Correlação de alterações hematológicas em doenças parasitárias

Correlation of hematological changes in parasitic diseases

 

Rafael Souza Antunes1

Amanda Ferreira de Morais1

1Farmacêutico. Mestre/Universidade Federal do Goiás (UFG). Goiânia-GO, Brasil.
2Graduada em Biomedicina. Faculdade Anhanguera de Anápolis. Anápolis-GO, Brasil.

Instituição: Setor de Parasitologia Humana e Hematologia do Laboratório Sabin de Análises Clínicas – Núcleo Técnico Operacional (NTO). Brasília-DF, Brasil.

Recebido em 12/12/2018
Artigo aprovado em 08/08/2019
DOI: 10.21877/2448-3877.201900808

 

INTRODUÇÃO

O hemograma é o exame complementar mais requerido nas consultas médicas, o que revela sua preferência universal como coadjuvante indispensável no diagnóstico das doenças em geral.(1-3) Vale ressaltar que os equipamentos atuais utilizam metodologias combinadas para diferenciação e quantificação celular, trabalhando com menor volume de amostra e analisando uma maior quantidade de parâmetros em menor tempo. Nos últimos anos houve um grande desenvolvimento no diagnóstico laboratorial de doenças hematológicas, iniciando-se assim estudos sobre as diferentes metodologias empregadas para realização do hemograma.(2,4)

A infecção parasitária é caracterizada como uma doença onde o parasito passa uma de suas fases do ciclo biológico no trato gastrointestinal, ocasionando ou não alguma patologia.(5) Seus agentes causadores são geralmente helmintos e/ou protozoários, que trazem aos seus hospedeiros sintomas de diarreia, dores abdominais, perda de sangue nas fezes, emagrecimento, alterações de humor, ansiedade, agitação e até mesmo alterações nos índices hema­tológicos, causando principalmente anemia e eosino­filia.(6)

A anemia é uma das complicações mais frequentes nas doenças parasitárias, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS),(7) sendo causada por uma hemoglobina circulante com valor abaixo dos níveis normais estipulados por idade, sexo, estado fisiológico e altitude.(8) Na rotina laboratorial é possível identificar e avaliar a correlação entre a presença de parasitos e o diagnóstico de anemias. Por exemplo, nas anemias carenciais, o seu desenca­dea­mento é referente à deficiência de ferro, em decorrência de ação espoliativa que alguns parasitos podem exercer sobre o hospedeiro.(9) Outro fato observado é que a infes­tação pode afetar o estado nutricional do indivíduo por meio da perda de apetite, má digestão e absorção intestinal. Fazem parte desse grupo de risco as gestantes, as crianças e os adolescentes, devido ao aumento da necessidade de ferro causada pela rápida expansão de tecidos e massa muscular.(10)

O aumento de leucócitos totais (leucocitose) relacionado com a expansão do número de eosinófilos sanguíneos em um leucograma também pode ser característico de infecções parasitárias.(11)

Partindo destes princípios, o objetivo deste estudo foi avaliar as possíveis alterações hematológicas através da confiabilidade dos resultados de hemogramas automa­tizados (tecnologia Sysmex XS 1000i®) em indivíduos com infecções parasitárias intestinais.

 

 MATERIAL E MÉTODOS

 

Local e população de estudo

O trabalho foi realizado no município de Anápolis, que está localizado na região centro-oeste de Goiás, Brasil, com uma área territorial de 933.156 km2, sendo sua população estimada no ano de 2017 de 375.142 habitantes, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).(12)

Foi feito um estudo descritivo, analítico e retrospectivo através do levantamento de dados secundários, cole­tados a partir da consulta do banco de dados laboratoriais de exames hematológicos e parasitológicos. A análise abordou a avaliação de hemogramas (HEM) de indivíduos que apresentaram positividade no exame parasitológico de fezes (EPF), realizados no período de janeiro a julho de 2016.

