Controle da qualidade em Citopatologia: A importância da fase pré-analítica

Quality control in Cytopathology: The importance of the pre-analytical phase

Giovanna Ferreira Alencar1
Ivanna Maria Costa de Araujo1
Lethicia Victoria Gomes da Costa1
Nataly Barros Trajano1
Maria Lucia Utagawa2

 

1  Graduanda em Biomedicina da Universidade Anhembi Morumbi. São Paulo, SP, Brasil.

2  Docente da Universidade Anhembi Morumbi. São Paulo, SP, Brasil.

 

Instituição: Universidade Anhembi Morumbi. São Paulo, SP, Brasil.

 

Recebido em 26/06/2020

Aprovado em 28/08/2020

DOI: 10.21877/2448-3877.202202025

INTRODUÇÃO

 

O exame Papanicolaou, surgiu a partir dos estudos de George N. Papanicolaou em 1928, onde estudava as mudanças provocadas pelos hormônios uterinos e suas secreções. Foi na década de 1940, que o exame de colpocitopalogia oncótica se tornou um dos procedimentos clínicos mais importantes, tanto pela sua grande aplicabilidade no diagnóstico de doenças, e especialmente na detecção de lesões cancerosas, quanto pela sua capacidade de detectar lesões pré-neoplásicas do colo do útero ainda em fase inicial.(1) Segundo estudos, o câncer de colo uterino é a quarta causa de morte de mulheres por câncer no Brasil. O principal responsável é a infecção persistente por alguns tipos do papilomavírus humano. Os tipos HPV-16 e o HPV-18 são responsáveis por cerca de 70% dos cânceres cervicais.(2)

Esta infecção provoca alterações celulares que podem ser identificadas no exame de citologia oncótica e são curáveis na quase totalidade dos casos quando diagnosticados precocemente. Por isso a importância da realização de exames periódicos.(3,4)

Além de aspectos relacionados à própria infecção pelo HPV, outros fatores ligados à imunidade, à genética, comportamento sexual, tabagismo, uso de contraceptivos orais são considerados fatores de risco para o desenvolvimento de câncer do colo uterino.(5,6,7)
A citologia oncótica ou colpocitologia visa analisar as células de forma individualizada, intervindo na detecção de células anormais, assim como para a prevenção secundária nos estágios iniciais do câncer do colo uterino. Atualmente, a Nomenclatura Brasileira de Citopatologia se classifica em negativo para malignidade e anormalidades epiteliais escamosas, atipias em células escamosas de significado indeterminado (ASC-US), atipias em células escamosas de significado indeterminado em que não é possível descartar lesão intraepitelial escamosa de alto grau (ASC-H), lesões intraepiteliais escamosas de baixo grau (LSIL), lesões intraepiteliais escamosas de alto grau (HSIL), carcinoma escamoso e anormalidades epiteliais glandulares em adenocarcinoma in situ e adenocarcinoma invasor. Para comprovar a eficiência do exame e sua importante aplicação, ele deve ser realizado periodicamente, assim como recomendado por organizações nacionais e internacionais de Saúde, para as mulheres que já tenham iniciado a atividade sexual.(8,9,10)

A garantia da qualidade do exame se dá pela excelência da fase pré-analítica. Uma boa amostra clínica deve ser: identificada corretamente; ser coletada no local e no período correto; ter a quantidade suficiente para análise e ser armazenada em recipiente adequado. Todos os processos operacionais são eficazes se forem feitos de maneira segura, pois as maravilhas tecnológicas têm criado para os pacientes uma expectativa de perfeição, mas não podemos esquecer que trarão consigo novas formas de erros.(11,12)

É essencial a coleta de material direto do colo do útero, para se obter uma amostra adequada, coletando células do epitélio escamoso e glandular. A presença das células endocervicais e metaplásicas são consideradas indicadores importantes da qualidade da amostra. Quando não há representatividade desses dois tipos de células sugere-se a inadequabilidade da amostra do local ou ausência de células da endocérvice no material coletado.(13)

O processo de fixação do material é uma etapa importante para a preservação da qualidade da amostra. Quando há um tempo considerável entre a coleta e a sua fixação, podem ocorrer mudanças nucleares e citoplasmáticas que comprometem a coloração das células.(14,15)

O objetivo deste estudo é levantar os principais pontos da fase pré-analítica que podem impactar no resultado do exame de citopatologia e identificar os impactos gerados pela negligência do controle da qualidade analítico e as consequências geradas.

