Personalidades da História da Saúde II: Hipócrates

Personalities of the History of Health II: Hippocrates

Quem foi Hipócrates? A eterna pergunta sobre o Pai da Medicina. As únicas fontes antigas que mencionam o nome de Hipócrates, e que foram escritas perto do período de sua vida, são duas passagens de Platão. Uma delas é em Protágoras e a outra em Fedro. Na geração seguinte de filósofos, existe um breve comentário de Aristóteles, em A Política, que fala sobre a morte de Hipócrates, e uma outra menção a ele nos escritos médicos de Meno.

Em Protágoras, é atestado que Hipócrates era um nativo da ilha grega de Kos e que era aparentemente bem conhecido em sua época. Além disso, em Fedro é estabelecido que Hipócrates praticava medicina baseada em um princípio organístico. A ele é atribuído o princípio de que a natureza de qualquer componente ou órgão só pode ser adequadamente compreendida após análise cuidadosa do todo ao qual ela pertence. Em Fedro, a discussão gira em torno de uma analogia socrática entre a retórica e a medicina.

Em A Política, Aristóteles menciona Hipócrates pelo nome, o descreve como um grande médico e sugere que ele teria pequena estatura. Em seu ponto de vista, a grandeza de Hipócrates provinha de sua excelência como um médico, que cumpriu bem o seu dever.  Ainda para Aristóteles, a importância de Hipócrates não era apenas devido a seu nascimento nobre ou riqueza ou tamanho físico, mas sim devido ao seu intelecto.

Aluno de Aristóteles, Meno, que escreveu um compêndio doxográfico do início da medicina grega, afirma que Hipócrates sustentava uma teoria sobre a doença, na qual a comida mal digerida ou a comida imprudentemente selecionada produz ar pútrido dentro do corpo, que invade os órgãos e tecidos, causando a doença. Essa teoria de putrefação é atribuída a Hipócrates, no chamado Anonymous Londinensis, que contém também alguns dos escritos médicos de Meno.

Para seus contemporâneos gregos, Hipócrates era considerado um médico famoso, mas ele era um entre muitos. Por exemplo, em seu histórico médico, Meno discute vinte médicos gregos famosos. Hipócrates não é apontado como mais importante do que os demais. Além disso, Platão refere-se a uma série de outros médicos em seus diálogos e ele parece sugerir que esses eram quase tão famosos e bem conhecidos por seus leitores quanto Hipócrates.

Com a crescente reputação de Hipócrates entre os seus muitos discípulos médicos, os estudiosos da biblioteca de Alexandria, no Egito, provavelmente, em algum momento durante o século IV a.C., começaram a buscar e a montar textos médicos associados com os ensinamentos de Hipócrates, juntamente com o material de outros médicos famosos de diversos centros de ensino gregos. É possível que eles tenham começado com um número razoável de manuscritos de autoria anônima dos séculos V e IV. Com o tempo, esses textos compilados foram sendo creditados, efetivamente, ao médico de Kos, no mais impressionante texto médico da Antiguidade, o Corpus Hippocraticum. Se o âmago da Coleção de Hipócrates, de fato, se formou nessa ou em alguma direção relacionada, talvez tenha continuado a aumentar devido à compilação e incorporação incessantes de novos textos médicos de outras autorias. Assim, pode-se imaginar que, nos séculos seguintes, o nome de Hipócrates tenha ultrapassado a fama e o status da vida já proeminente que o verdadeiro Hipócrates tinha vivido.

Somado a isso, devem ser incluídos três situações fortuitas relacionadas com a fama de Hipócrates. Em primeiro lugar, os romanos do período imperial reverenciavam a Grécia do século V como a idade de ouro. Escritores gregos e pensadores daquele período eram considerados incomparáveis pela maioria dos intelectuais romanos. Esse tipo de avaliação romana romantizada da idade de ouro grega, sem dúvida, aumentava ainda mais a fama de Hipócrates. Hipócrates era, afinal, o mais conhecido de todos os médicos gregos do século V, na Roma de Nero. Em segundo lugar, enquanto o próprio Galeno questionou a autenticidade de alguns dos manuscritos de Hipócrates, ele, pessoalmente, reverenciou Hipócrates como o médico ideal. Isso foi realmente providencial. O aval pessoal de Galeno não poderia ter trazido para o nome de Hipócrates uma certificação mais duradoura e poderosa de seu valor por séculos a frente. Em terceiro lugar, não se pode negligenciar que os valores éticos expressos no Juramento de Hipócrates se coadunavam, em muitos aspectos, com aqueles associados à ética da vida humana, que eram defendidas pelo cristianismo. A aceitação de grande parte do Juramento, popularmente creditado a Hipócrates, pelos primeiros padres da igreja, contribuiu bastante para sustentar sua lenda.