As variáveis analisadas foram: idade, sexo e informações contidas nos laudos dos exames, tais como concentração de hemácias, hemoglobina e hematócrito, contagem total de leucócitos com enfoque nos eosinófilos (absoluta e relativa) e parasitos intestinais. Os dados foram obtidos através do banco de dados laboratoriais (Shift) de um laboratório de análises clínicas.

 

Diagnóstico e avaliação: detecção hematológica e parasitária

O hemograma foi realizado utilizando-se um contador eletrônico de células Sysmex XS 1000i (Roche®), que determinou a contagem de hemácias (milhões/mm3), dosagem de hemoglobina (g/dL), hematócrito (%) e contagem de leucócitos (mm3). Para a análise parasitológica de fezes utilizou-se o método de sedimentação espontânea – técnica de Hoffman, Pons e Janner (1934),(13) em que foram analisadas duas lâminas por amostra (coradas em lugol) e leitura em microscópio óptico (E100 LED Nikon®) (10 e 40x). Esta técnica detecta a presença de ovos e larvas de helmintos e cistos de protozoários.

 

Análise estatística

O teste do qui-quadrado ou teste exato de Fisher foi usado para analisar as variáveis. A análise de variância unidirecional (ANOVA) e testes t de Student não pareados ou o teste não paramétrico de Kruskal Wallis, que foram utilizados para variáveis contínuas, dependendo ou não se as variáveis foram distribuídas normalmente (Kolmogorov-Smirnov teste, p > 0,05) e quando as variações entre os grupos não eram iguais (Teste de Levene p < 0,05).

 

Considerações éticas

Por se tratar de uma análise baseada nos dados dos resultados gerados a partir da prática da medicina labo­ratorial, o presente trabalho foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética para Pesquisa com Seres Humanos do Centro Universitário de Brasília – Uniceub, DF, conforme o Certificado de Apresentação e Apreciação Ética (CAAE) nº 64165417.7.0000.0023.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

 

Características gerais da população estudada

Foram analisados 412 hemogramas de indivíduos com infecções por enteroparasitos para avaliar a relação com os dados hematológicos (Tabela 1).

1

As infecções por parasitos intestinais na população estudada foram mais frequentes em indivíduos com idade entre 00 a 10 anos com 43,44% (179/412) dos casos positivos, o que está de acordo com estudos realizados entre crianças na idade escolar (4 a 11 anos), que apresentaram uma prevalência de 67%.(14) Nesta faixa etária, elas não têm a real compreensão da importância de hábitos de higiene pessoal e dos cuidados com a alimentação, o que os leva a serem mais susceptíveis a infecções por parasitoses.(15)

 

Dados do exame parasitológico de fezes (EPF)

A prevalência dos parasitos encontrados foram: Giardia lamblia – 41,01% (169/412), Endolimax nana –  24,28% (100/412), Ascaris lumbricoides – 9,95% (41/412), Entamoeba coli – 8,74% (36/412), Entamoeba histolytica/dispar – 5,83% (24/412) e Trichuris trichiura – 0,48% (2/412). Dentre os protozoários, a G. lamblia e a Endolimax nana mostraram-se mais prevalentes em relação aos demais, e o Ascaris lumbricoides dentre os helmintos. O poliparasitismo foi detectado entre os casos de infecções por enteroparasitos, e os casos positivos apresentaram associação de infecções por G. lamblia e Endolimax nana – 4,86% (20/412); G. lamblia e E. coli – 2,92% (12/412); G. lamblia, Endolimax nana e E. coli – 0,72% (3/412); G. lamblia e A. lumbricoides – 1,21% (5/412) (Tabela 2).

