lado duas enfermarias exatamente iguais onde ocorriam mais ou menos o mesmo número de partos, cerca de 3.500 nascimentos anualmente. A diferença mais notável era aquela relacionada ao staff. Enquanto que na primeira enfermaria trabalhavam obstetras, na segunda enfermaria trabalhavam parteiras. Além das equipes de trabalho distintas, as duas enfermarias exibiam profundas diferenças nas estatísticas anuais de mortalidade obstétrica. A primeira enfermaria apresentava taxas em torno de 680 mortes/ ano e segunda enfermaria exibia um décimo disso, ou seja, cerca de 60 mortes/ ano.
Observação 02: A taxa de mortalidade obstétrica parecia não estar relacionada com sazonalidades ou clima conforme mostravam os dados estatísticos dos casos de febre puerperal consolidados ao longo do tempo.
Observação 03: Apesar das elevadas taxas de febre puerperal na primeira enfermaria, partos feitos fora do hospital e assistidos tanto por médicos quanto por parteiras tinham taxas de mortalidade obstétrica muito reduzidas ou mesmo inexistentes.
Observação 04: O grau de traumatismo cervical e/ ou uterino ocorrido durante o parto, normalmente prolongado, parecia aumentar as chances do desenvolvimento de febre puerperal.
Observação 05: A morte de uma parturiente por febre puerperal poderia ser seguida da morte do recém-nascido por enfermidade com características clínicas semelhantes, o que era comprovado pelos achados de necropsia nos corpos da mãe e do filho mortos.
Observação 06: Algumas pacientes acompanhadas na primeira enfermaria desenvolviam a febre puerperal ainda durante a gravidez.
Observação 07: A febre puerperal teve considerável aumento quando os médicos obstetras passaram a ser treinados em cadáveres e não mais em manequins.
Observação 08: O fechamento da maternidade por certo tempo reduzia, posteriormente, a taxa de mortalidade obstétrica. Partos feitos em outros pavilhões do hospital durante esse período ocorriam sem mortalidade.
Observação 09: As próprias pacientes associavam a mortalidade à assistência médica na primeira enfermaria.
Com esse arcabouço teórico, Semmelweis entendeu que a febre puerperal não poderia ser causada por miasmas ou epidemias, mas a etiologia ou o fator desencadeador da doença na primeira enfermaria ainda era completamente obscuro. Apesar disso, alguns conceitos começavam a fazer sentido para ele na história natural da patologia, entre esses, o caráter endêmico e o contágio direto. A confirmação dessas suspeitas vieram, infelizmente, em circunstâncias trágicas. Em 1847, o médico anatomo¬patologista Jacob Kolletschka, colega e amigo de Semmelweis, durante uma necropsia em uma parturiente que havia falecido de febre puerperal, feriu-se acidentalmente com o bisturi de um estudante, vindo a desenvolver uma síndrome extremamente semelhante a essa enfermidade, levando-o à morte em poucos dias. Ao ler o laudo da autópsia de Kolletschka, Semmelweis pôde observar que as alterações anatômicas e patológicas eram da mesma ordem daquelas encontradas em mulheres falecidas com febre puerperal. O contexto em que Jacob Kolletschka falecera, então, fizera com que Semmelweis conectasse os fatos.
Semmelweis conseguiu perceber que Kolletschka morrera porque algo havia sido inoculado em seu corpo. Ele assumiu que o que quer que tivesse sido deveria ter vindo do cadáver que estava sendo necropsiado. Semmelweis, a partir disso, conjecturou que a causa mortis de Jacob Kolletschka era a mesma daquela observada nas mulheres com febre puerperal, que existia uma partícula cadavérica que era a origem dessas mortes e que as partículas cadavéricas estariam presentes nas mãos, paramentos e instrumentais de médicos e residentes. A hipótese final de Semmelweis era a de que havia uma enfermidade endêmica infeciosa causada pela transmissão (ou reabsorção) entre indivíduos de uma matéria cadavérica ou matéria orgânica pútedra que se disseminava pelo sangue. Essa hipótese se tornou o centro de sua doutrina (Lehre) sobre a febre puerperal.