Na realidade, dessa lenda, o que se sabe de mais concreto é que Hipócrates nasceu na ilha de Kos, que está localizada no mar Egeu, perto da costa da atual Turquia, entre os anos de 469 a 460 a.C. Sua morte parece ter ocorrido entre os anos de 399 a 370 a.C, em Tessália, sendo enterrado, todavia, perto de Lárissa, no continente grego. Sabe-se ainda que era filho de Heraclides e tinha o mesmo nome de seu avô paterno. Heraclides era um asclepíada, ligado à seita de médicos-sacerdotes que cultuavam o semideus Asclépio/ Esculápio e cuja prática se baseava no sobrenatural. Com essa origem familiar, é possível que Hipócrates tenha tido sua iniciação à medicina através de seu pai médico. De fato, posteriormente, estudou medicina e filosofia no Asclepeion de Kos, um templo de cura consagrado a Asclépio. No entanto, a partir de uma reação frente às ideias teúrgicas aceitas pelos médicos de sua época, rompe com essa proposta, fundando uma medicina menos mágica e mais naturalista. Nesse momento, passa a exercer uma medicina itinerante, viajando pela Grécia e Egito. Em suas viagens, entra em contato com outras escolas médicas, complementando seus conhecimentos e agregando mais técnica à medicina que praticava. Com o grande conhecimento acumulado, Hipócrates passou também a ensinar medicina a discípulos de diferentes lugares, em troca de pagamento.

Tendo em vista suas ideias naturalistas acerca da medicina e seu contato com outras escolas médicas, Hipócrates profere sua sentença revolucionária: Não há nenhuma necessidade da invocação de deuses para explicar a saúde e a doença do homem. Com base nessa assertiva, se fundamenta toda a medicina hipocrática. Na realidade, utilizando a razão, Hipócrates tenta construir uma medicina lógica que dê explicações racionais para os sintomas das enfermidades. Como ponto de partida de sua medicina, está a observação do doente. Para Hipócrates, nada pode substituir os dados clínicos. A partir de Hipócrates, o conhecimento médico transformou-se numa ciência sistemática, o que permitiu a análise e a interpretação dos diferentes quadros mórbidos, sem a inspiração divina e utilizando apenas a capacidade intelectual do médico.

Toda a Teoria Hipocrática só pôde ser construída em função das mudanças de paradigmas filosóficos ocorridas na Grécia antes do nascimento de Hipócrates. A ideia de fenômeno natural surge com os filósofos pré-socráticos que introduzem a noção de natureza (physis), ordem natural (cosmos) e lei natural (nomos). Esses conceitos, ainda no período pré-socrático, são também estendidos ao ser humano em todos os âmbitos de sua vida. Utilizando esse arcabouço filosófico, então, Hipócrates criou uma doutrina lógica da doença.

Adepto da patologia humoral criada por Pitágoras e Alcmeão e da teoria dos quatro elementos da natureza (fogo, ar, água e terra) estabelecida por Empédocles, Hipócrates desenvolveu, a partir de suas observações clínicas, a Teoria dos Quatro Humores. Essa teoria afirma que existem quatro substâncias (bile amarela, bile negra, fleuma e sangue) que compõem o organismo dos seres humanos. O equilíbrio e o desequilíbrio desses quatro humores redundam em saúde e doença, respectivamente.

Cada um dos quatro humores está relacionado a um dos elementos da natureza (physis). Desse modo, a bile amarela está associado ao fogo, a bile negra está associada à terra, a fleuma está associada à água e o sangue está associado ao ar. Centros de controle em diferentes órgãos coordenam essas substâncias no corpo humano. Assim sendo, a bile amarela é regulada pelo fígado, a bile negra é regulada pelo baço, a fleuma é  regulada pelo cérebro e o sangue é regulado pelo coração.

Além disso, os humores representam também alguns dos componentes do coágulo sanguíneo, um estado determinado de temperatura e as estações do ano. Nesse sentido, a bile amarela representa o soro sanguíneo e é quente e seca e aumenta no verão, a bile negra representa a parte escura do coágulo e é fria e seca e aumenta no outono, a fleuma representa a fibrina e é fria e úmida e aumenta com o inverno e, por fim, o sangue representa a parte vermelha do coágulo e é quente e úmido e aumenta na primavera.

Uma correlação entre os humores e os temperamentos humanos foi ainda estabelecida.  Nessa correlação, o temperamento colérico domina a bile amarela, o temperamento melancólico domina a bile negra, o temperamento fleumático domina a fleuma e temperamento sanguíneo domina o sangue.

Os textos de Hipócrates sobre medicina naturalista foram compilados, juntamente com diversos textos de outros autores anônimos, na obra Corpus Hippocraticum, composto por cerca de 72 livros e 59 tratados, que versavam, com maior ou menor profundidade, sobre anatomia, fisiologia, patologia geral e aplicada, terapêutica, prognóstico e diagnóstico, cirurgia, gineco-obstetrícia, doenças mentais e ética. De nota, devem ser citados ainda Os Aforismos, além do já mencionado Juramento Hipocrático. Importa mencionar também que a característica principal da obra de Hipócrates é a introdução de uma metodologia ao exercício médico.

Em resumo, a medicina hipocrática utiliza três paradigmas com alto grau de interrelacionamento. O paradigma clínico, que vê o doente como realidade essencial da medicina, o paradigma patológico, que interpreta a enfermidade como um desequilíbrio, e o paradigma que promove a physis como força que preserva o equilíbrio cósmico e individual e leva à cura.

 

BIBLIOGRAFIA

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Paulo Murillo Neufeld, PhD                                        

Editor-Chefe da Revista Brasileira de Análises Clínicas