 

METODOLOGIA

 

O estudo se baseia em uma revisão sistemática, onde os autores fizeram uma investigação sobre o tema com a finalidade de identificar, selecionar, avaliar e sintetizar as evidências relevantes disponíveis. A busca de artigos científicos foi realizada por meio de buscas nas bases de dados eletrônicas Literatura Latino-Americana em Ciência e Saúde (LILACS), Scientific Electronic Library Online (SCIELO), National Library of Medicine, (MEDLINE).

Para tanto, foram aplicados como Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) os seguintes: fase pré-analitica, colpocitologia, gestão da qualidade, erros pré-analíticos.

 

DESENVOLVIMENTO

Coloração de Papanicolaou

O procedimento de coloração de Papanicolaou baseia-se no conjunto de ações dos corantes: o corante básico (Hematoxilina), o corante ácido (Orange G) e o corante policromático (EA-65). Neste método ocorrem etapas de hidratação, coloração e desidratação da lâmina, a fim de evidenciar variabilidade na morfologia, nos graus de maturidade e de atividade metabólica da célula.16

Uma simples variação, como a composição química da água corrente, pH da amostra e número de lâminas coradas por um mesmo lote, pode contaminar ou afetar o equilíbrio entre as diferentes tonalidades de cores produzidas pelos corantes. Para evitar a contaminação dos corantes utilizados nesta etapa, é indispensável passar por um controle da qualidade diário, que pode ser monitorado por meio da análise microscópica. Estas medidas de ações preventivas devem ser registradas e implementadas, a fim de aprimorar a qualidade da técnica.(10,16)

Os esfregaços corados devem ser montados de forma efetiva, utilizando-se um meio de montagem que permite a ligação entre lâmina e lamínula. O meio de montagem age como um selador, protegendo contra o desbotamento do corante e manutenção da amostra. Assim, a montagem com lamínula é uma técnica obrigatória, pois proporciona melhor visualização das células, preservando as estruturas contra danificação mecânica e artefatos de secagem ao ar. Porém, alguns laboratórios de citopatologia adotam o verniz como método de montagem por apresentar baixo custo e simplicidade. Por outro lado, sua desvantagem seria, nos processos de remontagem/recoloração, a de que muitas vezes pode impossibilitar a releitura das lâminas. Portanto, uma lâmina bem preparada é primordial para a análise e, consequentemente, para discussão futura dos resultados.(16)

Além disso, a ausência de lamínula impulsiona a perda da coloração celular, resultando na diminuição da qualidade durante o período de arquivamento. Para obter-se uma boa qualidade no processo de montagem da lâmina citológica, deve-se evitar excesso de meio de montagem e aparecimento de eventuais bolhas que prejudicam a análise citológica. Por fim, a lâmina com a lamínula aderida deve cobrir toda a superfície do esfregaço para sua secagem adequada.(17)

 

Critério de aceitação e rejeição da amostra

Os critérios de rejeição da amostra se referem àqueles casos com dados ilegíveis na identificação da amostra; falta de identificação ou identificação incorreta da amostra; ausência de dados referentes à anamnese e ao exame clínico; ausência de identificação do profissional responsável pela coleta e registro no respectivo conselho de classe; ausência do nome do Serviço de Saúde responsável pela coleta; divergência entre as informações da requisição e da lâmina; lâminas quebradas; material sem fixação prévia; uso de fixador inadequado e quantidade ineficiente de fixador.(17)

A rejeição da amostra ocorre na triagem do laboratório. Esta ação deve ser comunicada à unidade que fez a coleta da amostra para realizar nova coleta. Isto será fundamental para que se possa realizar ações de melhoria.(11)

O relato da rejeição da amostra é um procedimento fundamental e deve ser ressaltado ainda que a rejeição de um material significa um gasto sem resultado e que todo o esforço da mulher para realizar o exame foi perdido.(18)

 

Controle da qualidade e educação continuada

O laboratório deve ter critério padronizado de controle da qualidade interno em todas as fases do processo de realização do exame: recepção, coleta, transporte da amostra, técnica de coloração, análise e emissão de laudo.(11,16)

A qualidade do esfregaço citológico está diretamente relacionada ao desempenho dos recursos humanos envolvidos. Assim, é de suma importância a participação dos profissionais da saúde em cursos de capacitação, qualificação e em programas de educação continuada, para garantia da boa qualidade dos exames citológicos.(17)

Um dos fatores que também podem prejudicar o resultado do exame é a falta de preenchimento ou preenchimento incompleto das fichas de requisição. As justificativas para esta falta de informações na ficha foi a sobrecarga do profissional e a falta de informação sobre a importância desta. A proposta de melhoria seria oferecer aprimoramento, educação continuada e conscientização dos profissionais envolvidos nesta fase pré-analítica, o que pode melhorar a qualidade do resultado do exame.(19,20)