Com base nessa crença, Semmelweis começou a explicar a epidemiologia da febre puerperal nas duas enfermarias. Como os médicos e estudantes faziam seus estudos anatomopatológicos antes de visitarem as pacientes, eles carreavam as partículas cadavéricas para a primeira enfermaria, contaminando com as mãos as mulheres que eram examinadas, bem como seus fetos. Ele observou, ainda, que essas partículas cadavéricas poderiam também se originar de secreções de um útero doente ou de supurações em qualquer outro órgão e, do mesmo modo, poderiam ser transmitidas pelas mãos de médicos, estudantes e enfermeiras para as mulheres saudáveis na sequência dos atendimentos. No caso da segunda enfermaria, tendo em vista que as parteiras não faziam dissecações, as taxas da doença eram reduzidas ou nulas pela menor transmissi¬bilidade. Somado a isso, fazia parte do protocolo de assistência ao parto a utilização de toalhas limpas e água morna pelas parteiras.
Assumindo sua hipótese como verdadeira, Semmelweis propôs o controle da febre puerperal pela eliminação da matéria cadavérica. Tendo em vista que diversas substâncias já eram utilizadas como rotina em medicina para a limpeza de utensílios e instrumentais, ele considerou a possibilidade de empregar soluções de cloreto para a higienização das mãos dos médicos, a fim de retirar as partículas cadavéricas que, eventualmente, estivessem presentes. Assim, em maio de 1847, Semmelweis determinou que todos os médicos que entrassem na primeira enfermaria lavassem as mãos e escovassem as unhas com uma solução higienizadora a base de hipoclorito (Licor de Labarraque) colocada próximo à porta de entrada. Foi recomendado, inclusive, que a jarra contendo essa solução fosse segurada por uma outra pessoa, que não o próprio médico, para que as mãos fossem lavadas, bem como que a água recolhida na bacia abaixo da jarra não fosse reutilizada, mas sim descartada. Para a secagem das mãos, toalhas limpas deveriam ser utilizadas. Essa higienização também deveria ser feita antes e após cada exame obstétrico.
Com esses procedimentos, resultados positivos puderam ser percebidos em pouco tempo. Em junho de 1847, a taxa de mortalidade caíra para 3%, percentual comparável ao da segunda enfermaria. Em 1848, nos primeiros meses do ano, a taxa de mortalidade foi de 1,2% e 1,3%, na primeira e na segunda enfermarias, respectivamente. No final desse mesmo ano, nenhuma morte foi registrada.
Apesar da doutrina de Semmelweis sobre a etiologia e a profilaxia da febre puerperal ter se mostrado exitosa, essa história triunfalista acabou no ano de 1848. Alguns fatores para a sua derrocada estão associados a questões científicas e políticas. Ele não realizou experimentos comprobatórios adequados, como reproduzir clínica e anatomo-patolo¬gicamente a enfermidade em animais de laboratório, não utilizou recursos de microscopia e não publicou seus resultados em revistas médicas. Isso fez com que nem todos os membros da comunidade acadêmica dessem apoio à sua doutrina. Ao contrário, houve o surgimento de muitos adversários. Uma das causas dessa resistência era exatamente a obscuridade do termo “partícula cadavérica”, já que não se conhecia ainda a existência das bactérias e se acreditava em outras etiologias. Além disso, muitos médicos consideravam intolerável que a culpa pelas mortes de suas pacientes recaíssem sobre eles.