2

A giardíase é uma das causas mais comuns de diarreias, e, em consequência da infecção, muitas das vezes o indivíduo pode apresentar problemas de má nutrição e retardo no desenvolvimento.(15) Na ascaridíase, infecção por Ascaris lumbricoides, os sintomas mais frequentes são dores abdominais, náuseas e vômito, que em decorrência da infestação causa diminuição da capacidade do indivíduo de absorver nutrientes, além de provocar escoriações intestinais por serem parasitos espoliativos.(16,17)

Dos parasitos patogênicos, os que apresentaram maiores prevalências foram a Giardia lamblia (41,01%; 169/412), que, segundo outros estudos, é o parasito intestinal mais encontrado nos humanos,(11,16,17) e o Ascaris lumbri­coides (9,95%; 41/412). Ambos os parasitos são comumente encontrados em populações carentes de saneamento básico, que vivem em condições precárias de higiene e são facilmente disseminadas entre crianças pela prática oral fecal. São comuns também em países em desenvolvimento, o que está de acordo com os resultados encontrados neste trabalho.(5)

Endolimax nana e Entamoeba coli são parasitos comensais intestinais que possuem mecanismos semelhantes de transmissão de parasitas patogênicos e servem como indicadores de más condições de saneamento básico e contaminação fecal de água ou alimentos.(18)

A infecção por parasitos intestinais pode estar relacionada ao aumento da ocorrência de anemias.(19) Neste contexto, quando se fala em enteroparasitismo, deve se levar em consideração a possibilidade de danos locais causados por eles, como sangramentos e diarreias, de maneira que os prejuízos e alterações hematológicas gerados ao hospedeiro numa infecção parasitária são alvo de pesquisas que levam em consideração a resposta imuno­lógica a estes parasitas, que associam à formação de granulomas, aumento de eosinófilos, como, em alguns casos, a redução da concentração de hemoglobina (Hb) circulante a um valor inferior ao de referência, caracterizada como anemia.(9) Por sua vez, no poliparasitismo o risco de alterações hemato­lógicas aumenta de cinco a oito vezes.(20)

Segundo a OMS,(7) mais de 2 bilhões de pessoas são infectadas por protozoários e helmintos, sendo que, destes, 980 milhões apresentam alguma alteração hemato­lógica por causa da ação espoliativa que alguns parasitos provocam e pelo quadro de diarreias e má absorção devido ao atapetamento intestinal, ocasionado por proto­zoários,(9) levando-se em consideração que as manifestações clínicas são proporcionais à carga parasitária contida no indivíduo.(10)

 

Avaliação dos dados hematológicos e relação das alterações no hemograma com as infecções

parasitárias

Na avaliação dos índices hematológicos levaram-se em consideração os valores de referências dispostos na Tabela 3. Após avaliação das alterações hematológicas, foi realizada a associação com infecções parasitárias.

Para ser possível a correlação entre as alterações dos índices hematológicos com as infecções por entero­para­sitos, os indivíduos foram separados e selecionados em dois grupos de acordo com as características: o primeiro com indivíduos com alterações nos índices hemato­lógicos, e o segundo sem alterações (Tabela 4), uma vez que todos os 412 HEM analisados neste estudo eram de indivíduos parasitados.

3

Os resultados revelaram que 65,77% (271/412) dos indivíduos parasitados apresentaram algum tipo de alteração nos índices hematológicos, uma vez que todos os níveis médios dos parâmetros hematológicos entre os dois grupos foram significativamente diferentes.

Curiosamente, os indivíduos infectados por parasitos intestinais, em particular, por A. lumbricoides ou por T. trichiura mostraram um número significativamente maior de contagem de eosinófilos do que os infectados com outras espécies de parasitas (620 ± 90 vs. 340 ± 160 mm3, p < 0,001 e 570 ± 0,61 vs. 340 ± 166 mm3, p = 0,001, respectivamente). Além disso, portadores de poliparasitismo mostraram números significativamente maiores dos eosinófilos quando comparados aos indivíduos infectados com um único parasita (560 ± 192 vs. 440 ± 113 mm3, p = 0,002).

 

Relação das alterações hematológicas e parasitárias

As alterações hematológicas evidenciadas neste estudo e relacionadas aos casos de infecção parasitária foram a anemia, leucocitose e eosinofilia (Tabela 5).