 

Amostragem

Erros de coleta podem variar de 20% a 68%, ocasionado altos índices de resultados falsos negativos. Este procedimento depende da habilidade dos profissionais que efetuam a coleta para obter amostras satisfatórias.(21,22)

Um outro fator muito importante é informar a paciente sobre as normas de procedimento para coleta do exame citopatológico, como estar fora do período menstrual, abstinência sexual de pelo menos 48 horas e não ter feito uso de cremes vaginais. As informações clínicas, como data da última menstruação, uso de contraceptivo, reposição hormonal, antecedentes de rádio e/ou quimioterapia, histerectomia, também ajudam bastante o citologista na hora da análise.(11)

Os casos com a informação de amostras de mulheres que realizaram histerectomia, pós-radioterapia ou pós-quimioterapia apresentaram altas taxas de diagnóstico insatisfatório com a justificativa de baixa celularidade escamosa.(23)

Para esta situação de amostras insatisfatórias o consenso da Sociedade Americana para Colposcopia e Patologia Cervical (ASCCP) recomenda a colposcopia para mulher que apresentou dois resultados insatisfatórios consecutivos. E para mulheres com idade igual ou superior a 30 anos, o teste HR-HPV é recomendado nos casos de citologia negativa com ausência da zona de transformação.(24)

 

Importância da fase pré-analítica

A fase pré-analítica é um componente importante no processo de operações laboratoriais, porque existem diversos fatores que afetam o resultado do paciente.

Esta fase compreende desde o preenchimento da requisição do exame até a análise do esfregaço. Nesta fase, dois estágios podem ser analisados, um externo e outro interlaboratorial. A unidade coletora tem um papel bastante importante, pois depende da amostra coletada do local correto. O indicador para esta etapa seria a amostragem com representatividade das células representativas da junção escamo-colunar.(13)

Vários estudos têm demonstrado que a adequabilidade da amostra não está presente em grande parte das amostras. Cerca de 40,73% dos esfregaços não têm representação da junção escamo-colunar, o que poderia ser um fator que pode comprometer a qualidade do exame, levando a um resultado falso negativo.(19,25)

O erro interlaboratorial ocorre quando a triagem não foi bem realizada. Às vezes, a grande quantidade de amostras para serem triadas pode levar a falhas neste processo. Para minimizar estas falhas é necessário que haja um treinamento e um acompanhamento destes profissionais. O acompanhamento da qualidade das amostras pode ser realizado por indicadores de qualidade. As variações na sensibilidade e especificidade são observadas por diversos fatores cuja mensuração muitas vezes é difícil, pois alguns são revelados na fase analítica e outros não serão evidentes.(26)

As condições inadequadas de trabalho, qualidade das amostras e o preenchimento da ficha de requisição incompleta, com falta de informações clínicas pode comprometer a qualidade do exame citopatológco.(19,27)

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Ao estudar a fase pré-analítica na citologia oncótica, entende-se a relevância da qualidade inicial, que é de extrema importância para o resultado final. Todos os sistemas de avaliação de desempenho em laboratórios de citopatologia devem preservar a necessidade de um programa de controle interno da qualidade perfeitamente estabelecido e executado. Os treinamentos e educação continuada são medidas necessárias para minimizar os erros na fase pré-analítica. Além destas ações com os profissionais que já estão atuando não podemos esquecer que as unidades de coleta apresentam uma grande rotatividade desses profissionais. E toda vez que houver mudanças nos protocolos todos deverão passar por um treinamento.

 

 

 