Em termos políticos, com sua ascensão, Semmelweis criou problemas de relacionamento dentro do Hospital Geral de Viena, principalmente com o chefe do serviço de obstetrícia, Johann Klein, que via nele um risco à posição que ocupava na instituição. Assim, Klein foi um importante crítico do trabalho e da pessoa de Semmelweis. Uma outra situação importante foi seu engajamento no movimento europeu conhecido como Revoluções de 1848 ou Primavera dos Povos. Esse foi um movimento liberal, democrático e nacionalista contra as monarquias e suas políticas econômicas, sociais e culturais. Semmelweis se alistou na Liga Acadêmica e participou dos movimentos reformistas que surgiram dentro da Universidade de Viena. Em novembro de 1848, a Áustria venceu a revolução, o que trouxe para ele dificuldades com diversas personalidades universitárias, particularmente com Klein, que era um reacionário. Ao final do período como médico assistente na obstetrícia, nesse mesmo ano de 1848, seu contrato não foi renovado e a postulação de uma nova candidatura não foi aceita.
Em 1850, Semmelweis candidatou-se, pela segunda vez, à vaga de Privatzdozent da Universidade de Viena, sendo seu pedido aprovado pelo Colegiado. No entanto, inconformado pelas restrições que lhe foram impostas, em relação ao trabalho com cadáveres, ele abandonou a universidade e a cidade de Viena, regressando à Hungria. Esse abandono inesperado causou insatisfação e revolta, inclusive entre seus amigos e apoiadores que acreditavam em sua doutrina e o incentivavam a completar e a publicar seu experimento em literatura médica.
Ao chegar na Hungria, ele encontrou um país sob repressão dos austríacos após a derrota nas Revoluções de 1848. Buda e Peste estavam sendo controladas por interventores enviados de Viena. A universidade de Peste estava também sob intervenção e muitos professores haviam sido demitidos ou presos, as sociedades médicas haviam sido fechadas e a única revista científica havia sido proibida de circular. Todos esses acontecimentos agravaram ainda mais a baixa qualidade do ensino médico e, particularmente, o obstétrico oferecido na Hungria. Nesse ambiente político desfavorável, Semmelweis entrou em contato com uma realidade médica difícil, na qual ocorria todo tipo de infecção hospitalar, tanto de origem clínica quanto cirúrgica.
A despeito de todos os problemas políticos, entre 1850 e 1851, Semmelweis se candidatou ao cargo de Privatzdozent na Universidade de Peste e a diretor da Enfermaria Obstétrica do Hospital São Roque, sendo esses dois pedidos aceitos pelo Governo Imperial da Áustria. Em 1855, pleiteou o cargo de Professor Catedrático de Obstetrícia Teórica e Prática na Universidade de Peste, sendo nomeado pelo Imperador. Paralelamente a suas atividades de docência e de direção no Hospital São Roque, ele atuava como médico particular. Agora com recursos financeiros, ele se casou, em 1856, com Maria Wiedenhoffer (1837-1910), filha de um próspero comerciante de origem alemã, com quem teve cinco filhos.
Na Hungria, Semmelweis também angariou muitas inimizades pelos lugares por onde passou, pela incompreensão geral acerca de sua doutrina sobre a febre puerperal, apesar do sucesso de sua aplicação nas instituições húngaras, e por sua manifesta impaciência, intempestividade e agressividade. Na universidade lutou contra o antagonismo dos médicos, enfermeiras e professores, bem como contra os obstáculos criados pela administração central para fornecer suprimentos e equipamentos.
Embora tenha atraído para si um grande número de detratores na Áustria e na Hungria, Semmelweis sempre foi incansável na defesa de sua doutrina. No entanto, percebeu que, como sempre falaram seus amigos de Viena, ele precisava escrever e publicar os fundamentos de sua teoria, a fim de reduzir a incompreensão universal sobre seus princípios. Desse modo, entre 1860 e 1861, ele publicou, em alemão, o livro “A Etiologia, o Conceito e a Profilaxia da Febre Puerperal” (Die Ätiologie, der begriff und die Prophylaxis des Kindbettfiebers) com 543 páginas. Na verdade, esse livro era constituído de duas partes, a primeira consistia de um relato minucioso da doutrina e seu desenvolvimento e a segunda se caracterizava, basicamente, por ataques aos críticos de sua teoria e reconhecimentos àqueles que a apoiavam. Contudo, a forma como este livro foi escrito tornou-o de leitura árida e, em certos pontos, ininteligível. Ao mesmo tempo, Semmelweis também passou a participar de reuniões em sociedades científicas com o objetivo de divulgar seu trabalho e a escrever cartas acusatórias para os principais nomes da medicina europeia da época.