4

A alteração hematológica mais evidente nas infecções parasitárias foi a anemia, com 70,84% (192/271) de fre­quência nos indivíduos parasitados que apresentaram algum tipo de distúrbio hematológico. Em relação aos hel­mintos (Ascaris lumbricoides e o Trichuris trichiura), tratam-se de parasitas espoliativos que alteram o estado nutricional do hospedeiro, afetando principalmente a digestão e a absorção dos nutrientes.(21) Em relação aos protozoários G. lamblia e E. histolytica/dispar, o fato se explica devido aos quadros de diarreias induzidas por esses parasitos, promovendo uma rápida desnutrição do indivíduo e deficiência na absorção de nutrientes, tais como o ferro e vitaminas.(9) Estas alterações na absorção nutri­cional, juntamente com escoriações intestinais frequentes, podem levar ao desenvolvimento de anemias, as quais são diagnos­ticadas através da diminuição da concentração de hemá­cias, hematócrito e hemoglobina (observadas neste estudo), como também em níveis séricos de algumas dosagens bioquímicas como as do ferro, ferritina e trans­ferrina,(16, 22) fato que justifica a frequência de anemia encontrada nos indivíduos para­sitados neste trabalho. Logo em seguida foi aplicado o teste t de Student para verificar se havia correlação entre os resultados dos exames parasitológicos de fezes e as alterações dos índices hematológicos evidenciados no hemograma. Levando-se em consideração um p > 0,05, os resultados deste trabalho mostraram que há correlação entre os valores alcançados.

A leucocitose (43,17%; 117/271) seguida de eosi­nofilia (36,16%; 98/271) também foi um dado interessante em que revelou a ação do sistema imunológico frente a uma infecção parasitária. A eosinofilia em específico é um parâmetro hematológico altamente importante e deve ser considerado quando se avalia um indivíduo com indícios de infecções por enteroparasitos, sendo que a principal função dos eosinófilos não é a fagocitose, mas sim a exocitose da proteína básica maior (PBM), que é toxica para os parasitos e causa a sua morte, geralmente comum em infecções causadas por helmintos.(23,24) Estudos apontam que nem todos os protozoários são capazes de induzir uma eosinofilia, o que está de acordo com os resultados deste trabalho, em que a eosinofilia foi o parâmetro menos evidenciado.(24,25) No entanto, quando ocorre invasão tecidual por conta da parasitose, fato bastante comum em infecções por G. lamblia, que foi o parasito mais frequente neste estudo, a eosinofilia pode ser evidente.(18)

 

CONCLUSÃO

 

Observou-se uma elevada prevalência de parasitismo intestinal na população estudada, na qual foram analisadas alterações hematológicas nas infecções parasitárias únicas e múltiplas. A alta taxa de infecção foi significativamente associada com a anemia e a leucocitose seguida de eosinofilia. Com isso, os resultados apresentados forneceram um perfil das alterações hematológicas mais frequentes no advento de infecções parasitárias intestinais de uma parcela da população de Anápolis-GO que é atendida por um laboratório de análises clínicas.

 

Agradecimentos

Os autores são gratos ao Laboratório Sabin de Análises Clínicas, pelo apoio que possibilitou a realização deste trabalho.

 

 

Abstract

The enteroparasites cause to their carriers, among other damages, malnutrition followed by weight loss, diarrhea, vomiting, dehydration, anemia and enteritis. All these symptoms can trigger hematological indices disorders such as red blood cell count, hematocrit, hemoglobin, total leukocytes and eosinophils. This study aimed to evaluate and analyze the hematological alterations in individuals with positive parasitological diagnosis for enteroparasites. A study was carried out based on the laboratory data, in which the hemogram of 412 positive individuals for enteroparasitoses was analyzed. The data demonstrated that there are relationships between hematological changes, mainly anemia, leukocytosis and eosinophilia, with intestinal parasitic infections. The frequency of polyparasitism and its most frequent alterations were also verified. The study presented a possible contribution to future studies that report the importance of the prevention and treatment of parasitic diseases in humans.

 

Keywords

Parasitic diseases; anemia; leukocytosis; eosinophilia

 

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Correspondência

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