REFERÊNCIAS

  1. Neufeld PM. Personagem da História da Saúde VI: George Nicholas Papanicolaou. RBAC. 2019;51(2):94-7.
  2. Bruni L et al. ICO/IARC Information Centre on HPV and Cancer (HPV Information Centre). Human Papillomavirus and Related Diseases in the World. Summary Report, 17 June 2019.
  3. BRASIL. Instituto Nacional de Câncer. Plano de ação para redução da incidência e mortalidade por câncer do colo do útero: sumário executivo. Rio de Janeiro: INCA, 2010. 40 p.
  4. INCA. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Estimativa 2020: incidência de câncer no Brasil / Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Rio de Janeiro, 2019.
  5. International Collaboration of Epidemiological Studies of Cervical Cancer. Carcinoma of the cervix and tobacco smoking: collaborative reanalysis of individual data on 13,541 women with carcinoma of the cervix and 23,017 women without carcinoma of the cervix from 23 epidemiological studies. International journal of cancer, Genève, 2006;118(6)1481-95.
  6. International Collaboration of Epidemiological Studies of Cervical Cancer. Cervical cancer and hormonal contraceptives: collaborative reanalysis of individual data for 16,573 women with cervical cancer and 35,509 women without cervical cancer from 24 epidemiological studies. The Lancet, Boston, 2007;370, n. 9599,1609-21.
  7. International Collaboration of Epidemiological Studies of Cervical Cancer. Cervical carcinoma and sexual behavior: collaborative reanalysis of individual data on 15,461 women with cervical carcinoma and 29,164 women without cervical carcinoma from 21 epidemiological studies. Cancer epidemiology, biomarkers & prevention, Philadelphia, 2009;18(4)1060-69.
  8. BRASIL. Ministério da Saúde: Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero / Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Coordenação de Prevenção e Vigilância. Divisão de Detecção Precoce e Apoio à Organização de Rede. – 2. ed. rev. atual. – Rio de Janeiro: INCA, 2016.
  9. Nayar R, Wilbur DC. Sistema Bethesda para relato de citologia cervical. Tradução de Samantha Abreu, 3ºEd. – São Paulo: Livromed, 2018.
  10. INCA. Instituto Nacional de Câncer: Nomenclatura Brasileira de Laudos Citopatológicos Cervicais. 3ºed. Rio de Janeiro, 2012.
  11. Consolaro MEL, Maria-Engler SS – Citologia clínica cérvico-vaginal: texto e atlas– São Paulo: Roca, 2016; in Amaral RG & Palhano, RMAB: Controle de qualidade, 221-35.
  12. BRASIL. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária Resolução RDC n. 302, de 13 de outubro de 2005. Dispõe sobre requisitos para o funcionamento dos laboratórios clínicos e postos de coleta laboratorial públicos ou privados que realizam atividades na área de análises clínicas, patologia clínica e citologia.
  13. Shirata NK et al. Celularidade dos esfregaços cervicovaginais: importância em programas de garantia da qualidade em citologia. J. Bras. Ginec, 1998; 108(3),63-6.
  14. INCA. Manual de gestão da qualidade para laboratório de citopatologia / Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva, Coordenação de Prevenção e Vigilância, Divisão de Detecção Precoce e Apoio a Organização de Rede. – 2. ed. rev. ampl. – Rio de Janeiro: INCA, 2016.
  15. Manrique EC et al. Factors that compromise the adequacy of cytological cervical sample. FEMINA, maio 2009, 37(5).
  16. Silva G.F, Cristovam PC, Vidotti DB. O impacto da fase pré-analítica na qualidade dos esfregaços cervicovaginais. RBAC. 2017, 49(2):135-40.
  17. BRASIL. Ministério da Saúde-Portaria nº 3.388, 27 de dezembro de 2013: Redefine a Qualificação Nacional em Citopatologia na prevenção do câncer do colo do útero (QualiCito), no âmbito da Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas.
  18. Miller AB et al. Report on consensus conference on cervical cancer screening and management. International Journal of Cancer, New York, 2000, 86(3):440-47.
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  20. Koss LG, Gompel C. Introdução à citopatologia ginecológica com correlações histológicas e clínicas. São Paulo: Roca, 2006.
  21. Gay JD, Donaldson LD, Goellher JR. False negative results in cervical citologic studies. Acta cytologica, 1985, 29:1043-46.
  22. Bonini P, et al. Errors in laboratory medicine. Clin. Chem., 2002, 48:691-98.
  23. Gupta S, et al. Clinical determinants and smear characteristics of unsatisfactory conventional cervicovaginal smears. Eur. J. Obstet Gynecol Reprod Biol., 2013, 168: 214-17.
  24. Massad LS, et al. 2012 updated consensus guidelines for the management of abnormal cervical cancer screening tests and cancer precursors. J.Low Genit Tract Dis. 2013, 17:S1-27.
  25. Rabelo SP, et al – Principais causas que limitam ou tornam as amostras insatisfatórias que podem comprometer a análise dos exames citopatológicos no rastreamento do câncer do colo do útero. Rev Eletronica de Farmácia, 2005, 2(2):190-3.
  26. Donayre PC, Zeballos EH, Sánchez JB – Realidad de la fase pre-analítica en el laboratorio clínico. Peru. Rev Med Hered; 2013, 24(4):325-26.
  27. Plewka J, et al. Avaliação dos indicadores de qualidade de laboratórios de Citopatologia cervical. Rev Inst Adolfo Lutz, 2014, 73(2):140-7.

 

 

Correspondência

Maria Lucia Utagawa

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