Infelizmente, a publicação de seu livro não foi bem recebida pela comunidade de médicos e obstetras da época, o que fez com que Semmelweis, partisse para uma guerra insana na defesa de suas crenças, atacando os grandes luminares da medicina. Ele se mostrou descontrolado e confuso com a péssima receptividade do livro. As pessoas de seu círculo de amizade começaram, então, a perceber que seu comportamento vinha se alterando drasticamente, tornando-se instável, sombrio e irritadiço. Ocorriam mudanças repentinas de humor, indo da cólera à letargia. Ele passou a não cuidar mais de suas finanças e aparência física. Semmelweis tornara-se outra pessoa. Por todos os comportamentos anormais e antissociais que começou a exibir, ficou claro que ele sofria de uma enfermidade mental que vinha se agravando. Em decorrência disso, em 1865, foi internado em casa, mas como cada vez mais necessitava de cuidados psiquiátricos, sua esposa decidiu levá-lo, com ajuda de parentes e amigos, para um sanatório público em Viena. No dia em que foi internado, por estar agitado e tentar fugir, Semmelweis foi contido de forma extremamente violenta, a ponto de sua esposa, posteriormente, ser impedida de visitá-lo.
Após duas semanas da internação, sua família foi notificada de que no dia 13 de agosto de 1865 ele havia falecido. Seu corpo foi levado, então, para o laboratório de anatomia patológica do Hospital Geral de Viena, onde foi necropsiado para elucidação de sua morte. Na realidade, a causa da morte de Semmelweis é ainda algo obscura. Inicialmente, sua esposa foi informada de que um ferimento no dedo da mão direita, decorrente de um acidente ocorrido em uma operação ginecológica recente, teria infeccionado e se disseminado através do sangue, levando à ideia de uma morte pelo agente da febre puerperal, o que poderia ser considerado uma trágica ironia. O laudo do anatomista da época, contudo, mostrou, ao mesmo tempo, alterações compatíveis com uma morte por agressão ou espancamento, o que parece ser verdade, tendo em vista às imagens fotográficas e de raio X feitas, em 1963, quando seu corpo foi exumado e transladado para o museu em sua homenagem na Hungria. De fato, oficialmente, também em conformidade com o laudo do anatomista, a causa mortis foi uma “Paralisia Cerebral” em decorrência de atrofia cerebral e de hidrocefalia crônica. Para explicar a deterioração mental que Semmelweis vinha apresentando, seus biógrafos especulam que ele deveria sofrer de sífilis terciária ou do Mal de Alzheimer.
O grande infortúnio de Semmelweis foi que nem a Teoria Microbiana das Doenças e nem o nexo entre os processos inflamatórios e supurativos e a atividade dos microrganismos tinham sido ainda estabelecidos e comprovados, o que só viria a acontecer anos depois de sua morte com os estudos seminais de Louis Pasteur (1822-1895), Robert Koch (1843-1910) e Joseph Lister (1827-1912), entre outros bacteriologistas da segunda metade do século XIX. Com relação à etiologia da febre puerperal, foi Jacques Amédée Doléris (1852-1938), um discípulo de Pasteur, quem demonstrou, em 1880, que a doença era causada por bactérias do gênero Streptococcus. Em decorrência de todas essas pioneiras descobertas da microbiologia, o simples ato da lavagem das mãos proposto por Semmelweis tornou-se a alma mater do controle das infecções.
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Paulo Murillo Neufeld, PhD
Editor-Chefe da Revista Brasileira de Análises Clínicas